sexta-feira, 18 de maio de 2007

Manuscritos do Mar Morto

Aquele que liberta os prisioneiros, devolve a vista aos cegos, levanta os
abatidos. (…)
E o fruto … não tardará para ninguém.
E o Senhor fará coisas gloriosas que nunca foram como Ele …
Porque Ele curará os feridos, e dará vida aos mortos e trará boas-novas aos
pobres.
«Fragmento da Ressurreição» um dos 11 fragmentos que integram o Apocalipse Messiânico, manuscrito 4Q521, escrito há 2100 anos, em 100 a.C..

Comprei recentemente o livro do historiador Geza Vermes sobre os Manuscritos do Mar Morto, de que se assinalam sessenta anos da descoberta, publicado pela Ésquilo. Geza Vermes tem um percurso pessoal fascinante resumido pelo próprio nesta excelente entrevista publicada no Independent: Geza Vermes: A child of his time. Nascido em 1924 de pais judeus, os três convertaram-se ao catolicismo quando Geza tinha sete anos, numa tentativa vã de fuga ao anti-semitismo da sua Hungria natal - os pais integrariam os cerca de 500 000 judeus húngaros que pereceram no Holocausto. Vermes foi ordenado padre, doutorou-se em teologia em 1953 - com uma dissertação sobre o contexto histórico dos Manuscritos do Mar Morto - abandonou o catolicismo quatro anos depois, regressando mais tarde às suas raízes judaicas.

Embora controverso, Geza Vermes é um dos mais reputados estudiosos da época que abrange os referidos documentos, considerados uma das maiores descobertas arqueológicas (de manuscritos) de todos os tempos. Recentemente descobri que o Instituto Piaget publicou o livro sobre os Manuscritos do Mar Morto do teólogo católico André Paul e será certamente interessante comparar as duas abordagens aos textos que há 60 anos tanta polémica levantam.

De facto, desde a descoberta dos primeiros documentos nas cavernas da região de Qumram - Khirbet Qumran, a «ruína da mancha cinzenta» localizada na margem noroeste do Mar Morto, a 12 km de Jericó e cerca de 22 km a leste de Jerusalém - que os textos escritos em hebraico, aramaico e grego encontrados em onze cavernas, datando de 250 a.C. ao primeiro século da era comum, têm despertado uma intensa curiosidade e levantado uma enorme celeuma. Mais livros e artigos têm sido escritos sobre Qumran que sobre qualquer outro local arqueológico no Médio Oriente. No entanto, têm sido os pergaminhos o foco das atenções daqueles que têm interpretrado a história de Qumran, essencialmente teólogos e historiadores da religião. A arqueologia propriamente dita e a análise arqueológica contextual do local foi até há pouco tempo um aspecto quasi secundário.

Logo em 1948, um ano após os primeiros achados, Eliezer Sukenik, corroborado por John C. Trevor, presidente da American School of Oriental Research - agora Instituto Albright de Jerusalem -, lançou a hipótese essénia, assente nos relatos dos historiadores Flávio Josefo e Filos de Alexandria. As escavações realizadas nas proximidades pelo padre dominicano Roland de Vaux, da École Biblique et Archéologique Française de Jerusalém, suportaram esta hipótese com a descoberta de umas ruínas que o padre concluiu tratar-se de uma espécie de convento dos essénios. Mas a hipótese essénia está longe de ser tão consensual quanto se pensa e desde os anos sessenta que é contestada por cientistas como Norman Golb , Robert Eisenman ou K.H. Rengstorf (já falecido), que sustentam que os manuscritos foram removidos de Jerusalém por refugiados da guerra com os romanos. Fugindo para leste, estes refugiados teriam escondido os pergaminhos na segurança das cavernas de Qumran.


Há quase um ano, foi publicado o artigo «Qumran-The Pottery Factory» no Biblical Archaelogy Review (artigo reservado a assinantes) de dois arqueólogos da Israel Antiquities Authority, Yizhak Magen e Yuval Peleg, que suportavam os críticos da hipótese essénia. Segundo estes autores, Qumran não tem nada a ver com essénios ou mesmo com os pergaminhos. Qumran, afirmaram, seria apenas uma fábrica de olaria - os nossos leitores podem ler uma análise do artigo no New York Times - registo necessário.

Segundo os dois arqueólogos, quando os romanos destruiram Qumran em 68, durante a revolta judaica, o local era o centro de uma indústria oleira pelo menos há um século e antes disso faria parte da cadeia de fortificações que se erguiam ao longo da fronteira leste de Israel. Os autores concluiram que «A associação entre Qumran, as cavernas e os pergaminhos é assim uma hipótese sem qualquer suporte factual arqueológico».

Um pouco depois, foi publicado na revista Revue de Qumran (e na Nature) um artigo deveras interessante que não só confirma a hipótese essénia como permite olhar para a comunidade essénia com uma nova luz.

Uma equipa internacional multidisciplinar procurou a latrina comunitária descrita em dois dos Manuscritos, o Manuscrito da Guerra e o Manuscrito do Templo, por indicação de James Tabor da Universidade da Carolina do Norte em Charlotte, que relembrou as descrições de Flávio Josefo sobre a praxis higiénica (bizarra) seguida religiosamente pelos essénios.

De facto, estes seguiam à letra a Torah, mais concretamente as ordens de Moisés sobre latrinas e sua utilização. Josefo menciona que os essénios, seguindo estritamente o seu livro sagrado, construíam as latrinas longe do local onde viviam e como visitar esse local longínquo era considerado trabalho, sábado era um dia em que a latrina era anátema para os essénios!

A análise bacteriológica do local permitiu localizar inequivocamente a latrina dos essénios - no local indicado nos pergaminhos o que confirma a hipótese essénia - e esclareceu ainda algo que intrigava os arqueólogos que investigam o local.

De facto, todos os dados disponíveis indicam que os essénios eram muito selectivos em relação a quem aceitavam na comunidade: jovens saudáveis - e existia um exame de saúde - de pelo menos 20 anos ( e preferencialmente bem parecidos já que para os essénios o aspecto físico traduzia a «pureza» da alma).

No entanto, de acordo com Zias da Universidade de Jerusalém «O cemitério de Qumran é constituido pelo grupo menos saudável que já estudei em 30 anos». Menos de 6% dos homens (e esta era uma comunidade masculina, claro) chegavam aos 40 anos, enquanto os cemitérios de Jericó, a uns meros 12 km, indicam que na mesma altura quase metade dos homens viviam mais de 40 anos!

Mas a religiosidade dos essénios, que seguiam estritamente os ditames da Torah, não só em relação a latrinas como em relação às purificações rituais que se seguiam à sua utilização, fazia com que proliferassem - em vez de morrerem ao sol - todos os parasitas intestinais cujos ovos foram abundantemente encontrados nos locais escavados. Parasitas que os rituais de «purificação» que envolviam imersão total (olhos, boca, etc.) em piscinas de água parada - um excelente caldo para ténias, lombrigas e restantes parasitas - garantiam infectar toda a comunidade!

Como nota Zias, os essénios «mostram o que acontece quando se leva as coisas bíblicas demasiado fundamentalista ou literalmente, como fazem em muitas partes do mundo, e quais são as consequências últimas [desse fundamentalismo]».

Embora as observações de Zias sejam oportunas nesta época conturbada por fundamentalismos sortidos, o que acho mais relevante sobre este artigo é a confirmação da necessidade de interdisciplinaridade que o Norberto já apontou e da reiteração que o diálogo entre disciplinas deve ser alargado às duas «culturas». De facto, esta colaboração entre as ciências sociais e as ciências «duras» permitiu esclarecer - penso eu - uma polémica que se arrastava há quatro décadas.

13 comentários:

J. Norberto Pires disse...

Muito, muito, muito, interessante.
Sim senhora.
:-)

Anónimo disse...

Estes parasitas sao mas e uma cambada de ateus!

António Parente disse...

Bom post. Só não sei o que significa "ciência dura".

Fátima André disse...

Excelente post :-)
Se puder deixar aqui mais dados para pesquisar a análise do artigo «Qumran-The Pottery Factory» no New York Times (por ex. data do artigo).
Obrigada.

Palmira F. da Silva disse...

Olá fátima:

O link para o artigo do NYTimes está no texto, mas é necessário fazer um registo para o ler.

Mas o artigo é:
Archaeologists Challenge Link Between Dead Sea Scrolls and Ancient Sect

By JOHN NOBLE WILFORD
Published: August 15, 2006

Fátima André disse...

Olá Palmira

Registada eu estou, mas sem o nome ou a data do artigo, não estava a conseguir chegar lá.
Obrigada pela informação.

Anónimo disse...

Gostei deste post. Ocorreu-me de imediato a imagem dos banhos de purificação no Ganges em que as carcaças de animais mortos vão boiando descontraidamente ao lado dos crentes. Haja alguém que me convença que a fé não cega as pessoas!

O seu post recordou-me uma questão que há muito tempo me coloquei: nesta época, em que as exigências na produção e manuseamento de produtos alimentares é tão exigente, as hóstias não deviam ser pré-embaladas em saquetas de plástico, ou saquetas de folha de alumínio? Como cada vez mais vai sendo obrigatório que aconteça com os alimentos à unidade ou os condimentos ou as entradas num restaurante.

Esta questão não tem nada a ver com o eu poder ser mais ou menos ateu, ou mais ou menos crente e eu até nem concordo com alguns exageros desta política sanitária porque me parece que uma sociedade tão “esterilizada” não é benéfica, mas como eu costumo dizer -Isto é negócio!

Artur Figueiredo

Anónimo disse...

Ocorreu-me que apesar de tudo, encontram-se na Bíblia importantes normas de higiene em domínios como a prevenção de doenças (Levítico 15), o tratamento de resíduos (Deuteronómio 23:12-14; Levítico 13-47-58)), o isolamento de doentes(Levítico13:1-14,57), o sepultamento dos mortos (Levítico 11:24-28),a protecção da qualidade da água (Levítico11:34-36), entre muitos outros exemplos, sendo que as mesmas são muito semelhantes às práticas modernas . Além disso, são muito relevantes se considerarmos que foram muito anteriores a Louis Pasteur.

Também me ocorreu que a classe médica secularizada ridicularizou um médico austríaco, no século XIX, só porque ele disse que era necessário lavar as mãos entre duas operações cirúrgicas.

Anónimo disse...

Sim, a bíblia difunde muitas normas de comportamento importantes, sanitárias e não só, que eram norma corrente em muitas civilizações anteriores e, os estudos mostram que, mesmo actualmente, uma das principais causas de proliferação das infecções nos hospitais continua a ser a desvalorização da lavagem das mãos por parte dos técnicos de saúde. Chocante!

Artur Figueiredo

Rui leprechaun disse...

Beauty... give us Beauty, please!!!

Um pequeno excerto do indizivelmente maravilhoso "Thunder, the Perfect Mind", também conhecido por "Hino a Ísis", ou o culto da Grande Mãe que é Deus também! :)


For I am the first and the last.
I am the honored one and the scorned one.
I am the whore and the holy one.
I am the wife and the virgin
I am the mother and the daughter.
I am the members of my mother.
I am the barren one
and many are her sons.
I am she whose wedding is great,
and I have not taken a husband.
I am the midwife and she who does not bear.
I am the solace of my labor pains.
I am the bride and the bridegroom,
and it is my husband who begot me.
I am the mother of my father
and the sister of my husband
and he is my offspring.
I am the slave of him who prepared me.
I am the ruler of my offspring.
But he is the one who begot me before the time on a birthday.
And he is my offspring in due time,
and my power is from him.
I am the staff of his power in his youth,
and he is the rod of my old age.
And whatever he wills happens to me.
[...]
For I am knowledge and ignorance.
I am shame and boldness.
I am shameless; I am ashamed.
I am strength and I am fear.
I am war and peace.
Give heed to me.
I am the one who is disgraced and the great one
[...]
Be on your guard!
Do not hate my obedience
and do not love my self-control.
In my weakness, do not forsake me,
and do not be afraid of my power.
For why do you despise my fear
and curse my pride?
But I am she who exists in all fears
and strength in trembling.
I am she who is weak,
and I am well in a pleasant place.
I am senseless and I am wise.
[...]
I am the one who is honored, and who is praised,
and who is despised scornfully.
I am peace,
and war has come because of me.
And I am an alien and a citizen.
I am the substance and the one who has no substance.


(Dos manuscritos de Nag Hammadi)

Anónimo disse...

Também é verdade que os estudos científicos demonstram que os judeus religiosos são o sector da população que menos sofre de obesidade em virtude das normas bíblicas sobre alimentação.

Além disso, está demonstrado que as pessoas religiosas consomem menos bebidas alcoólicas, tabaco, drogas e anti-depressivos do que os não religiosos.

Normalmente os não religiosos tendem a preencher o seu vazio existencial de maneiras que dão cabo da saúde, da carteira e causam um bem estar temporário.

Como diriam os evolucionistas, ser um ateu está longe de ser uma vantagem adaptativa.

Anónimo disse...

Já se ser crente dá a vantagem patente no comentário anterior, eu prefiro ir fumando uns cigarros.
Artur Figueiredo

Anónimo disse...

A escolha é sua.

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