quarta-feira, 13 de agosto de 2008
OS JARDINS SECRETOS DE MANDELBROT
Como em Agosto é possível que haja mais tempo para leitura, deixo aqui um "post" maior do que é costume. Atendendo ao tamanho anormal vai em duas partes. É o último capítulo do meu livro "Universo, Computadores e Tudo o Resto" (Gradiva):
Proponho-me abordar, em geral, a relação da estética com as ciências matemáticas e naturais e, em particular, o caso recente da geometria fractal, que, segundo julgo, ilustra de modo claro essa relação.
Temendo que o título não seja suficientemente sugestivo, começo por explicitar a sua origem. Inspirei-me no matemático germânico David Hilbert que, num discurso em memória do seu colega Hermann Minkowski, afirmou :
"A nossa ciência, que amámos acima de todas as coisas, juntou- nos. Ela apareceu-nos como um jardim florido. Neste jardim existiam caminhos bem conhecidos de onde se podia olhar à volta à vontade e desfrutar a paisagem sem esforço, especialmente ao lado de um companheiro de ofício. Mas também gostámos de procurar trilhos escondidos, tendo descoberto uma vista inesperada que era agradável aos olhos; e quando um a apontava aos outro, e a admirámos em conjunto, o nosso prazer era completo."
Encontramos aqui explicitado de forma simples mas incisiva o elemento estético que reside no âmago das ciências matemáticas e, de resto, todas as outras. Por vezes, cientistas em deambulação pelas suas paisagens encontram "jardins secretos": nessa descoberta conjugam-se a surpresa e o prazer. A validação final da descoberta e a inauguração do "jardim público" cabe à comunidade dos pares. Primeiro chega um, depois outro e mais outro, até que o "trilho escondido" passe a ser "bem conhecido" e o novo recanto botânico fique acrescentado ao património comum. Vem um dia em que ninguém mais se lembra que o jardim foi outrora secreto.
Foi uma série de excursões desse tipo por caminhos pouco frequentados que levou, em 1975, o matemático francês de origem polaca Benoît Mandelbrot a publicar um ensaio intitulado no original "Les objects fractals". O facto de já antes exploradores avulsos, de forma mais ou menos anónima, terem passado pelas terras hoje designadas por "geometria fractal", que se caracterizam pelos seus estranhos canteiros com simetria de auto-semelhança, não invalida o mérito da descoberta e a importância do respectivo anúncio. Não diminuiu a surpresa experimentada pelo ensaista nem lhe retirou um prazer mal disfarçado no livro. Foi Mandelbrot quem procurou e encontrou companheiros, os matemáticos norte-americanos Adrien Douady, John Hubbard, Robert Devaney, o alemão Hans Peitgen e vários outros, para que a admiração fosse conjunta e o prazer completo. Foi com ele e por meio dele que se está a dar a vali¬dação, não isenta dos seus pequenos acidentes de percurso, de uma forma de matemática que, apesar de parecer nova, mantém afinal a tradição bem antiga do reconhecimento de padrões, tanto formais como numéricos, e, embora pareça artificiosa, dá oportunidade a um estreito conluio do pensamento abstracto com a observação do mundo.
Antes de passearmos pelos "jardins secretos" que Mandelbrot explorou, publicitou e abriu à comunidade dos matemáticos e cientistas naturais, e dado que eles fizeram reviver de forma particularmente nítida a conexão que sempre existiu entre arte e ciências (sejam estas matemáticas, físico-químicas, etc.) vale a pena apresentar alguns depoimentos soltos sobre essa ligação.
Vejamos, então, o que a alguns pensadores modernos se oferece dizer sobre o assunto. Para o ensaista J. Bronowski, autor de "A Ascensão do Homem": "A ciência não é mais do que a busca para descobrir unidade na variedade selvagem da natureza... A poesia, a pintura e as artes são a mesma coisa." A relação entre ciência e arte seria assim simples de identidade, senão nos métodos pelo menos nos propósitos.
Por outro lado, se é necessário acrescentar a opinião de um cientista "duro", recorra-se ao químico norte-americano de origem polaca Roald Hoffmann que além de ter vasta obra de investigação publicada é autor de dois livros de poesia inspirados pela química. Ele sabe, por experiência própria, que:
"A actividade criadora não é muito diferente em arte e em ciência. A abstracção da realidade, que é necessária depois da observação, é idêntica (...) Além disso, ambas procuram explicar uma parte do universo que nos rodeia (...) e, desse ponto de vista, a actividade científica é até mais trivial. Estabelecer parâmetros perfeitamente definidos para a interpretação do universo é mais fácil do que tentar questionar a morte ou o fim de um amor".
Mas vale também certamente a pena invocar alguns dos grandes criadores do passado - Kepler, Poincaré e Heisenberg - e ver como eles encontraram os seus "jardins secretos".
Comecemos por Johannes Kepler, o astrónomo alemão que, segundo o matemático francês Ivar Ekeland, efectuou a maior das descobertas científicas: a da geometria das órbitas planetárias. Kepler procurou de uma forma obsessiva, ao longo de toda a sua vida, desenvolver um tema muito caro a Pitágoras, o tema da harmonia do mundo. Para ele a matemática era o "arquétipo do belo". Numa bela metáfora, cunhou a expressão "música das esferas", a propósito dos movimentos planetários. Depois de um sem número de tentativas falhadas, o primeiro momento de surpresa e encantamento de Kepler acontece quando se apercebe que uma das curvas que o grego Apolónio de Perga tinha estudado dois mil anos antes - a elipse - era utilizada na mecânica dos céus. Ficou extasiado por ter tocado uma beleza suprema, como demonstra de forma exuberante o seguinte discurso directo de "Harmonice Mundi":
"Fui iluminado, no meio de uma contemplação muito admirável, há dezoito meses por um primeiro luar, há três meses por um dia distinto e há poucos dias pelo próprio Sol. Nada mais me impede de me abandonar a um transporte sagrado e afrontar os mortais confessando ingenuamente que furtei os vasos de ouro dos Egípcios para fazer uma oferenda ao meu Deus, bem longe das fronteiras do Egipto. Se me acreditarem, rejubilar-me-ei; se não, suportarei a vossa indiferença. A sorte está jogada: escrevi o meu livro. Que ele seja lido agora ou na posteridade pouco importa: pode bem esperar um século pelo seu leitor, se o próprio Deus também esperou seis mil anos por um contemplador da sua obra".
Kepler data, com um erro tremendo, o início do universo: precisamente seis mil anos antes de Kepler, em vez de quinze mil milhões de anos antes dele!
As elipses são belas, o que Apolónio já sabia. Mais do que isso, com Kepler passa-se a saber que são verdadeiras, isto é, que se ajustam perfeitamente à órbita de Marte e de todos os outros planetas nossos vizinhos. Newton, ao criar o cálculo infinitesimal e ao evidenciar explicitamente a relação entre a lei do inverso do quadrado da distância e a forma elíptica das órbitas, deixou um edifício coerente, de base matemática, que tem permitido aos humanos tocar a "música das esferas".
O aparecimento da terceira lei, a relação entre os quadrados dos períodos e os cubos dos eixos, aparece também descrito no mesmo livro:
"Em 8 de Março deste ano de 1618, se querem datas exactas, [a solução] apareceu na minha cabeça. Mas tinha uma mão infeliz e quando a verifiquei pelo cálculo rejeitei-a por ser falsa. Depois, em 15 de Maio, voltou-me a ideia, que, num novo ataque, conquistou a escuridão da minha mente; concordou tão perfeitamente com os dados fornecidos pelos meus dezassete anos de trabalho com as observações de Tycho que pensei a princípio estar a sonhar".
Note-se que a terceira lei de Kepler, surge inesperadamente, colocando o autor num estado diferente de percepção da informação anterior. Kepler não sonhava e a sua ideia veio a ser partilhada por terceiros e entregue a todos.
Que os físicos podiam não só aspirar como alcançar uma descrição coerente da ordem do mundo havia de ser confirmado pelas gerações seguintes. Mas o mundo é também, à vista desarmada, feito de desordem. Foi então necessário esperar pela geração da termodinâmica - Clausius, Kelvin, Maxwell e Boltzmann -, na segunda metade do século XIX, para que a Física, usando ainda o aparato do cálculo diferencial e integral, introduzisse a noção de entropia, falasse de caos e reconhecesse, humilde, a sua incapacidade de previsão em numerosos casos. O caos é, afinal, a incapacidade real de previsão: causas próximas podem dar origem a efeitos completamente diferentes.
O sentido artístico continuou presente na obra dos físicos mais criativos, mesmo quando o objectivo não era mais a ordem do Céu mas a desordem na Terra (a contradição entre essas duas perspectivas dilacerou alguns pensadores, alvitrando uns o final desordenado de todo o cosmo e propondo outros bolhas localizadas de desordem na ordem etérea universal). Vejamos, por exemplo, a cadência musical que o físico austríaco Ludwig Boltzmann julga ouvir num livro do seu colega britânico James Clerk Maxwell sobre o caos molecular:
"Assim como um músico consegue reconhecer o seu Mozart, Beethoven ou Schubert depois de ouvir as primeiras notas, também um matemático consegue reconhecer o seu Cauchy, Gauss, Jacobi, Helmholtz ou Kirschhoff depois das primeiras páginas. Os escritores franceses revelam-se pela sua extrema elegância formal, enquanto os ingleses, especialmente Maxwell, pelo seu sentido dramático. Quem, por exemplo, não está familiarizado com as memórias de Maxwell sobre a sua teoria dinâmica dos gases? ... As variações de velocidades começam por ser desenvolvidas de forma majestática; de¬pois entram de um lado as equações de estado e do outro as equações do movimento num campo central. Cada vez mais alto paira o caos das fórmulas. Subitamente, ouvimos, como proveniente de tímbales, os quatro batimentos "ponha n = 5". O espírito mau V (a velocidade relativa de duas moléculas) anula-se; tal como na música, uma figura de som baixo, dominante até agora, silencia- se de repente e aquilo que parecia insuperável desvanece-se como que por um golpe de mágica... Não é a altura de saber porque se faz esta em vez daquela substituição. Se o leitor não está a acompanhar o desenvolvimento deve colocar o escrito de lado. Maxwell não escreve música com notas explicatórias... Um resulta¬do segue-se atrás do outro numa sucessão rápida até que, por fim, num clímax inesperado, chegamos às condições para o equilíbrio térmico juntamente com as expressões para os coeficientes de transporte. A cortina cai!"
Quando cai a cortina sobre o século passado, um matemático francês descobre uma desordem, bem bizarra, nos céus. No estudo do problema dos três corpos, o grande Henri Poincaré, avô legítimo do moderno caos, conclui que, mesmo admitindo como boa a descrição newtoniana, ela não é necessariamente fonte de conhecimento futuro. É possível saber tudo hoje sobre os astros, saber tudo sobre o modo como eles se movem e, no fim de contas (no fim das contas!), ignorar absolutamente o sítio onde eles amanhã estarão. Não existia apenas caos no movimento veloz das partículas quase microscópicas, como o pólen numa gota de água, mas também nas partículas astronómicas que varrem incessantemente os céus.
No seu terceiro volume sobre "Novos métodos da mecânica celeste", Poincaré confessou-se espantado com as formas geométricas complexas que via no cosmos, em vez das elipses elementares:
"Quando se tenta descrever a figura formada por estas duas curvas e a sua infinidade de intersecções, cada uma das quais corresponde a uma solução duplamente assimptótica, estas intersecções formam uma espécie de rede, teia ou malha infinitamente fina; nenhuma das duas curvas se pode cruzar a si própria, mas tem de se enrolar sobre si de um modo muito complexo de modo a cruzar os nós da rede um número infinito de vezes. Fica-se impressionado com a complexidade desta figura. Nem sequer a tento desenhar. Nada nos pode dar uma ideia melhor da complexidade do problema dos três corpos".
Uma tal capacidade de observação releva obviamente um enorme sentido artístico. A confirmá-lo está o facto de Henri Poincaré ter exaltado em igual medida a ciência e a arte em "O valor da ciência", publicado em 1920: "Não é senão pela Ciência e pela Arte que valem as civilizações". Aí descreveu a relação artística do homem com o mundo natural, microscópico ou macroscópico, do seguinte modo:
"O cientista não estuda a natureza porque tal é útil. Estuda-a porque tem prazer nisso; e tem prazer nisso porque ela é bela. Se a natureza não fosse bela, não valeria a pena o conhecimento nem a vida não valeria a pena ser vivida... Pretendo significar a beleza íntima que provém da ordem harmoniosa das partes e que pode ser compreendida por uma inteligência pura. (...) É porque a simplicidade e a vastidão são ambos belas que procura¬mos de preferência factos simples e factos vastos; que tomamos prazer ora em seguir os gigantescos percursos das estrelas ora em escrutinar com um microscópio a pequenez prodigiosa que é também uma vastidão ora em procurar nas eras geológicas os traços de um passado remoto que por isso nos atrai."
Deduz-se facilmente que o projecto de Poincaré não teria sorte nenhuma com as actuais agências financiadoras de ciência. Nem o dele nem o de Hilbert. Repita-se, para que conste: "O cientista não estuda a natureza porque tal é útil".
(Um parêntesis apenas para citar um discurso provocatório de Hilbert sobre a relação da ciência com a tecnologia: "Ouve-se hoje muitas vezes falar de hostilidade entre ciência e tecnologia. Não creio, meus caros senhores, que isso seja verdade. Estou absolutamente certo que não é verdade. Não pode, de facto, ser verdade. Não têm, absolutamente nada a ver uma com a outra" )
A ciência, mais do que mãe da tecnologia, é uma forma de arte. Um biógrafo de Newton e Beethoven, interessado portanto tanto pela criação científica como pela criação artística, resumiu assim as posições de Poincaré sobre a beleza do mundo.
"A medida em que a ciência falha em ser arte é a medida em que é incompleta como ciência".
As ciências matemáticas, em particular, são formas de arte. Mas as linhas prosmíscuas de Poincaré ou algumas suas parentes próximas, como as figuras grotescas encontradas pelos matemáticos George Cantor, alemão de origem russa, Giusseppe Peano, italiano, ou Karl Weierstrass, alemão, depressa foram olvidadas. A Matemática escolheu seguir outros caminhos, com o olhar a fugir do horror de certas geometrias para o intelecto se refugiar na tranquilidade de alguns sistemas formais. Bertrand Russel afirmou, no seu livro "Misticismo e Lógica", de 1918:
"A Matemática, quando bem vista, possui não apenas verdade mas beleza suprema - uma beleza fria e austera, como a de uma escultura".
Um autor obscuro chegou a comparar a sensação transmitida pelos famosos "cadernos de notas" do precoce matemático indiano Srinivara Ramanujan às esculturas renascentistas do italiano Miguel Ângelo. No mesmo espírito, o português Fernando Pessoa, pouco importa se antes ou depois de Russell pois não estava em competição com ele, escreveu as conhecidíssimas estrofes:
"O binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo
O que há é pouca gente a dar por isso".
A repetição de exemplos não chega, evidentemente, para provar uma tese. Mas repare-se como, no início do século, a Matemática era vista usando a metáfora escultórica no lugar da anterior metáfora musical, glosada por Kepler e Boltzmann. A Matemática tinha-se imobilizado e isolado. A sua beleza, embora escondida nos silogismos de Russell ou nas séries analíticas de Ramanujan, já não soava ao ouvido de qualquer diletante. Era necessária uma aprendizagem penosa e prolongada da linguagem para só no fim se poder ver a "escultura" aparecer no fundo do túnel.
Mas voltemos à Física. Deixemos de lado a teoria da relatividade de Albert Einstein, que pertence de resto à tradição do fim do século passado, e falemos antes da outra grande teoria física deste século, a mecânica quântica. Esta veio utilizar matemática conhecida como, por exemplo, os espaços de Hilbert, baptizados assim por se situarem no "jardim" da análise funcional que Hilbert visitou, e as matrizes hermíticas, dos "jardins" da álgebra linear.
A mecânica quântica foi descoberta, sob diversas formas, por vários jovens praticamente ao mesmo tempo. Um deles foi o físico alemão Werner Heisenberg, que se encontrava na ilha dinamarquesa da Heligolândia, a restabelecer-se de uma arreliadora febre dos fenos quando formulou a nova mecânica na forma de uma "mecânica de matrizes". No relato que efectua do seu passeio por uma senda desconhecida da Física da época, é curioso notar a motivação empírica já antes patente em Kepler, nos erros de contas, na surpresa e deslumbramento finais:
"Quando os primeiros termos parecerem estar de acordo com o princípio da [conservação] da energia, fiquei bastante excitado e comecei a fazer numerosos erros de contas. Em resultado disso, eram quase três da manhã antes de ter o resultado final dos meus cálculos. O princípio da energia era respeitado para todos os termos, e eu já não podia duvidar da consistência matemática e da coerência do tipo de mecânica quântica para o qual os meus cálculos apontavam. De início, fiquei profundamente alarmado. Tive a impressão que, pelo véu dos fenómenos atómicos, estava a olhar para um interior estranhamente belo e senti quase vertigens com o pensamento que agora tinha de experimentar a riqueza de estrutura matemática que a natureza tão gentilmente estendia diante de mim. Estava demasiado excitado para dormir e assim, quando o novo dia chegou, fiz uma excursão à ponta sul da ilha".
Numa carta à irmã, Heisenberg escreveu mais tarde:
"O facto de estas interrelações mostrarem, em toda a sua abstracção matemática, um grau incrível de simplicidade é um presente que só posso aceitar humildemente. Nem mesmo um Platão poderia acreditar que elas fossem tão belas. Porque essas relações não podem ter sido inventadas; estiveram ali desde a criação do mundo".
O paralelo com Kepler é notável. Num diálogo com Einstein, Heisenberg voltou a bater na mesma tecla:
"Se a natureza nos conduz a formas matemáticas de grande simplicidade e beleza - por formas estou-me a referir a sistemas coerentes de hipóteses, axiomas, etc. - para formas que ninguém encontrou previamente, não podemos deixar de pensar que são "verdadeiras", que revelam uma característica genuína da natureza... Também deve ter sentido isso: a simplicidade quase assustadora e a globalidade das relações que a nature¬za subitamente coloca diante de nós e para as quais não estamos minimamente preparados".
Heisenberg era um descendente assumido de Kepler. A mecânica quântica, pese embora a oposição de Einstein e outros da sua geração, em nome de uma certa estética, foi filha dilecta das ideias da harmonia e da ordem. Um dos jovens companheiros de Heisenberg no desvendar dos mistérios quânticos foi um inglês de poucas falas, Paul Dirac, que fez a melhor apologia da beleza matemática ao dizer:
"É mais importante ter beleza nas suas equações do que tê-las de acordo com a experiência... Se não existe acordo completo com a dos resultados do seu trabalho com a experiência, não se deve ficar desencorajado, porque a discrepância pode bem ser devida a características menores que não estão a ser levadas devidamente em conta e que podem vir a ser clarificadas com o progresso adicional da teoria".
O matemático alemão Hermann Weyl, contemporâneo da fundação da mecânica quântica (escreveu até um ensaio sobre "Mecânica Quântica e Teoria dos Grupos"), declarou-se em sintonia perfeita com Dirac:
"O meu trabalho sempre tentou unir o verdadeiro e o belo; mas, quando tive de escolher entre um e o outro, escolhi normalmente o belo".
Esta escolha revelou-se, na prática, acertada, pois quando uma bela ideia, baseada por exemplo em princípios de simetria, não se mostrava adequada num certo domínio ela acabou por ressuscitar mais tarde, com nova vida, num domínio adjacente ou mesmo diferente. Aconteceu precisamente isso com algumas ideias de Weyl, como a da invarância de padrão, hoje em voga no quadro da unificação das forças fundamentais.
O pintor alemão Albrecht Durer respondeu, logo no século XVI, sucinta e espontaneamente, à questão sobre o que é a beleza em arte: "Não sei!". Poder-se-á dizer o que é a beleza em matemática? Paul Dirac reconheceu a dificuldade da questão:
"A beleza matemática não pode ser definida mais do que a beleza na arte, mas as pessoas que estudam Matemática não têm, em geral, qualquer dificuldade em a apreciar".
Esta não-definição deve ter aparecido independentente em vários espíritos, pois se encontra nesta ou em formas semelhantes noutros autores. Ela resume-se ao conceito de validação pelos pares que funciona tanto na arte como na ciência. É a comunidade artística, seguindo certas tendências e deixando outras, que determina as tensões e os impulsos decisivos para o futuro da sua actividade. É belo aquilo que é achado belo. É mais belo aquilo que for achado mais belo. O mesmo acontece de certo modo na ciência. É verdadeiro aquilo que é julgado colectivamente verdadeiro. É mais verdadeiro aquilo que é julgado mais verdadeiro.
Contudo, insatisfeito com a noção de beleza delimitada pela respectiva aceitação por uma comunidade de apreciadores, Heisenberg definiu tentativamente beleza do seguinte modo:
"A beleza é a conformidade própria das partes umas com as outras e destas com o todo."
As proporções presentes na terceira lei de Kepler para os planetas ou as relações entre energias de riscas espectrais que a mecânica quântica descreve são conformidades das partes entre si e com o todo. E, de entre todas as possíveis conformidades que a imaginação se pode lembrar, têm a particularidade notável de corresponderem à realidade. A beleza, segundo Heisenberg ou Dirac, é um magnífico critério na procura da verdade.
Dois versos do poeta inglês John Keats corroboram essa conclusão dos físicos: "Beauty is truth/ Truth is beauty". As elipses de Apolónio encontram-se no céu. Os espaços de Hilbert e as matrizes hermíticas encontram-se nos átomos. Em contraste, a rede emaranhada de Poincaré, apesar de verdadeira, parece à primeira vista despida de beleza e surge intimidatória na sua contorcida estranheza.
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3 comentários:
Isto tem de ser lido com calma. Mas posso dar-lhe um conselho Prof. Fiolhais? Talvez fosse boa ideia, num blogue, escrever este post por partes ou, melhor ainda, ocultar parte dele com um pequeno link a dizer "Leia o resto" que abrisse o restante. Caso contrário acaba por ocultar um pouco os posts anteriores.
Tem toda a razão, já parti em dois.
Quanto a partir no início com um link para "Leia o Resto", não sei como se faz e os co-autores do blogue também não sabem. Obrigado pela proposta.
Carlos Fiolhais
"A beleza é a conformidade própria das partes umas com as outras e destas com o todo."
Difícil definir a Beleza, não é?
Mas haverá dois tipos de beleza; porque aquele que cria algo «belo» tem uma sensação de beleza de grande intensidade - a sensação que surge qd, depois de muito procurar, encontramos "a conformidade própria das partes umas com as outras e destas com o todo".
Ora isto acontece em todos os ramos da actividade humana, tanto mais quanto mais eles se defrontam com problemas novos.
Uma das áreas onde mais isto sucede é precisamente na Tecnologia.
Os Cientistas têm geralmente um entendimento muito limitado do que seja a Tecnologia; para começar, pensam que a tecnologia é uma aplicação das leis físicas. Estavamos bem tramados se assim se fosse. As leis físicas aplicam-se a modelos ideais, os sistemas reais são demasiadamente complexos.
Certamente que as leis físicas fornecem orientações e «insights» indispensáveis; e que a matemática fornece ferramentas igualmente indispensáveis; mas depois com isso a tecnologia descobre as leis que regem os fenómenos naturais à escala a que precisa deles.
Já imaginaram o que seria calcular uma viga ou projectar uma antena a partir das leis fundamentais? Além de estupidamente complexo, a margem de erro seria imensa.
Mas aonde eu quero chegar é ao seguinte: a sensação de beleza abunda no mundo tecnológico; é quase viciante, um engenheiro fascina-se com a nova linha de adaptação que acabou de projectar, com aquela antena com uma largura de banda maior que o modelo anterior, com a estrutura que dimensionou, etc.
E porque essa sensação de Beleza impregna a actividade tecnológica, ela transborda por todos os lados - na forma que se dá às peças, nos tratamentos de superfícies que para além de eficientes têm de ser belos, no desenho da cablagem, na própria embalagem, etc.
Se abrirem um equipamento electrónico verão que para além de conceitos de eficiência abundam preocupações estéticas - na disposição das peças, no desenho das fichas, dos cabos, das peças auxiliares, dos circuitos etc.
O motor de um autómovel não tem apenas de ser «belo» nas suas especificações - basta olhar para eles para perceber que existe um esforço constante de os fazer cada vez mais estético. E não se trata apenas de uma questão de agradar ao cliente, a maior parte não vê essa beleza - a criação de beleza inerente à actividade tecnológica.
Portanto, quando um cientista fala de beleza quase como se fosse um exclusivo da actividade científica, isso cheira um pouco a provincianismo, como uma pessoa que vai pela primeira vez a uma grande cidade e vem relatar essa extraordinária experiência a pessoas que toda a vida nela viveram.
Eu também não penso que as pessoas em geral pretendam que a Ciência seja «útil»; acho que essa ideia parte sobretudo dos próprios cientistas. Aliás, já há vários anos estava eu a expor a minha teoria do Desvanecimento a um astrónomo e este, à falta de melhor argumento, perguntou-me: "e qual é a utilidade dessa teoria? Porque a ciência existe para ser útil às pessoas!"
As pessoas em geral olham para a ciência exactamente com a mesma expectativa dos cientistas: que ela seja os seus olhos na descoberta do Universo! E olham para os cientistas como aqueles que travam a grande batalha do conhecimento.
é por isso que a coisa mais importante que os cientistas podem fazer em relação à sua imagem publica é trazerem às pessoas a possibilidade de compreenderem melhor o Universo.
Gostei muito de ler este post, muito bem construido, com citações muito a propósito - e dando uma perspectiva muito mais densa e rica à ideia que pretendi expôr no ultimo post no outramargem. Uma beleza!
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