domingo, 3 de junho de 2007
O segredo do Unicórnio
O único vestígio desse animal mitológico que povoou o imaginário medieval e se prolongou por vários séculos, é um chifre direito retorcido que se supunha ornava a fronte da cabeça de cavalo, para alguns, de cão, para outros, do unicórnio.
As representações mais antigas do unicórnio do Physiologo grego do Séc. IX e bizantino (Séc. XI) representam o chifre único recurvado, como o de uma cabra ou o de um antílope.
O unicórnio aparece representado em pinturas e tapeçarias medievais e renascentistas, como no tríptico ‘Jardim das delícias terrenas’ de Bosch, de que aqui vemos um pormenor. Geralmente, surge representado como um cavalo imaculadamente branco, com um chifre direito e retorcido na fronte, acima do nível dos olhos.
Na descrição do Bestiário de Cambridge, o Unicórnio é um animal violento capaz de lutar com elefantes, que vence ao furar-lhes o ventre com o seu único chifre. Afirma-se ainda que nenhum foi capturado vivo. Embora possível de se matar, seria impossível de capturar. Outros bestiários sugerem que a sua captura tem que ser feita pela intervenção de uma jovem virgem, de quem o unicórnio se aproxima dócil. O Physiologo Grego afirma ainda que tem capacidade de purificar águas envenenadas.
Há uma sexualidade explícita na imagem do longo chifre do unicórnio junto de figuras femininas jovens.
A lenda do Unicórnio consolida-se durante a idade média na Europa. E há vestígios da crença na existência deste animal mitológico até ao Séc. XVII.
Contudo, para lá de uma das mais belas peças do tesouro real de S. Denis, no museu de Cluny, que teria sido oferecido a Carlos Magno, por Aaron, rei da Pérsia, e de um exemplar gravado no Museu de Liverpool, não há praticamente vestígios desse animal mitológico.
Na verdade, as relíquias guardadas e apresentadas como chifres de unicórnio não são mais do que rostros de narvais. O narval (Monodon monoceros) é um extraordinário mamífero marinho que demorou muito tempo a ser identificado e conhecido pelos europeus. Por duas razões. Trata-se de uma animal difícil de observar no mar, que se desloca em águas profundas e muito frias do Ártico, sempre próximo do gelo. Sabe-se que os narvais nadam por baixo do gelo, impossibilitando segui-los. Por outro lado, os bestiários medievais assentaram as suas descrições em textos antigos gregos, que se reportam a um imaginário mediterrâneo, onde não há narvais.
O rostro do narval não é mais do que incisivo superior esquerdo transformado, que cresce desmesuradamente nos machos da espécie, podendo atingir 2,6m de comprimento, como no exemplar do Museu de História Natural de Paris que aqui vemos. Os narvais, que são baleias com dentes, têm apenas dois dentes, os incisivos superiores. Nos machos o incisivo esquerdo tem esta invulgar hipertrofia.
Para que serve um dente assim a esta notável baleia?
O dimorfismo sexual – presença de características claramente diferentes entre os dois sexos, como tamanho, chifres, cores ou plumagens - é uma característica que se encontra presente em muitas espécies animais, dos insectos aos vertebrados. A cauda do pavão, por exemplo, é um órgão cuja função é atrair fêmeas para acasalar. E são os machos com caudas mais ornamentadas os mais bem sucedidos. Os veados vermelhos usam os seus chifres para lutarem entre si, sendo que os mais fortes conseguem ficar com mais fêmeas para acasalar, formando haréns de 2 a 5 fêmeas. Deve-se a Darwin a formulação da notável teoria de selecção sexual, publicada em 1871, na sua obra “The Descent of Man and selection in relation to sex”, que permitiu explicar a evolução de órgãos e estruturas sexualmente dimórficas, algumas completamente prejudiciais à sobrevivência dos seus portadores, como a cauda do pavão, mas mesmo assim seleccionadas. A teoria de Darwin foi tão revolucionária para a época que, à excepção do brilhante Ronald Fisher, somente cem anos depois começou a ser testada seriamente. E o resultado foi a sua absoluta confirmação, ponto por ponto.
Só há duas hipóteses para a existência de um órgão tão singular: ou serve para se alimentar ou para competir sexualmente. Até hoje, nenhum caso estudado de órgãos tão sexualmente dimórficos como este surgiu relacionado com a alimentação. Todos se revelaram relacionados com o sexo.
O dente do narval será, assim, um órgão como os chifres do veado vermelho, que serve para lutar com outros machos pelo acesso às fêmeas. Porque os machos com um dente mais longo teriam mais sucesso, o dente terá aumentado de tamanho ao longo da evolução da espécie.
Além de possuírem uma impressionante armação, os machos de veado vermelho, são cerca de 50% maiores que as fêmeas. O dimorfismo sexual de tamanho está sempre relacionado com a existência de intensa competição física entre os machos pelo acesso às fêmeas.
Também os machos de narval são maiores do que as fêmeas - cerca de 30%. As fêmeas de narval têm uma cria de cada vez e de dois em dois anos, razão pela qual compensará claramente ao machos procurarem monopolizar acasalamentos com várias fêmeas, já que isso lhes pode garantir um maior número de descendentes.
A presença de um dente em forma de aríete foi uma solução invulgar em termos evolutivos, mas que serve a mesma função que as armações dos veados vermelhos, que estes todos os anos perdem e têm que desenvolver para estarem em condições de lutar com os outros machos, na época reproductiva seguinte.
Ao menos o narval só tem que desenvolver o dente uma vez.
O museu de Scrimshaw do Café Peter’s, no porto do Faial, tem um belo exemplar de dente de narval, exemplar que terá sido oferecido por um viajante. Mas, há um dente de narval, transformado em elegante bengala de marfim, com castão de prata, que se encontra na secção de antropologia do Museu de História Natural da Universidade de Coimbra, cuja história permanece envolta em mistério. Sabe-se que a peça pertenceu a um alto dignatário do Peru. Mas, desconhece-se como foi lá parar, uma vez que o narval não viaja por aquelas águas.
Quantas mitologias, quanta imaginação terá originado este dente tão singular?
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2 comentários:
Muitos também pensavam que os relatos de polvos ou lulas gigantes eram mitológicos, até que recentemente se encontraram lulas gigantes, do tamanho de um autocarro.
Também não deixa de ser interessante que o passado está cheio de lendas de dragões cuja descrição corresponde e a própria representação pictórica inteiramente aos dinossauros.
Provavelmente algo está profundamente errado com o modo como a comunidade cienttífica reconstroi a história do passado com base nas suas premissas evolucionistas.
Caro Paulo Gama da Mota,
Excelente artigo em que funde conceitos biológico e da mitologia.
À evidente função de exibição sexual do dente modificado no narval há que acrescentar uma outra: ecolocalização, com os objectivos de localizar presas ou buracos no gelo para respirar.
Um estudo recentemente, com origem na Harvard School of Dental Medicine, refere uma forte enervação do dente esquerdo. Esta forte concentração de uma malha sensorial proporcionaria a este animal um maior percepção do ambiente físico que o rodeia.
Esta hipótese ainda se encontra sob forte debate para a sua verificação pois as fêmeas, desprovidas de tal estrutura anatómica, estariam em “inferioridade” evolutiva perante os machos.
Trabalhos de Martin Nweeia, Harvard University
Luís Azevedo Rodrigues
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