quarta-feira, 13 de agosto de 2008

OS JARDINS SECRETOS DE MANDELBROT 2


Continuação do post anterior, concentrando-me agora nas figuras fractais:

É aqui que surgem as excursões de Mandelbrot ao domínio exótico das figuras irregulares mas auto-semelhantes. Em muitos objectos artificiais da Matemática ou naturais da Física, que à primeira vista parecem, porque demasiado complexos, escapar a qualquer análise quantitativa, existe uma simetria que se traduz no facto simples de as partes serem semelhantes ao todo, no sentido de serem exacta ou estatisticamente uma cópia da totalidade. Esses objectos foram apelidados de "fractais" por Mandelbrot, quando, ao entrar em terras sem nome, viu utilidade na existência de uma designação unificadora. A auto-semelhança mede-se por um número chamado dimensão fractal, cuja ideia remonta ao matemático alemão Felix Hausdorff. Nem as órbitas regulares de Kepler nem a sequência regular dos níveis atómicos examinados por Heisenberg são fractais mas já a rede intrigante de Poincaré o é. O céu mostra-se, hoje e definitivamente, um palco de órbitas profundamente emaranhadas. No reino do microscosmos, por seu lado, é assunto de investigação corrente saber se e como o caos se clássico persiste ou se volatiliza quando se passa a uma descrição quântica.

Mandelbrot parte no seu ensaio sobre os "Objectos fractais" do conceito de movimento browniano, o movimento aleatório experimentado por um pólen na água. Os "jardins de Mandelbrot" começaram assim com um grão de pólen que fertilizou abundantemente. A maior contribuição que algum dia a Botânica deu à Física deve-se ao escocês Robert Brown, que no século XVII observou o pólen na água e identificou o movimento que hoje tem o seu nome. A princípio houve quem pensasse que o pólen teria uma natureza animal para rodopiar no meio líquido, sem nexo aparente, mas fenómeno semelhante ocorre com partículas minerais, reconhecidamente inertes. Se se aumentar o poder de observação, encontra-se dentro do movimento browniano um outro em tudo semelhante ao primeiro. E assim sucessivamente, até onde o microscópio alcança. Ele hoje quase chega às moléculas responsáveis últimas pelo abanar browniano. A trajectória do pólen terrivelmente fragmentada e, para adquirir a certeza de tal facto, basta mirá-la cada vez mais de perto. Mais interessante que esse facto é a circunstância do movimento de tipo browniano se revelar noutros domínios. O astrofísico norte-americano de origem indiana Subrahmanyan Chandrasekhar, que escreveu um livro intitulado "Verdade e Beleza - Estética e Motivações na Ciência" onde fui, em segunda mão, beber algumas das citações anteriores (a Chandrasekhar o que é de Chandrasekhar), confessa-se impressionado pela semelhança do movimento browniano com o movimento das estrelas nas longínquas Pleiades.

Importa, porém, referir que, nos seus trabalhos originais, Mandelbrot partiu das ciências humanas, nomeadamente a observação da frequência das palavras e das flutuações de índices económicos. Por exemplo, a subida e descida da curva da bolsa mantém-se qualquer que seja a escala de observação: horas, dias, meses ou anos. Essa curva fractal é todos os dias acrescentada nos jornais e telejornais, mantendo sempre o aspecto errático anterior. Embora este tipo de trajectórias não fosse de todo desconhecida na Física - o caso do movimento do pólen é o mais evidente mas existem outros - e embora estivessem arrumados a um canto da matemática objectos abstrusos com propriedades de auto-semelhança - a curva contínua sem derivada de Weierstrass, entre outras - coube a Mandelbrot celebrar o casamento entre os objectos naturais e as figuras matemáticas, inaugurando uma subdisciplina e publicitando uma forma diferente de ver o mundo. Das ciências humanas passou rapidamente para as ciências naturais. Ao movimento browniano acrescentou as costas, as montanhas, as nuvens e os agregados de galáxias.

Ouçamos o relato directo do percurso de Mandelbrot, no texto "Panorama da Linguagem Fractal", inserto na edição portuguesa de "Objectos Fractais" que foi publicada pela Gradiva em 1991.

"Quem poderia imaginar, na década de 50, o computador como uma máquina de desenho? Mas um acaso que não sei analisar fez-me formular uma versão pessoal do que viria a ser o tema do caos. O meu projecto estendeu-se e organizou-se, aliás, na solidão mais completa. Senti-o avançar gradualmente, ao ritmo das circunstâncias exteriores que se impunham à minha atenção.

Cada passo trazia a sua surpresa e os "projectos de investigação", que todo o cientista é forçado a compor de tempos atempos, reduziam-se, no meu caso, a glosar sobre o passado recente, em vez de encaminhar para o futuro. Entretanto, colocava todo o meu ardor e persistência a farejar, passo a passo, com o nariz na terra, uma pista vaga, mas que parecia digna de ser seguida, que se verificava, aliás, ficar mais nítida a cada momento e que conseguiu chamar companheiros de estrada cada vez mais numerosos. O ponto de partida (a distribuição das frequências de palavras!) surge apenas, no universo fractal de hoje, como um lugarejo pouco visitado, mal digno de ser assinalado."


É atrevida especulação comparar o tema do caos e da geometria fractal que o descreve com os temas definitivamente validados da mecânica clássica e da mecânica quântica. Mas repare-se que, em comum com Kepler, Heisenberg e outros, se encontra no matemático francês o porfiar, "com o nariz na terra" (de Kepler dir-se-ia, com mais propriedade, com o nariz no céu!), durante anos seguidos, a surpresa ao avistar "terra incógnita" (surpresa progressiva; parece que não ocorreu em Mandelbrot um momento mágico de revelação) e a chamada de novos "companheiros". Os outrora "jardins secretos de Mandelbrot" são hoje terra percorrida por muitos visitantes, não só da Linguística e da Economia como da Matemática, da Física, da Biologia, da Geologia e da Geografia.

Também e embora "a vol d' oiseau" os percorri. Tive o prazer de colaborar na tradução portuguesa de "Objectos Fractais", publicado pela Gradiva, pensando, como germanista português Paulo Quintela, que a missão de "almocreve da cultura", alguém que leva e traz autores nos seus alfobres, apesar de apagada não é completamente inglória. Talvez um dia, no pó e silêncio das bibliotecas seja apenas um vulgarizador dos "jardins fractais" na língua portuguesa. (Não tenho preconceitos em relação à palavra "vulgarizar pois julgo que se deve tornar vulgar o que é invulgar!)

Tudo começou numa conferência internacional na Fundação Calouste Gulbenkian sobre fractais, a propósito do qual Mandelbrot se deslocou a Lisboa. Trazia o seu livro debaixo do braço. Eu estava por perto, conhecia um editor, e o acordo sobre a publicação logo se concluiu. A minha descoberta pessoal das figuras fractais tinha-se dado na disciplina de "Física Computacional" que introduzi nos cursos de Física e Engenharia Física da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. Descobri então como era não apenas fácil mas também instrutivo, desenvolvendo até aptidões pouco cultivadas no ensino tradicional, desenhar e explorar figuras auto-semelhantes, com o auxílio de um computador. Com os estudantes, tirei retratos do conjunto de Mandelbrot, que foi baptizado pelos matemáticos Hubbard e Douady, e aos conjuntos de Julia, do nome do discípulo de Poincaré que perdeu o nariz na Primeira Guerra Mundial. Suponho que é difícil manejar esses objectos sem se ficar seduzido por eles. É-se tocado por uma beleza difícil de descrever, persuasiva mas ao mesmo tempo invulgar.

A sedução pela imagem tem uma longa história em Matemática mas conheceu também, como atrás foi dito, prolongado hiato no século dezanove e inícios do século vinte. Quem é capaz de se deixar atrair por um mundo sem imagens tangíveis? O mal da ausência de imagens é diagnosticado por Mandelbrot:

"Os grandes matemáticos Lagrange e Laplace vangloriaram-se da ausência de imagens nas suas obras, dando assim um novo sentido (e que mereceria aliás um exame pormenorizado por parte dos historiadores da ciência e das religiões) ao termo "iconoclasta", o destruidor de imagens. De início, a sua tarefa foi difícil; por exemplo, o tradutor americano do "Système du Monde", de Laplace, respondeu ao autor acrescentando ao texto os mais variados diagramas (poder-se-á pensar que o autor os terá traçado nas suas notas, tendo-os depois deliberadamente omitido do texto publicado). Por esse facto, o comprimento do texto quase duplicou na tradução em causa. Mas os iconoclastas persistiram até ao ponto de dominarem a matemática e mesmo muitas das ciências. Por exemplo, a mecânica quântica foi um triunfo dos algebristas. Ontem os iconoclastas pareciam ter triunfado em todas as frentes, mesmos nas escolas e nos liceus. Hoje, a geometria fractal é um dos motores de uma reacção viva contra essa corrente".

Mandelbrot propõe-se nada mais nada menos do que destruir os destruidores de imagens! Com a preservação da imagem, acontece o regresso em força da estética à ciência, agora não apenas de uma forma vaga e metafórica. Ao fazer ciência, produzem-se, por um feliz acaso, obras que alguns, artistas plásticos incluídos, não têm pejo em classificar de artísticas.

O próprio cientista não fica imune aos efeitos estéticos. Escreve Mandelbrot:

"O aspecto que mais salta à vista, e o mais inesperado, não é de carácter científico, mas puramente estético. Aqueles que encontraram alguma elegância em certas ilustrações dos "Objectos Fractais" de 1975 podem-se considerar profetas. Com efeito, continuando nesta via, deparou-se-me um número cada vez maior de objectos geométricos de beleza crescente, incontestável, surpreendente e ambígua. Alguns são de um realismo desconcertante. Outros parecem, à primeira vista, fantásticos e completamente estranhos, mas depressa lhes encontramos ressonâncias muito antigas, tornando-se quase familiares".


A beleza, como foi dito, não se define, conhece-se. Mas, se se aceitar a definição heinsenbergiana de beleza, não há talvez melhor conformidade das partes entre si e destas com o todo do que provém do simples facto de as partes serem cópia do todo. Se se aceitar a asserção de Keats de que o belo o é por ser verdadeiro, atente-se no extraordinário número de objectos na natureza que podem ser descritos com a ajuda das figuras fractais. Numa árvore, os ramos são cópias reduzidas do todo. Numa nuvem, os flocos são cópias minúsculas do conjunto. Num agregado de galáxias, as galáxias são cópias pequenas da totalidade. Os físicos agarraram logo nos fractais como se de coisa própria se tratasse (Mandelbrot, embora reconhecendo-se na tradição da termodinâmica, é, por formação, um matemático), a ponto de a certa altura a revista "Physical Review Letters", a mais prestigiada publicação da Sociedade America¬na de Física, preencher um terço do seu conteúdo com artigos à volta do caos e dos fractais.

Mandelbrot é um publicitário eficaz, que não precisa de pedir ajuda a agências especializadas. E os publicitários são, por exigência da sua própria profissão, uns exagerados. Não penso que venha daí mal algum ao mundo. Um cientista que produza e não divulgue a sua produção é um cientista oculto e, portanto, merecidamente ignorado. Há quem critique em Mandelbrot o culto exacerbado da personalidade (tem, de facto, um ego monumental a avaliar pela quantidade impressionante de publicações próprias que fez questão de inserir na bibliografia dos "Objectos Fractais"), a falta de parcimónia de algumas afirmações suas, a eventual falta de consonância com algumas das matemáticas tradicionais. Há até quem questione todo o objectivo e qualquer utilidade da geometria fractal.

Sobre esse tópico, o matemático norte-americano Steven Krantz entabulou com Mandelbrot uma polémica no número de Outono de 1989 da revista "Mathematical Intelligence". Os fractais, segundo Krantz, não acrescentariam nada ao mundo, tratando-se tão só de imagens com grande beleza mas maior leviandade, pois instilavam uma ideia errada da matemática e dos matemáticos. Os fractais necessitavam, horror!, de máquinas para serem produzidos. Serviriam até para os governos se equivocarem na distribuição dos financiamentos das ciências matemáticas, preterindo a topologia ou a teoria dos números em favor dos gráficos de computadores.

Não tenho a pretensão de demonstrar que Krantz está errado. Possui, evidentemente, a razão dele, uma vez que cada um é livre de gostar do que quiser e gostos não se discutem. Tenho apenas algumas intuições esparsas sobre a questão. Quanto ao último argumento não vejo que colha, até porque a topologia ou a teoria dos números não ficaram imunes ao vendaval da fractalidade. Quanto ao computador como instrumento de investigação ele está aí, para consumo e fruição geral. Não estava cá no tempo de Kepler mas é boa ficção histórica dizer que ele não o teria desdenhado para chegar mais depressa às suas três leis. Que economia de meios teria sido se Ramanujan tivesse teclado as suas fórmulas em TEX e logo as tivesse enviado por correio electrónico para o seu amigo George Hardy, em Cambridge. Quanto à ideia errada sobre os matemáticos - entendendo-se por ideia errada qualquer outra que não seja a de demonstradores solitários de teoremas - deve dizer-se que os fractais têm dado azo a um sem número de teoremas e respectivas demonstrações, embora a nudez do pensamento abstracto apareça amiúde sob as vestes diáfa¬nas de imagens coloridas (que serão obscenas para os matemáticos mais puros!). O que Douady e Hubbard fizeram a propósito do conjunto de Mandelbrot é pura matemática, ou mesmo mais, matemática pura. Nem Krantz se atreve a negá-lo. Quanto ao pretenso defeito de que enfermam as imagens por serem bonitas, elas foram aquelas que apareceram e não outras. Releia-se Mandelbrot sobre a prioridade da sua ciência sobre a sua arte:

"É espantoso, e digno de ser mais uma vez sublinhado, que este aspecto gráfico não tenha surgido por o termos sabido pro¬curar, mas sim como um "bónus" inesperado, que acompanhou suces¬sos da investigação científica."

Seguindo o ditado "preso por ter cão e preso por não o ter", há mesmo quem, admitindo existir nos fractais uma certa beleza, prenda Mandelbrot por as suas imagens não serem sufi¬cientemente belas. Assim, um crítico cultural do semanário alemão "Die Zeit" afirmou que as imagens fractais não se podiam classificar como arte, pois lhes faltava um elemento de escolha ou de expressão livre. Com efeito, na mais famosa dessas imagens tudo está contido numa fórmula iterativa no plano dos números complexos. Finalmente, quanto ao facto de os fractais não acrescentarem conhecimento novo, bastará folhear, tomando o exemplo da Física, a "Physical Review Letters", onde os avaliadores rejeitam mais de metade dos artigos submetidos por neles presumirem irrelevância ao neles não vislumbrarem novidade. Existe já, presumo, validação pelos pares, servindo a excepção de Krantz para confirmar a regra. Contudo, para ter a certeza que existe regra, o melhor é aguardar a prova definitiva do tempo.

Mas chega de polémica inconsequente. Os fractais, filhos da ciência do século vinte, são verdadeiros e serão também belos, embora estranhos, como alguma da arte do nosso século. O pintor alemão de origem russa Vassily Kandinsky escreveu:

"Toda a obra de arte começa tecnicamente do mesmo modo que o cosmos - através de catástrofes que finalmente fazem nascer, do barulho trovejante dos instrumentos, uma sinfonia a que se chama música das esferas; criar uma obra de arte é criar um mundo."

O mundo fractal evocado por esse logotipo que é o conjunto de Mandelbrot liga-se com mais facilidade aos estranhos quadros de Kandinsky do que às clássicas esculturas de Miguel Ângelo. A geometria fractal, ao aceitar o primado, pelo menos provisório, da descrição sobre a explicação, é também ela, reconheça-se, um pouco estranha. Mas, como diria o publicitário Fernando Pessoa, se de início se "estranha", depois "entranha-se". Quanto à estranheza científica, o novo traz sempre consigo o estigma da diferença. Quanto à estranheza artística, ela é decerto indispensável. De facto, e embora possam ser enganadoras e perigosas as "teorias da informação estética", é curioso notar que algumas delas pretendem considerar a surpresa como uma das marcas do génio numa obra de arte. Uma peça de arte deve ser suficientemente equilibrada para suscitar reminiscências do mundo exterior percepcionado mas, ao mesmo tempo, suficientemente ousada para conseguir projectar o mundo interior do artista, ampliando visivelmente para o exterior o acto único e individual da criação. Um objecto de arte deve ser harmonioso, como as esculturas de Miguel Ângelo, mas deve também conter um elemento unusual a perturbar a proporção, como acontecerá porventura no conjunto de Mandelbrot.

As elipses de Kepler são com certeza mais estranhas que as circunferências ptolomaicas. As secções de órbitas de Poincaré são bem mais estranhas que as secções repetitivas do problema de dois corpos. A desmesurada estranheza da mecânica quântica de Heisenberg, por contraponto com a mecânica clássica, tem sido considerada por alguns físicos motivo de desconfiança. O que está o estranho a fazer em todos esses lados? Será o estranho simplesmente a marca do novo? Vale, em conclusão, a pena recuar a Francis Bacon, um dos criadores do método científico, no século quinze, para se entender a razão da estranheza: "Toda a beleza excelente contém alguma estranheza no seio da proporção." É que, tanto na ciência como na arte, o estranho torna a beleza superior.

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