quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Dogmatismo, mas de quem?


Reagindo à minha última crónica do Público, um leitor queixa-se do dogmatismo de muitos cientistas, que impedem assim o trabalho criativo dos cientistas jovens. Isto é sem dúvida verdade, e é verdade em todas as áreas: nas artes, nas ciências, na filosofia. Em todas estas actividades se depende de praticantes mais velhos dessas mesmas disciplinas que decidem que apoios se dá a quem, o que é e o que não é publicado, quem é e quem não é aprovado para fazer um doutoramento ou um pós-doutoramento ou um projecto de investigação. Evidentemente, não há outra maneira de fazer as coisas, dado que não há recursos para aceitar tudo o que qualquer pessoa queira fazer. Alguém tem de decidir e as melhores pessoas para decidir isso têm de ser as pessoas que são da própria área, ao invés de burocratas ou políticos ou algo desse género. Chama-se a isto “peer-review”, em inglês, e eu não sei como se diz em português.

Como a democracia, nenhum sistema de peer-review é perfeito — porque as pessoas não são perfeitas. Muitas pessoas são obstinadas, dogmáticas, retrógradas, motivadas por ódios e amores pessoais, tolas, pouco profissionais, com um sentido distorcido das prioridades. Portanto, não vale a pena pensar que o sistema de peer-review é perfeito; é apenas o melhor que se consegue fazer, mas está sujeito a todo o tipo de distorções se as pessoas que detêm o poder numa dada área forem obstinadas e tolas, dando mais atenção aos seus ódios e amores pessoais do que ao desenvolvimento objectivo da sua área de estudos.

Mas as críticas que se ouvem contra a obstinação dos cientistas estabelecidos nem sempre são justas e escondem muitas vezes uma incompreensão básica das coisas. Em nenhum sistema de peer-review, por mais perfeito que seja, se pode dizer que sim a tudo. Na verdade, a atitude correcta é a oposta: dizer que não a tudo, no sentindo de discutir cuidadosamente tudo. Muitos jovens filósofos ou jovens cientistas sentem-se desencorajados quando vêem as suas ideias originais não serem acolhidas de braços abertos e efusivamente e ao invés serem massacradas com objecções e críticas. Pensando bem, contudo, ao fazer isso perante tais ideias os mais velhos estão apenas a fazer exactamente o mesmo que os mais novos estão a fazer com as ideias dos mais velhos: discutem-nas criticamente. É incoerente querer um sistema no qual possamos pôr em causa a lei da gravidade com a primeira tolice que nos ocorre, mas depois ninguém possa pôr em causa a nossa ideia.

Sublinho: há muito conservadorismo na ciência e na filosofia (nas artes não sei como é, mas a julgar pelo que sai a público como arte nos dias que correm dá ideia que é exactamente o oposto: qualquer treta é “genial”). Esse conservadorismo é mau, pois precisamos de inovação e a inovação muitas vezes vem precisamente dos mais novos. Além disso, os mais novos precisam de ser estimulados e acarinhados, e há uma grande diferença entre uma ideia nova destrambelhada — estilo New Age, homepatia, ocultismo, etc. — e uma ideia nova firmemente fundada no nosso melhor conhecimento das coisas. Mas temos de ter consciência que faz parte do melhor sistema que somos capazes de conceber a crítica profunda a todas as ideias, incluindo as novas e revolucionárias. Ideias novas e revolucionárias há muitas, mas nós queremos apenas as que são verdadeiras e para isso temos de as criticar vigorosamente, porque se passarem o crivo dessa crítica — se for uma crítica honesta e não tolamente motivada por mero conservadorismo —, então temos a única garantia que podemos ter, dada a condição humana, de que essa ideia é provavelmente verdadeira.

12 comentários:

Paisano disse...

Um sistema que não seja crítico com os desenvolvimentos que lhe vão sendo acrescentados torna-se rapidamente num sistema obsoleto pela sua permissividade.

As novas ideias ou teorias devem ter dificuldades para vencer, pois aí reside um estímulo humano, e permite por outro lado aferir da sua validade e aplicabilidade.

A tal resistência conservadora é realmente uma auto-defesa contra qualquer ideia, levando a que ou a ideia tem pernas para andar ou então não vem acrescentar nada de novo ao que existe.

Claro que esta crítica deve ser construtiva, mas como o sistema é utilizado por humanos, ele próprio está sujeito aos defeitos inatos dos próprios humanos.

Luisa disse...

Ainda há quem se queixe de excesso de atenção crítica oposicionista ao seu trabalho científico?!?

A maior parte das pessoas que eu conheço que fazem PhD/Doutoramentos, nomeadamente em Portugal, mas também no estrangeiro, queixam-se a esse nível principalmente de FALTA de crítica, interesse, orientação, comentários, análise, debate, discussão das suas ideias.

Queixam-se de terem que ser advogados de defesa e acusação das suas próprias teorias e teses, porque nos anos que levam a elaborá-las nem os próprios orientadores se interessam, realmente, por elas. Anda aí muita gente que, se subitamente tivesse a atenção desmesurada de críticas analíticas extensas e profundas ao seu trabalho de investigação, choraria sim, mas de alegria e emoção ante tal benesse...

(Não estou, obviamente, a falar da mesquinhice pessoal das críticas que se guardam para a pública defesa da tese, quando já nada interessam e em nada servem a ciência. Essas críticas não dizem nada de quem as sofre, mas muito de quem as emite.)

alvares disse...

A falta de uma "crítica fundamentada" é a raiz deste problema... Esta ausência acaba por ter as duas consequências extremistas aqui mencionadas:
1) a aceitação de toda e qualquer ideia por muito fantasiosa que seja.
2) a rejeição de toda e qualquer ideia inovadora por não respeitar determinadas ideias pré-concebidas.
Infelizmente, o nosso ensino superior tem sido "exemplar" nesta questão.... Muitas vezes é dada uma extrema relevância à presenca, ou não, de determinadas palavras-chave (que muitas vezes variam consoante a moda), e menos nas questões levantadas/conclusões, por vezes nulas e/ou erradas.
A ausência de uma critica bem fundamentada acaba por fomentar um espirito de "copy+paste" e de disparate em vez de um espirito inovador, construtivo e verdadeiramente critico.

alf disse...

Bom post. E refere o verdadeiro problema: não somos perfeitos.

E aqui o paradoxo: se fossemos perfeitos, todos os sistemas seriam bons; logo, o objectivo de um sistema é ultrapassar as nossas imperfeições e ignorâncias.

Por isso, não podemos aceitar as limitações de um sistema com o argumento das nossas imperfeições. Embora seja importante lembrarmo-nos delas, para termos sempre presente que é para as combater que os sistemas existem. E para termos presente que o problema não é «deles», é «nosso», resulta do que somos.


Tem-se procurado encontrar um sistema melhor de avaliação científica. O problema é que ainda não se conseguiu. Temos consciencia das limitações do actual, percebemos que está prisioneiro de presunções, de interesses, mas ainda não inventamos nenhum melhor.

Temos grande dificuldade em ultrapassar as nossas presunções, em descobrir novas soluções. É por isso que a Física está algo «atascada» na teoria do BB, ou na teoria atómica. Sabemos que não estão bem, mas não conseguimos, até agora, encontrar uma melhor. Temos esperança de que, algum dia, alguém o consiga. O mesmo em relação ao sistema de «peer review».

Nando disse...

Caro Alf,

Sobre a sua frase

"E aqui o paradoxo: se fossemos perfeitos, todos os sistemas seriam bons; logo, o objectivo de um sistema é ultrapassar as nossas imperfeições e ignorâncias."


Concordo obviamente com a segunda parte mas, do ponto de vista de um físico, a coisa parece-me mais complicada: podemos imaginar um sistema "perfeito" (completamente controlável, bem oleado, calibrado e conhecido), e mesmo assim só existiria uma estratégia óptima para desempenhar determinada tarefa (pensemos num robot industrial, que é "quase perfeito" e para o qual se aperfeiçoam as sequências de movimentos mais económicas e que menos esforçam a estrutura).

Assim, há duas perguntas:

- Qual a estratégia óptima para um sistema perfeito?

- Igualmente importante: essa estratégia continua a ser óptima quando aplicada a sistemas imperfeitos, como é o caso da comunidade científica e da humanidade em geral?

O peer review poderá não ser a estratégia perfeita em nenhum dos casos... mas é a que mais se aproxima, parafraseando labregamente o Churchill.

Victor Gonçalves disse...

Desidério, o seu post parece-me profundamente conservador, a crítica de que fala seria sempre feita criteriosamente, ora esses critérios pré-estabelecidos só podem ser conservadores (porque conservam a seriedade, a ideia de, constituída necessariamente no passado).

Para justificar a minha posição deixe-me fazer-lhe duas perguntas a partir de posições que defende no texto:

1- Qual é "o nosso melhor conhecimento"? [não será aquele que já está determinado pelos cânones como tal, o conhecimento que conserva o rigor metodológico e a pertinência temática?]

2- O que são "ideias verdadeiras"? [não serão aquelas que estão dentro do "verdadeiro" de que fala Foucault?]

Ser seriamente inovador obriga a ter uma abertura epistemológica que me parece muito distante da teses que defende, Desidério.

Desidério Murcho disse...

Caro Dioniso
1. Não, o nosso melhor conhecimento não é o que está determinado pelos cânones como tal. Isso é a sua posição, surpreendentemente “conservadora”, para usar o seu adjectivo de ataque (e já agora, qual é o problema de ser conservador?). O nosso melhor conhecimento é aquele que melhor resiste à discussão pública de ideias, que é precisamente o que autores como Foucault não querem e é por isso que escrevem de maneira que não se perceba.
2. Não há qualquer boa razão para pensar que as ideias verdadeiras são o que Foucault pensa que são excepto a ideia autoritária de que devemos aceitar o que escreveu Foucault, talvez por ser careca e gay. Eu também sou careca e sou gay às quartas-feiras, mas digo que as ideias verdadeiras não são isso. E agora?
Do seu comentário aproveita-se o seguinte: poderá dar-se o caso que, por definição, todas as ideias inovadoras sejam rejeitadas por qualquer instituição, seja ela como for? Talvez. Mas acontece isso realmente? Não. Basta ver o que se passa na arte contemporânea, e em algumas áreas das humanidades. Hoje em dia, nestas áreas, qualquer inanidade que tenha a aparência de nova é imediatamente tida por genial.
Seria bom que se aceitasse tudo o que é novo só por ser novo? Não, não seria. Porque o novo só por ser novo não quer dizer que seja bom. Então como podemos fazer? Discutindo ideias, em vez de nos limitarmos a aceitar opiniões de pessoas como Foucault, como se fossem autoridades últimas. É preciso ter para com Foucault a mesma irreverência que ele tinha com os autores que analisou. Não pela irreverência em si, mas porque discutir ideias é a única maneira que temos de tentar descobrir a verdade das coisas.

rgc disse...

Caro Desidério Murcho,

Concordo que o "peer-review" é a melhor forma que temos de fazer ciência.
No seu texto identifica dois problemas/características deste sistema:
1) - "Está sujeito a todo o tipo de distorções se as pessoas que detêm o poder numa dada área forem obstinadas e tolas, dando mais atenção aos seus ódios e amores pessoais do que ao desenvolvimento objectivo da sua área de estudos";
2) - "Não se pode dizer que sim a tudo", mas devesse antes "dizer que não a tudo, no sentindo de discutir cuidadosamente tudo";

Quanto ao ponto 2), explica bem que não é um problema mas sim uma característica do sistema de "peer-review" que resulta da natureza critica do método científico. Portanto, parece-me que todos aqueles que estão interessados no avanço do ciência (mais novos e mais velhos) devem concordar com este ponto.

Agora, o ponto 1) já me parece um problema do sistema. E para este problema o senhor não dá solução neste texto. Portanto eu deixo a questão: como é que se resolve/evita o problema 1)?

Se me permite, deixo aqui duas sugestões de desejáveis/possíveis soluções para quando se identifica uma pessoa que faz mau uso do seu poder de decisão (convínhamos que, pelo menos nos casos mais graves, não será difícil fazer esta identificação).
Normalmente não é apenas uma pessoa que tem o poder de decisão sobre as direcções de investigação duma determinada área, mas sim um conjunto de pessoas dessa área.
Portanto, a solução desejável seria que os próprios pares resolvessem o problema, tirando o poder de decisão à pessoa que dele faz mau uso. Não sei até que ponto isto é ou pode ser feito em Portugal!
Enquanto não é tomada a solução anterior, resta uma outra solução possível: os estudantes/investigadores não trabalharem com essas pessoas (que fazem mau uso do poder de decisão que têm). E esta solução, sim, parece-me que já vai sendo usada em Portugal. Só não sei até que ponto!

alf disse...

Jorge (e não só)

O grande problema de conceber «sistemas perfeitos» em que entre o elemento humano é que nós não conhecemos suficientemente bem o «elemento humano». Na realidade, nao se trata de ser «perfeito» ou «imperfeito» - trata-se de que as pessoas têm determinadas caracteristicas que as levam a tomar decisões diferentes daquelas que quem concebeu o sistema previu.

Fazer sistemas melhores passa por conhecer melhor o ser humano; e este é um processo recorrente - temos de analisar que comportamentos humanos prejudicaram o sistema existente, compreende-los e conceber formas de os ultrapassar.

Devo dizer que, em geral, os Físicos têm um fraco conhecimento do ser humano; e isso conduz a erros graves. Disse não sei quem que «o cientista que estuda a ténia sabe mais da ténia do que dele próprio». Por mim falo e tenho feito um grande esforço para ultrapassar esse tipo de limitação.

Mas sobre este assunto está a ocorrer-me uma interessante experiência; como o Desidério já postou de novo sobre isto, vou apresentar essa ideia em comentário ao novo post dele.

Victor Gonçalves disse...

Resposta ao Desidério

Não queria alongar muito o diálogo, sobretudo por causa do epifenómeno "Gay/careca", mas o "verdadeiro" de Foucault, que eu e mais uns milhares de medíocres percebem, é apenas um conceito que designa aquilo que o paradigma (este conceito, como sabe, já não é dele) epistémico ("espisteme" é dele, é também é facilmente compreensível) determina como estando dentro do horizontes da verdade.

E é contra isto que a inovação (e era necessário primeiro perceber bem o que é isto de inovar) se coloca, procurando ocupar espaços de potenciais ainda não materializados, ainda que seja apenas na linguagem.

Esta fenomenologia do possível, isto é, de como pode aparecer aquilo que ainda não foi dado como existente (é muito confuso para si?) dz-nos em primeiro lugar que os cânones mais do que regras rígidas de censura e acolhimento são figuras simbólicas que usando o poder do discurso que amansa fazem a triagem, naturalmente conservadora (heterosexuais com cabelo) entre o aceitável e o "inaceitável".

Sabe, agora, onde está a graça: é que alguém que se denomina "filósofo", como o caro Desidério, está totalmente dentro do mundo inquisitorial que indexa o que pode e não ser aceite como verdadeiro (não necessariamente verdade).Neste sentido, creio que argumentei bem, não?, o Desidério filósofo é um grande entrave à inovação, para si a Filosofia devia resumir-se a esse pequeno neo-pragmatismo que brota superficialmente do homem médio americano.

Desidério Murcho disse...

Mas, Dioniso, que razões há para pensar que Foucault tem razão? Ele era um deus? Quem está a entravar a inovação é quem declara que um tipo qualquer fez afirmações irrefutáveis sobre seja o que for, afirmações que só nos resta aceitar e pensar a partir daí. Não vê contradição na sua posição? Declarar todas essas coisas pretensamente libertárias... aceitando acriticamente o que alguém disse.

As ideias de Foucault, como as de qualquer outra pessoa, devem ser discutidas e não passivamente aceites. Claro que Foucault não desejava tal coisa, e em parte é por isso que escreve de uma maneira muitíssimo obscura. Mas nós devemos ter essa atitude crítica quer ele queira quer não. E você não revela atitude crítica nenhuma perante o Mestre. Limita-se a rezar esse terço, e depois acusa-me a mim de rezar o terço dos pragmatistas americanos, coisa que não rezo. O que você tem de perceber é que eu não rezo terços. Nem esse, nem outro qualquer. Não estou para rezar terços. Prefiro discutir ideias.

Podemos discutir que mecanismos de relação de poder há que bloqueiam, ou não, a inovação. Mas outra coisa totalmente diferente é aceitar acriticamente, como quem está a ler a Bíblia, a análise que Foucault faz desses mecanismos.

Victor Gonçalves disse...

Mais interessante este argumentário, eu também não rezo terços, e Foucault não é meu mestre. Além disso: "É mau discípulo quem se limita a sê-lo."

Um abraço

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