terça-feira, 12 de agosto de 2008
A escrita de Leonardo
Vale a pena ler
Autor: Leonardo da Vinci
Tradutor: José Colaço Barreiros
Título: Bestiário, fábulas e outros escritos
Editora: Biblioteca Editores Independentes
Data da edição: 2007
“Alguém, querendo provar com a autoridade de Pitágoras que já diversas vezes havia estado no mundo, e outro não o deixava terminar o seu raciocínio; então disse este ao primeiro: - E por sinal, eu também já estive cá outras vezes, lembro-me de que eras moleiro. - Então aquele, sentindo-se picado com as palavras, confirmou-lhe que era verdade, que de facto se lembrava dele, que era o burro que lhe levava farinha ao moinho” (página 58).
Esta facécia de Leonardo da Vinci - designada por Boa resposta de um Pitagórico - consta num livro publicado em Portugal há menos de um ano, onde se reúnem textos seus que se encontam dispersos por bibliotecas e museus da Europa e dos Estados Unidos.
A selecção e tradução dos textos é de José Colaço Barreiros, que na apresentação da obra - com o sugestivo título Leonardo: escritor ou «homem sem letras»? - contribui para um renovado olhar sobre o autor (páginas 7 a 11):
“Dos múltiplos talentos de Leonardo da Vinci, que abrangeram variados ramos das artes e das sapiências do seu tempo, o último a ser conhecido foi precisamente o de escritor. E por uma razão que quase faz pensar numa partida pregada pelo truculento humor de Leonardo à posteridade: quando após a sua morte foram examinados os seus inúmeros apontamentos, que ele ciosamente guardava de olhos curiosos, viu-se que não passavam de folhas e folhas manuscritas em caracteres completamente ilegíveis. E assim, durante longos e longos decénios se pensou que Leonardo inventara uma escrita só dele perceptível, para que não lhe roubassem os seus segredos os seus concorrentes, segundo uns, e na opinião de outros para não caírem nas mãos da Inquisição que certamente o faria passar maus bocados. E só tardiamente, vendo ao espelho essa escrita indecifrável, se descobriu que ele afinal escrevia da direita para a esquerda porque, como já era público e notório, era esquerdino.
Tal facto muito contribuiu para se criar o mito de Leonardo como o genial pintor e arquitecto e engenheiro e cientista e, e, e, …, mas um omo senza lettere como ele próprio se define, um iletrado, ignorante de latim, que era a língua oficial da ciência e da literatura, cujo conhecimento era o único a dar acesso ao mundo dos livros: a habilidade manual e o conhecimento empírico adquirido durante anos e anos de trabalho técnico torná-lo-iam seguro na observação da natureza e nas suas aplicações práticas, mas mantinham-no isolado da tradição escrita do pensamento científico. De qualquer modo, mesmo depois da leitura dos seus escritos, de que inicialmente só eram compreensíveis os seus inúmeros desenhos, mantinha-se o mito de Leonardo como insigne empirista, mais virados para as artes e tecnologia do que para as letras.
Só depois da leitura e estudo dos milhares de folhas (mais de sete mil folhas escritas que deixou Leonardo da Vinci sabendo-se no entanto que, por se ter perdido a sua grande maioria, só uma parte reduzida do que ele escreveu, comummente avaliada em um quinto do total) esparsas por diversas bibliotecas se reavaliou a formação cultural e mesmo literária de Leonardo; mas se por um lado se procurou recompor esses escritos de forma a resultarem em obras e tratados autónomos sobre vários ramos da ciência, por outro, durante séculos foram silenciosamente descurados textos como o Bestiário e as fábulas e facécias: de facto, estes escritos literários foram longamente menosprezados com a sua produção científica ou mesmo filosófica, e considerados como aspecto menor, subalterno e quase marginal dentro da sua obra.
Mas também não se pode vituperar este comportamento, que aliás não deixa de reflectir a própria concepção de Leonardo: ele mesmo reconhece a sua condição de iletrado, e defende-a com orgulho, valorizando a sua ciência perante a cultura livresca e escolástica que se limita a papaguear os autores antigos parasitando as suas «fadigas», o seu trabalho intelectual: «embora, como eles [os letrados], eu não soubesse citar os autores, muito maior e mais digna coisa legarei, citando a experiência, mestra dos mestres deles. Estes são ocos e pomposos, vestidos e enfeitados não com as suas próprias fadigas, mas com as dos outros; e a mim as minhas não me concedem; e se a mim como inventor me desprezam, muito mais eles, não inventores, mas pregoeiros e recitadores, poderão ser censurados» (….) Leonardo não tem a preocupação de fazer obra escrita, mas escreve sem cessar para se ajudar a compreender o mundo: é um escritor, no dizer da Massimo Baldini, «torrencial, clandestino e fragmentário, que não deve ter encarado e hipótese de publicação dos escritos porque «publicar sua reflexões em língua vulgar lhe terá parecido coisa inútil (…)» Os seus apontamentos (à excepção do Bestiário, escrito em Milão, a única vez que manifestou o desejo de escrever alguns livros) não têm qualquer ordem ou continuidade: na mesma folha o apontamento mais contingente da vida quotidiana – uma lista de objectos ou materiais, uma mnemónica, uma breve nota sobre algum facto pessoal, surge o enunciado de um teorema, à subtil observação de um fenómeno natural, ao cálculo de potências e resistências, ou então uma demonstração, começada com ampla e precisa enunciação das premissas, derivando depois em direcções divergentes entretece-se de novos elementos que notavelmente a afastam do ponto de partida (…)
Contudo, não se pode absolutamente fazer em Leonardo uma dicotomia entre a Lógica e a Fantástica, entre os escritos científicos e filosóficos e os apólogos narrativos ou a elaboração de um bestiário fantástico, apoiado em textos da Antiguidade: o espírito científico de Leonardo sempre se nutriu de fantasia. O Leonardo capaz de idear máquinas de guerra e de locomoção (…) ou complexos sistemas hidráulicos e uma máquina toda ela engrenagens, bielas e manivelas, e que não servia rigorosamente para nada, não entra de modo nenhum em contradição com o fabulista, ou o contador de simples anedotas. Tal como Plínio o Antigo, que de resto foi uma das principais fontes para a elaboração do Bestiário, nele convivem em harmonia e constituindo uma perfeita unidade indistinguível, por um lado o arguto e atentíssimo observador da natureza, o cientista racional, e o visionário, o fantasista, que aliás os seus inventos e inovações bem revelam (…).
Se o Bestiário denota a única tentativa de elaborar um livro completo (…) os restantes textos remontam igualmente ao período da sua vida na corte de Ludovico Sforza em Milão, de 1482 a 1499, e revelam-nos outra faceta sua que tem sido descurada: a de homem de corte. Precisamente as fábulas, facécias e profecias foram produções destinadas a entreter os cortesãos (…)
Quanto à sua definição como autor «fragmentário» (…) Leonardo ganhou a reputação de nunca deixar uma obra acabada, de ser extremamente instável e volúvel, de ao fim de pouco tempo largar uma obra para iniciar logo outra totalmente diferente. Porém, como nota Edmondo Solmi, o que verificamos é uma constante e aturada pesquisa, de que nunca desistiu da natureza e do conhecimento das suas leis: «Temos de virar do avesso este juízo dos seus contemporâneos. Eles mediram o Leonardo integral pelas suas manifestações práticas, e definiram-no vário, instável, mutável; nós contemplando a sua vasta teoria, a que dedicou as forças de toda a sua vida, devemos defini-lo absorvido por um único e firme propósito perante todas as contrariedades. Desde os primeiros anos da juventude até à morte ele dirigiu as suas forças num único objectivo: o conhecimento das leis dos fenómenos, a descrição das formas naturais»”
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