quinta-feira, 28 de junho de 2007

NÓS E A CHINA

Há alguns anos, quando visitei Macau, pude verificar ao vivo algo que já sabia das figuras dos jornais e dos livros: que se trata de um impressionante sítio do mundo, o local com a maior concentração de pessoas por metro quadrado. Mas, ao mesmo tempo, pude perceber algo mais difícil de transmitir por imagens: trata-se de um local onde se deu um encontro pacífico de culturas: a chinesa, oriental para nós (para os chineses o seu império sempre foi o do “meio”) e a portuguesa, ocidental (na altura do primeiro encontro, Portugal era o país mais ocidental do ocidente). Tratou-se de um convívio enriquecedor para as duas partes, pacífico porque baseado no consentimento e na tolerância, que, longe de terminar com a passagem de Macau para a China, passou a revestir-se de um carácter diferente. Se é no encontro de culturas que a humanidade tem encontrado novos caminhos históricos, Macau é um caso exemplar que o deve continuar a ser. No final do século passado houve um adeus português "sui generis", uma despedida que pressupõe a continuação de uma secular miscigenação de culturas.

A interpenetração cultural não passou, curiosamente, pela disseminação da língua portuguesa, que era bastante minoritária (perdia de longe para o cantonês e até para o inglês, dada a proximidade de Hong Kong) e que naturalmente verá a sua presença decrescer progressivamente. Também não passou pela hegemonia da religião católica, também muito minoritária e impotente perante a forte tradição das religiões orientais. Mas passou, por exemplo, pelo intercâmbio artístico-literário (não esqueçamos que o nosso maior poeta esteve em Macau!) e científico-tecnológico. Este último não é suficientemente conhecido e merece por isso ser destacado. Iniciou-se logo na época das Descobertas: foram jesuítas portugueses que introduziram conhecimentos de astronomia muito mais avançados do que aqueles que dispunham os imperadores chineses (e que permitiam prever eclipses com precisão elevada) e foram também os portugueses que introduziram na China instrumentos como os relógios mecânicos (que depressa conheceram uma popularidade inusitada na corte imperial) e os telescópios. A ciência moderna é uma “invenção” ocidental e chegou à China pelos navegadores portugueses...

Que ciência e tecnologia apesar de relacionadas se podem distinguir fica claro do facto de a China ter visto surgir vários artefactos tecnológicos - a bússola, o papel, a pólvora, etc. – e, apesar disso, ela não ter conhecido nada parecido com o período de “explosão de conhecimento” que foi o Renascimento. A marca da ciência sempre foi a curiosidade, a indagação, o prescrutar do mais além (“non plus ultra” é a divisa na capa do livro “Novum Organum”, de Francis Bacon). Foi, embora misturada com outras, uma atitude de curiosidade, logo científica, que impeliu, na época do Renascimento, os navegadores mais ocidentais da Europa, da ponta da Europa, a ir mais para ocidente, para sul, e depois para oriente uma vez dobrado o Cabo da Boa Esperança. Os chineses, pelo contrário, que se colocavam a si próprios no centro do mundo, não tiveram a mesma atitude de curiosidade. Foram os portugueses que “descobriram” os chineses e não o contrário. Por que foi Colombo quem descobriu a América e não um navegador chinês que descobriu a América? Sabemos hoje que os chineses dispunham nos séculos XV e XVI de meios formidáveis de navegação (alguns dos seus navios “metiam no bolso” as frágeis caravelas lusitanas) e os seus almirantes só não vieram para ocidente por manifesta falta de curiosidade. Houve um que chegou com portentosa frota à costa oriental de África, mas voltou para trás, não passando o cabo pelo caminho inverso. De certo modo, é um acto compreensível: para quê sair do meio - a palavra China significa precisamente meio - se já se está (ou julga estar) no meio do mundo?

Nos séculos XV e XVI, Lisboa era seguramente uma das principais metrópoles do mundo ocidental. A ciência, invenção ocidental, tinha portanto de ser levada para o oriente pelos portugueses, a partir do porto de Lisboa, durante meses e meses de navegação ousada, até chegar ao palácio de Pequim. E, como é sabido, chegou para ficar: hoje a ciência deixou de ser um património exclusivamente ocidental para ser um bem universal, partilhado por todos. A China é actualmente um país que participa muito activamente no esforço científico mundial em todas as áreas e que, graças a apostas certas na tecnologia, tem tido índices de crescimento notáveis. Se houve há quinhentos anos uma passagem do testemunho científico de ocidente para oriente, há hoje uma passagem de testemunho no sentido inverso quando muitos dos melhores alunos de ciência e muitos jovens cientistas nos EUA e até na Europa são chineses. É significativo que na Ásia se encontrem os melhores alunos de matemática do mundo. E que muitos produtos de base tecnológica consumidos no mundo global venham da China.

Chegámos à China, quando Portugal era moderno, com a ciência e a tecnologia na mão. Infelizmente, à expansão e ao avanço seguiu-se a contracção e o atraso. O nosso futuro passa por seguir o exemplo que hoje nos vem do oriente...

7 comentários:

Anónimo disse...

Olá Carlos,

Adiciono esta pequena nota (lateral) ao teu post, que decerto não te surpreenderá. Está à vista de todos nós que a China será uma das maiores potências económicas e atentos a isso estão já os norte americanos que incentivam a aprendizagem da língua chinesa. Por exemplo, verifico que pela universidade (UCB) estão espalhados imensos panfletos a anunciar aulas de chinês grátis para toda a população universitária! E nos infantários, já há imensas crianças (filhos/as de americanos) a aprender chinês. Dizia-me há dias um colega americano, de origem american: “a minha filha de 3 anos fala chinês e inglês ao mesmo nível. Eu estou a aprender chinês com ela”.
Serve este exemplo de alguma lição para nós portugueses?

M Elvira Callapez

Anónimo disse...

"Serve este exemplo de alguma lição para nós portugueses?"

Nao.
Porque os chineses sao por enquanto e pelas proximas decadas uma nacao de produtores de bens de consumo e nao de consumidores. Os maiores mercados de consumo ainda sao anglo-saxonicos pelo que a lingua franca mundial permanecera o ingles.
Quando (e se) a economia chinesa der o salto evolutivo para uma verdadeira sociedade de consumo tornar-se-a (ia) verdadeiramente o maior consumidor do mundo de bens de consumo (e nao materias primas) forcando uma mudanca de lingua franca. O cliente tem sempre razao.
Nos anos 70 e 80 tambem se afirmava a boca cheia que a lingua do futuro era o japones...

Anónimo disse...

Em relação à citação:
"Os chineses, pelo contrário, colocados no centro do mundo, não tiveram a mesma atitude de curiosidade. Foram os portugueses que “descobriram” os chineses e não o contrário. Por que foi Colombo quem descobriu a América e não um navegador chinês que descobriu a América?"

aconselho o livro 'Guns, Germs, and Steel, Jared Diamond, W. W. Norton & Company' que responde com grande profundidade e densidade à última questão da citação e à questão base de o porquê de terem sido os europeus a 'conquistar' o mundo. Este livro foi reconhecido com o prémio Pulitzer.

João Nogueira

Fernando Dias disse...

Caro Carlos Fiolhais,

Com a devida consideração, permita-me que em relação ao sentido da mensagem deste post, do ponto de vista do “quem ganhou mais com quem e o quê”, apresente um ponto de vista diferente.

“A ciência invenção ocidental levada para o oriente pelos portugueses”?

“Há hoje uma passagem de testermunho no sentido inverso”?

Se conseguíssemos estudar um pouco melhor, os escritos antigos chineses, e sem o habitual etnocentrismo, vislumbraríamos um raciocínio apuradamente lógico-formal. Duas civilizações distintas puderam inferir o que chamamos de lógica formal e, no entanto, deram-lhe destinos completamente diferentes.

A ciência tradicional chinesa (no seu tempo antigo +/- 1000 anos) baseou-se num sistema formal tão eficiente quanto a do ocidente (no seu tempo moderno +/- 400 anos), e ambas permitiram as variedades de místico e de mágico tanto quanto era possível imaginar. O desenvolvimento e a complexidade dos métodos lógicos da China antiga seria digno de uma análise mais profunda. Não se pode ignorar que a civilização chinesa atigiu patamares elevados em todos os campos. O pensamento chinês permite-nos ver falhas no nosso sistema lógico, tivéssemos flexibilidade para o reconhecer.

É claro que é com narrativas (ocidentais ou orientais), mais ou menos etnocêntricas, que construímos mundos. Em todo o caso já podíamos estar melhor elucidados acerca do fenómeno pendular da História, e do “quem influenciou quem”, pelo menos desde o tempo dos pré-socráticos, se nos tivéssemos colocado num ponto em que pudéssemos avistar a linha do horizonte mais por largo.

Se aprendermos progressivamente a abandonar esta tendência de apego etnocêntrico, podemos começar a estimar que as narrativas não só não são puras como não têm um ponto fixo absoluto. O que aconteceu nos nossos tempos áureos, (por mais pílulas douradas de encontros amigos entre culturas que tomemos), como não poderia ter sido de outra maneira, foi uma tentativa de imposição dos nossos pontos de vista, ou não foi? Jesuitas uummm… Mesmo assim não foi possível… Apesar de tudo o pêndulo estava do nosso lado. É a vida…

O período da explosão da ciência moderna não passa de mais um pontinho entre muitos outros pontinhos também brilhantes desse movimento pendular da História. Só que dito pela nossa boca presumida, como não podia deixar de ser, até parece um absoluto. Mas não nos devíamos deixar embevecer tanto, o mundo ainda não acabou…

Mas eu também não tenho a certeza. Se calhar, estou a sonhar.

Anónimo disse...

A China será uma grande potência económica? Pelo número de habitantes, com certeza. Mas se o regime político se mantiver, isso não é bom para ninguém. Nem para os ocidentais, pelo menos para aqueles que prezam a civilização ocidental, a mais avançada do planeta, nem para o povo chinês submetido a uma ditadura deplorável.

Relativamente à questão da língua, é necessário começar por reconhecer que a língua chinesa tem tudo o que poderia ser inventado para a tornar difícil. Não existe um alfabeto. A escrita é ideográfica e recorre a milhares de símbolos que têm de ser memorizados, uma tarefa que apenas se torna viável se se começar em tenra idade. Quem começar a aprender chinês em idade adulta pode, quando muito, balbuciar os sons necessários para se fazer entender, mas será incapaz de escrever. Ou seja, será um analfabeto. E mesmo na fala terá muitas dificuldades, porque cada som pode ser articulado com meia dúzia de tonalidades, já de si difíceis de aprender (apenas os chineses cultos pronunciam todas) e um ligeiro desvio de tonalidade significa outra coisa qualquer, frequentemente uma inconveniência.

Por isso, não acredito que a língua chinesa alguma vez venha a impôr-se fora da China. Os próprios chineses aprendem inglês com todo o empenho. E fazem eles muito bem. O inglês conquistou, com todo o mérito, o estatuto de língua universal. Num mundo cada vez mais globalizado, a insistência na conservação das várias línguas existentes e, sobretudo, as tentativas desesperadas de alguns países (vide o caso de Espanha, por exemplo) para promoverem a sua própria língua, apenas servem propósitos nacionalistas.
Jorge Oliveira

Anónimo disse...

Li, no dia em que foi publicado, o texto do Carlos e o comentário da Elvira; a indicação para o fazer tinha sido dada pela Elvira, que sabe do meu interesse, em termos de investigação académica (antropologia), na comunidade chinesa no Grande Porto; a Elvira sabe também que ando a aprender chinês, pois ao longo detes 2 anos de aprendizagem da língua tem ela ouvido alguns dos meus desabafos quanto a esta experiência. Desafiou-me a Elvira a comentar o texto no início; não o fiz por falta de tempo; tendo sido desafiada de novo, envio então alguns comentários.

a ideia de que a nossa 'modalidade de colonialismo' foi de aceitação mútua e pacifista é uma ideia construída a partir dos ideias da nação como pensados pelo Estado Novo, e que acabou por ter derivados vários, sendo que a mais conhecida seja tlavez a teoria do luso-tropicalismo de G Freyre. No caso particular de Macau aconselhava a leitura do livro de J Pina cabral 'Between China and Europe'.Algumas desses ideias de cruzamento de cultura sem violência poderão aí ficar esclarecidas.

Quando visitei Macau e Hong Kong há já perto de 20 anos, fiquei bastante surpreendida pela falta de conhecimento das linguas coloniais (português no primeiro e inglês no segundo) em ambos os territórios. Percebo hoje como isso diz muito quer dos contextos coloniais que da mentalidade chinesa.E zhongguó quer dizer não exactamente 'terra do meio', mas sim 'terra do centro' - e como sabemos o valor simbólico de uma centralidade não é o mesmo que o de uma medianidade.

Quanto ao 'elogio' do desenvolvimento tecnológico e económico que a China vive e promove de momento, chamo a atenção para os enormes custos quer ambientais, quer sociais que o processo já está a acarretar. Tendo-me cruzado com investigadores de várias nacionalidades e de várias áreas (a antropologia tem esta vantagem da sua transversalidade), várias vezes a China veio ao de cima em conversas. Lembro-me em particular de um sueco da agência de desenvolvimento daquele país dizer o seguinte: China faced two options: to develop and to take care of the environmental issues, that ment a slower development; or to develop first and then to worry about the environment; they chose the latter. E o que vai passando para fora da China é já não só os problemas ligados ao ambiente, mas os grandes problemas a nível social que a situação está a criar, nomeadamente no mundo rural e no êxodo para as cidades. Bastar-lhes-ia ler sobre a revolução industrial na GB do sec XIX para ficarem a saber de modo antecipado as consequências do que processo que têm em mãos; só que a escala do mesmo vai ser agravada pelas diferenças todas que há entre a lentidão do sec XIX e a rapidez brutal do sec XXI. Mas na boa tradição da 'terra do centro' ignoram, na sua maioria, os benefícios dessa lição europeia. A leitura do livro 'O século Chinês' do jornalista italiano F Rampini poderá a ajudar a ter um quadro mais realista da China actual.

Quanto à centralidade ou 'imperialidade' do mandarim, lembro só que um cidadão chinês falará naturalmente e no mínimo 2 linguas: o dialecto da sua província mais o mandarim. Na escolarização poderá vir a aprender outras, nomeadamente linguas ocidentais, mas não só, pois o mundo a oriente é também ele vasto. Esta capacidade 'culturalmente natural' de se falar mais que uma língua já é algo que não é 'culturalmente natural' nas crianças ocidentais - realidade essa que os fluxos migratórios estão, e ainda bem, a mudar de modo irreversível.

o interesse pessoal em aprender uma língua e um alfabeto novo tem a ver, no meu caso, com o entender melhor a mentalidade chinesa; muito se aprende de uma estrutura cultural e seus modos de pend«samento, através dos modos como essa lingua se estrutura. E logo no primeiro ano fiquei a perceer porque falam os chinese o português como falam, nomeadmente a sua dificuldade com os tempos verbais: é que no chinês os verbos não têm formas temporais, são sempre enunciados no 'nosso' infinitivo (sendo que a indicação temporal é dado por outors elementos na enunciação linguística). E espero que a idade adulta não seja obstáculo para progredir na aprendizagem doa língua falada e da escrita; já a manifesta falta de tempo para estudar o será...

Paula MOta Santos

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Belo monumento nos oriente.

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...