domingo, 3 de agosto de 2008

A (Des)Ordem dos Professores


O nosso colaborador habitual Rui Baptista, na continuação do seu post anterior, esclarece sobre a necessidade de uma Ordem dos Professores:

Acabo por achar sagrada a desordem do meu espírito”.
Jean Rimbaud

Um dos óbices levantados à criação de uma Ordem dos Professores tem residido no facto de ser entendido que o professorado não encaixa na tipologia das profissões havidas como liberais “lato sensu”, porque exercidas exclusivamente por conta própria. Contudo, uma simples consulta à Enciclopédia Portuguesa e Brasileira não se mostra tão restritiva: “Liberal, diz-se da profissão como a magistratura, a medicina, a advocacia, o ensino por oposição a profissões industriais e comerciais”.

No desejo de encontrar o fio de Ariadne de uma controversa questão, afadiguei-me como postulante em buscas aturadas em fontes merecedoras de confiança. Deparei-me então com um parecer do Dr. Lopes Cardoso, à época bastonário da Ordem dos Advogados: “É necessário que, mesmo quando exercida em regime de contrato de trabalho, essa profissão seja reconhecida socialmente como relevando de grande valor precisamente porque exigindo, pelo menos, uma independência técnica e deontológica incompatível com uma relação laboral de pleno sentido. Com efeito, como tem sido definido doutrinalmente, a noção jurídica de subordinação aparece no direito moderno como perfeitamente compatível com a independência técnica do assalariado" (Cadernos de Economia, Publicações Técnico-Económicas, ano II, Abril/Junho de 1994). Assim, o professor com uma licenciatura satisfaz o requisito de produzir trabalho de natureza intelectual que deve ser reconhecido e valorizado socialmente.

Surge agora a Fenprof na Net, em 20 de Junho deste ano, a formular a pergunta: “Contribuirá uma ‘ordem’ para valorizar a profissão docente e unir a classe?” Considerando eu que sim e a Fenprof que não, devem ser colhidos dados de fontes mais credenciadas que meras opiniões pessoais ou ao serviço de interesses institucionais ou mesmo políticos. Um mero, mas elucidativo exemplo: “A Fenprof admitiu hoje repetir no próximo ano, por altura das eleições legislativas, a grande manifestação de docentes de Maio passado, prometendo apresentar uma ‘carta reivindicativa’ aos partidos políticos candidatos” (Sol, 31/Julho/2008). Ou seja, para além da tentativa em pôr novamente os professores ao serviço de uma certa orientação socioprofissional, assiste-se, outrossim, à desvalorização do contributo de outras forças da plataforma sindical e de movimentos de docentes não alinhados na manifestação dos 100 mil professores. Hoje, mais do que nunca, é pretendida a proletarização da classe docente, através da renúncia a uma deontologia profissional que salvaguarde as boas práticas da profissão e a sua “legis artis”, a exemplo de outras profissões, de idêntica responsabilidade e, por vezes, de menor exigência académica (v.g., Ordem dos Enfermeiros), tuteladas por ordens profissionais mesmo levando em linha de conta o facto de a nova Lei-Quadro das Ordens Profissionais ter amputado às futuras associações públicas a acreditação de cursos reconhecidos oficialmente.

Mas regressemos à pergunta da Fenprof. Segundo um estudo nacional de 2006, elaborado pelo Instituto Politécnico de Castelo Branco, cerca de 80% dos professores inquiridos “consideram importante a existência de uma Ordem”. Por outro lado, as 7857 assinaturas de professores na petição apresentada na Assembleia da República, em 2004 para a criação de uma Ordem dos Professores parecem não suscitar dúvidas sobre o interesse de uma parte substancial da classe docente na criação da Ordem.

Com o mesmo direito que assiste à Fenprof em fazer a pergunta, cabe-me perguntar: Não será o momento de pôr em causa a contribuição dos sindicatos para valorizar a profissão docente e unir a classe? Se não nos ativermos a meras questões salariais e horários de trabalho cometidos na Constituição aos sindicatos a resposta será sim. A dignidade docente não se compadece, por exemplo, com manifestações de rua pautadas por comportamentos incompatíveis com o estatuto de educadores.

O Prof. António Nóvoa, reitor da Universidade de Lisboa, numa conferência realizada no Brasil, em Outubro de 2006, a convite do Sindicato dos Professores de São Paulo, intitulada “Desafios do trabalho do professor no mundo contemporâneo”, teceu valiosas considerações, de que faço o seguinte extracto:

“O primeiro desafio é a ideia de uma melhor organização da profissão. Os modelos de organização dos professores, e em particular dos modelos sindicais – falo da Europa que conheço melhor -, não têm sido capazes de atender aos grandes debates da profissão e aos grandes debates da escola. Isto é, eles não se renovaram suficientemente ao logo dos últimos 30 ou 40 anos. Ficaram um pouco prisioneiros de um combate num plano mais macro, que é um plano importante, sobre questões salariais, sobre determinadas conquistas dos professores, um plano absolutamente essencial. Mas eles não conseguiram criar um modelo de organização mais centrado nas escolas.

A profissão tem um deficit grande de organização no interior das escolas. Enquanto outras profissões conseguiram manter as duas camadas, uma mais macro, a exemplo das grandes ordens dos médicos, dos farmacêuticos ou engenheiros, que conseguiram manter um nível de debate político macro muito forte, mas isso não os impediu de terem modelos de organização nas instituições muito mais fortes do que os nossos. Os modelos de organização dentro das escolas são muito débeis, muito burocráticos. E isso tem-nos prejudicado muito”.

Pela analogia com outras profissões de igual merecimento social e igual exigência académica, só através de uma ordem profissional serão os docentes capazes de se libertarem de uma acção sindical projectada para além de competências plasmadas na Constituição Portuguesa.

9 comentários:

Raio disse...

"Ordem" será a solução?
Vendo os assuntos por fora, atendendo a que não sou profissional dessa área, é com preocupação que vejo alguns assuntos reslacionado com a docencia em Portugal. Assuntos que aliás não se restringem ao nosso país pelo que já tive oportunidade de conferir com profissionais do ensino de outros paises.
Mas como com o mal dos outros podemos nós bem, é importante que se resolvam os problemas do ensino em Portugal e isso engloba obviamente resolver os problemas dos professores.
Segundo uma pesquisa que efectuei sindicatos e delegações de sindicatos que têm como base a profissão Professor há muitos e não têm quaisquer problemas em defender pontos de vista opostos entre si, será que uma Ordem viria ser um elementos aglutinador da classe ou meramente mais um elemento dissonante?

Saudações Bloguisticas
Raio do Blogue Trovoada Seca em http://trovoadaseca.blogs.sapo.pt

Fernando Martins disse...

Uma Ordem enquanto instituição de referência no plano ético e de unidade dos docentes, que manifestamente os Sindicatos (sobretudo depois do último vergonhoso acordo com a Ministra da Educação) já não conseguem ser. A manifestação de 8 de Março, que levou mais de 100.000 professores para a rua, de todas as áreas políticas, foi um grito de revolta da classe. Mas os Sindicatos pensaram que conseguiam cavalgar e abafar esse grito e hoje estamos mais desunidos e milhares de professores desfiliaram-se dos sindicatos...

Hoje é altura de pensar numa Ordem dos Professores e Educadores - sem dúvida que, como docente interessado nestas coisas e sem ligação a Sindicatos como a esmagadora maioria dos professores, concordo com o autor deste post...

Rui Baptista disse...

Aos dois comentadores anteriores: Diz o povo na sua imensa sabedoria não haver bela sem senão. Sendo uma classe profissinal contituída por seres humanos (com todas as imperfeições sujacentes), difícil será encontrar uma organização profissional perfeita. Agora, deixar a solução dos problemas aos sindicatos que não se coibem de exorbitar nas suas funções em defesa de interesses político-partidários não me parece ser uma solução a manter-se perante a passividade dos docentes proletarizados para além daquilo que se espera de uma profissão que tem vindo a ser desprestigiada por factoes vários a que certos sindicatos não são imúnes com dirigentes que se eternizam nos lugares sem sentirem na pele as agruras do dia-a-dia dos professores. Essa uma vantagem das ordens profissionais que segundo a nova Lei-quadro só permitem o exercício de funções directivas durante QUATRO ANOS, não renováveis.

Fui durante vários anos presidente da Assembleia-Geral do Sindicato Nacional dos Professsores Licenciados: por discordância com a sua adesão à Plataforma Sindical demiti-me dessas funções. O projecto de Estatutos de uma Ordem dos Professores, que elaborei na altura, defendia a inscrição, a título excepcional, de todos os indivíduos em exercício de funções que pertencessem ao quadro docente, ainda mesmo que sem uma licenciatura como habilitação.

Julgo que a criação de uma Ordem dos Professores deixou de ser uma simples bola de neve manipulada por uns tantos sindicatos a bel-prazer para se tornar numa avalanche formada pelos inúmeros professores, sindicalizados ou não, que tomarão em suas mãos uma iniciativa de que é de toda a justiça destacar a acç-ao da Associação Nacional dos Professores (ANP).

Todos os comentários, prós & contras, feitos nesse sentido serão uma ajuda preciosa.Para os dois comentaristas o meu obrigado: a pior coisa que pode afectar uma classe profissional é não fazer, deixando, com isso, que os outros façam por nós com interesses encapotados ou à luz do dia.

Rui Baptista disse...

P.S.: Acabo de referenciar, no meu post anterior, "Do Caos à Ordem dos Professores", que respondi aos comentários aí feitos, através deste texto.

Armando Quintas disse...

Não há interesse em que a ordem dos professores avance, porque pessoal da femprof perde o protagonismo e a influencia que tem e o governo que perde o poder que tem sobre os professores, o objectivo é manter os professores desunidos, e o que tem sido feito nas politicas educativas para degradar o ensino tambem vai nesse sentido, tirar a credibilidade da classe, aumentando excessivamente o numero dos seus associados e baixando a qualidade da sua formação, mão de obra abundante, mal formada e mal paga com instabilidade laboral.

Eu pessoalmente que não defendo ordens corporativas, por as achar que devem pertencer a outro tipo de regime que não o actual, sou apesar disso apoiante da ordem dos professores, para ver se as coisas mudam, se ha estabilidade no corpo docente e que isso possa trazer qualidade ao ensino.

Anónimo disse...

O maior problema é que uma Ordem dos Professores não convém simultaneamente ao ME (porque significaria uma maior auto-regulação da profissão) e aos sindicatos (que pretendem ocupar todo o espaço de representação dos professores).
Perante essa dupla oposição, a criação de uma Ordem está sujeita a fogo cruzado das duas trincheiras instaladas no terreno.

Victor Gonçalves disse...

Sou também a favor de uma ordem, que ordenasse, no entanto, diferentemente das ordens tradicionais. Isto é, que regulasse criticamente (numa racionalidade desconfiadíssima das regulações, aberta à divergência singular tanto como aos consensos de bom senso).

Também creio que a proletarização que que sindicatos e Ministério nos votaram dificilmente deixará de criar fortes resistências á sua criação.

Estranho, mas seria necessário criar uma espécie de sindicatos anti-sindicatos.

Rui Baptista disse...

Prezados comentadores:

Obrigado pela vossas opiniões que eu tenho sempre(quer sejam favoráveis ou não) como muito proveitosas por me darem um "feed-back" precioso sobre os meus textos.

Diz o povo que não há duas (neste caso dois) sem três: penso pôr à consideração dos autores do blogue a publicação de um terceiro post sobre a Ordem dos Professores, assunto demasiado importante para não ser escalpelizado até ao tutano! A oposição do Ministério da Educação (vide, comentário do "educar") merece ser contraditada, outrossim. E bem contraditada.

Finalmente, estendo o meu agradecimento aos blogues que entenderam transcrever este meu post, e aos respectivos comentaristas que muito animaram uma discussão relevando, assim, o interesse desta temática.

António Duarte disse...

Expliquem-me lá uma coisa: porque é que eu, professor sindicalizado, devo aceitar como boa a existência de uma Ordem dos Professores, enquanto os defensores da Ordem se dedicam a denegrir os sindicatos? Com mais uma diferença importante: a sindicalização é livre, enquanto uma ordem profissional, a partir do momento em que esteja constituída, é de inscrição obrigatória para todos os profissionais que representa.

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