sábado, 2 de junho de 2007

A Tabela Periódica

«A História do Carbono» interpretada pela companhia de dança Chitraleka.

Em Outubro de 2006 a Royal Institution organizou um evento que pretendia escolher o melhor livro de divulgação de ciência de todos os tempos. Na «corrida» figuraram clássicos como «A viagem do Beagle» de Charles Darwin, «O Gene Egoísta» de Richard Dawkins, «A Dupla Hélice» de James Watson, «A República de Plutão», de Peter Medawar, «King Solomon’s Ring» do pai da etologia Konrad Lorenz ou «A vida de Galileu», de Bertolt Brecht.

O livro eleito foi «A tabela periódica», do escritor italiano Primo Levi, de que já falámos no Rerum Natura, a propósito do livro «Se Isto É um Homem». O livro, publicado originalmente em 1975, foi publicado em 1998 pela Gradiva com o título «O sistema periódico», mas esgotou muito rapidamente e apenas possuo uma edição em inglês. A beleza poética da prosa de Levi merece mais que uma tradução apressada pelo que peço a compreensão dos leitores se transcrevo alguns parágrafos em inglês.

De facto, como nos diz no capítulo do Ferro, Levi descobriu poesia na tabela periódica, «a ponte, o elo perdido entre o mundo das palavras e o mundo das coisas». «A nobreza do Homem, adquirida por cem séculos de tentativas e erro, reside em tornar-se conquistador da matéria e eu entrei em Química porque queria permanecer fiel a esta nobreza. Porque vencer a matéria é compreendê-la, e compreender a matéria é necessário para compreender o Universo e nós mesmos: e que portanto a Tabela Periódica de Mendeleev, que justamente naquelas semanas aprendíamos laboriosamente a desenredar, era poesia (...) ».

O livro, que Levi descreveu como «histórias de um químico militante», reúne 21 capítulos com o nome de um dos elementos da tabela periódica, que evocam na maior parte episódios da vida do autor. A prosa brilhante de Levi, sem perder a objectividade científica da química que lhe permitiu manter a sanidade mental em Auschwitz, mais que um livro de divulgação científica é uma obra-prima da literatura que denota e transmite a paixão do autor pela química, facto que certamente pesou na atribuição do prémio, como confirma o jornalista de ciência Jon Turney, mediador do evento. «Ler Primo Levi por causa da sua ciência seria uma estranha razão para entrar no seu seu mundo», reconhece Jon Turney. «As pessoas deveriam lê-lo para descobrir o que significa ser humano.»

O livro de certa forma traça o percurso da vida de Levi, entre o argon do primeiro capítulo que simboliza os seus antepassados judeus, um gás nobre ou raro que aparece na Natureza na forma de gás monoatómico, sem estabelecer qualquer tipo de ligação química, até ao pluralista carbono do capítulo final, o elemento que estabelece ligações com muitos outros elementos, formando desde compostos orgânicos a organometálicos, «é o único capaz de ligar-se a si mesmo em longas cadeias estáveis» e é parte integrante da escrita de Levi.

Três das histórias em particular, Argon, Zinco e Ouro descrevem a trajectória dos judeus em Piemonte, iniciando-se com a lírica evocação das pequenas comunidades judaicas, comparadas ao argon. O elemento ocioso, presente no ar numa percentagem muito maior que o dióxido de carbono indispensável à existência de vida na Terra, permite uma reflexão poética acerca do que a sua nobreza implica e a sua raridade insinua:

There are the so-called inert gases in the air we breathe. They bear curious Greek names of erudite derivation which mean "the New", "the Hidden", "the Inactive", and "the Alien." They are indeed so inert, so satisfied with their condition, that they do not interfere in any chemical reaction, do not combine with any other element ... They are also called the noble gases — and here there’s room for discussion as to whether all noble gases are really inert and all inert gases are noble. And, finally, they’re also called rare gases, even though one of them, argon (the Inactive), is present in the air in the considerable proportion of one percent, that is, twenty or thirty times more abundant than carbon dioxide, without which there would not be a trace of life on this planet.

The little that I know about my ancestors presents many similarities to these gases. (...) It can hardly be by chance that all the deeds attributed to them, though quite various, have in common a touch of the static, an attitude of dignified abstention, of voluntary (or accepted) relegation to the margins of the great river of life.’

O Zinco, uma elegia da beleza imperfeita da química, apresenta-nos um retrato de uma Itália nos primórdios da campanha anti-semita em que os judeus foram comparados a uma «impureza» a expurgar da sociedade italiana. Este é talvez o capítulo em que Levi melhor transmuta o discurso científico numa incomparável obra-prima humanista:

«In order for the wheel to turn, for life to be lived, impurities are needed, and the impurities of impurities in the soil, too, as is known, if it is to be fertile. Dissension, diversity, the grain of salt and mustard are needed; Fascism does not want them, forbids them, and that’s why you’re not a Fascist; it wants everybody to be the same, and you are not.

Para além do Zinco, com a sua força alegórica, gosto especialmente do conto do potássio, em que mesmo aspectos práticos rotineiros como a destilação são venerados e que inclui ainda reminiscências dos rituais alquímicos de Jābir ibn Hayyān;

«Distilling is beautiful. First of all, because it is a slow, philosophic, and silent occupation, which keeps you busy but gives you time to think of other things, somewhat like riding a bike. Then, because it involves a metamorphosis from liquid to vapour (invisible), and from this once again to liquid; but in this double journey. up and down, purity is attained, an ambiguous and fascinating condition, which starts with chemistry and goes very far. And finally, when you set about distilling, you acquire the consciousness of repeating a ritual consecrated by the centuries... »

Neste capítulo Levi apresenta uma das mais belas alegorias do livro a propósito de um incidente ocorrido quando um Levi desapontado com a falta de teoremas da Química resolve secar um solvente orgânico destilando-o com potássio em vez de sódio:

I thought of another moral...and I believe that every militant chemist can confirm it: that one must distrust the almost-the-same (sodium is almost the same as potassium, but with sodium nothing would have happened), the practically identical, the approximate, the or-even, all surrogates, and all patchwork. The differences can be small, but they can lead to radically different consequences, like a railroad's switch points; the chemist's trade consists in good part in being aware of these differences, knowing them close up, and foreseeing their effects. And not only the chemist's trade.

O último capítulo, Carbono, consiste numa fantasia poética sobre o percurso de um átomo de carbono ao longo de milhões de anos, inicialmente aprisionado num sedimento de rocha calcária, que passa pelo cérebro do escritor e integra as suas lucubrações num fugaz instante do seu ciclo. Instante tão fugaz na «vida» desse átomo que realça a insignificância da espécie humana.

One, the one that concerns us, crosses the intestinal threshold and enters the bloodstream: it migrates, knocks at the door of a nerve cell, enters, and supplants the carbon which was part of it. This cell belongs to a brain, and it is my brain, the brain of the me who is writing; and the cell in question, and within it the atom in question, is in charge of my writing, in a gigantic minuscule game which nobody has yet described.(...)
Our atom is again carbon dioxide, for which we apologize: this too is an obligatory passage; one can imagine and invent others, but on earth that's the way it is. Once again the wind, which this time travels far; sails over the Apennines and the Adriatic, Greece, the Aegean, and Cyprus: we are over Lebanon, and the dance is repeated. The atom we are concerned with is now trapped in a structure that promises to last for a long time: it is the venerable trunk of a cedar, one of the last; it is passed again through the stages we have already described, and the glucose of which it is a part belongs, like a bead of a rosary, to a long chain of cellulose. This is no longer the hallucinatory and geological fixidity of rock, this is no longer millions of years, but we can easily speak of centuries because the cedar is a tree of great longevity

Termino com um excerto do Azoto, que ilustra a importância espiritual que a Química assumiu para Primo Levi e que o autor tão bem transmite ao longo das páginas do livro. Excerto que ajuda a perceber porque foi a química um «antídoto contra o fascismo» para Levi e porque «o cheiro limpo da química» suavizou «um odor fétido na história ou filosofia ensinada nas escolas fascistas»:

The trade of chemist (fortified, in my case, by the experience of Auschwitz), teaches you to overcome, indeed to ignore, certain revulsions that are neither necessary or congenital: matter is matter, neither noble nor vile, infinitely transformable, and its proximate origin is of no importance whatsoever. Nitrogen is nitrogen, it passes miraculously from the air into plants, from these into animals, and from animals into us; when its function in our body is exhausted, we eliminate it, but it still remains nitrogen, aseptic, innocent.

«A Tabela Periódica» é um livro marcante e perturbador, em que todos os capítulos, que cintilam com o brilho do ouro que é tema do capítulo 10, inflamam mais o leitor que a destilação sob potássio o fez ao solvente.

3 comentários:

Jorge disse...

Interessante.

Mário Montenegro disse...

Achei muito interessante, de entre as várias listas de melhores livros de divulgação da ciência que têm sido elaboradas nos últimos anos, esta da Royal Institution, pois entre os "concorrentes" estavam vários livros não tradicionalmente vistos como de divulgação científica (o que, aliás, provocou uma série de discussões a esse propósito), como por exemplo duas peças de teatro: a já muito citada "Vida de Galileu" de Brecht e a "Arcadia" do Tom Stoppard.
No fundo este meu comentário era para chegar aqui: aconselho várias leituras da "Arcadia". É uma obra-prima e merece todo o destaque que lhe possamos dar. A "Vida de Galileu" já merece um tempinho de descanso ;)

Cláudia disse...

Este ano (2012) completam 50 anos que os gases nobres perderam um pouco de sua nobreza.

Os gases nobres – hélio, neônio, argônio, criptônio, xenônio e radônio* – são assim chamados pois na época da denominação eram julgados como sendo não reativos, ou seja, permaneceriam imaculados e não reagiriam com nenhum outro elemento.

A perda desta ´nobreza´ ocorreu em 1962 quando o químico inglês Neil Bartlett conseguiu realizar a síntese do composto hexafluoroplatinato de xenônio Xe+[PtF6]−.

A ideia de reagir algum composto com um gás nobre ocorreu à Neil Bartlett quando percebeu que os colegas obtinham sucesso de reação do poderoso agente oxidante PtF6 (hexafluoreto de platina) até mesmo com o oxigênio.
O2 + PtF6 –> O2PtF6

Para lembrar o feito de Bartlett a University of British Columbia, no Canadá, realizou em março seminários sobre a reatividade dos gases nobres.

Fonte: A half century for the noble gases

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