No dia dia 19 de Janeiro de 2006, a Companhia de Teatro do Porto Seiva Trupe estreou a peça de teatro «Oxigénio», escrita por dois químicos, Carl Djerassi, o «inventor» da pílula contraceptiva, e Roald Hoffmann, Prémio Nobel da Química em 1981. Ambos os autores se destacam não apenas no campo científico como pelas suas produções literárias que incluem obras fabulosas que transformam a divulgação de ciência em literatura (ou vice-versa).
Oxigénio, uma peça de teatro em 2 actos e 20 cenas, decorre em Estocolmo em duas épocas distintas, 1777 e 2001, data em se comemorou o centenário do Prémio Nobel. Sendo os dois autores químicos não é de espantar que seja a química o tema aparente da peça, a discussão pela Comissão Nobel de Química da atribuição de um Nobel retroactivo, para trabalhos anteriores a 1901. Na realidade esta peça aparentemente leve, divertida, irónica e com uma certa pitada de mistério - afinal parece tratar-se de resolver quem descobriu o oxigénio, o químico francês Lavoisier, o farmacêutico sueco Scheele ou o pastor inglês Priestley - é muito mais profunda que uma primeira análise revelaria.
O leitor/espectador é convidado a mergulhar nos bastidores da produção científica e das questões que mobilizam os cientistas, assim como se apercebe do que mudou, nomeadamente o papel da mulher na ciência, e o que permanece constante na comunidade científica nos 230 anos que medeiam os dois cenários. Como os autores indicam, «as questões éticas em torno das precedências e descobertas, situadas no cerne desta peça, são tão actuais hoje como eram em 1777». Assim como é no mínimo curioso recordar que Lavoisier, o químico revolucionário, era um político conservador enquanto Priestley, o político radical, era um químico conservador.
Djerassi já era conhecido do público nacional desde 2004, data em que Luis Filipe Borges (Produções Fictícias) encenou a peça «Esse Espermatozóide é Meu!» no Teatro da Trindade, baseada num texto do cientista. E algumas das obras de Djerassi são hoje em dia quase incontornáveis, como «O dilema de Cantor».
Roald Hoffmann, um sobrevivente dos ghettos e dos campos de trabalho da sua Polónia natal, é um comunicador nato e talvez um dos cientistas que melhor faz a ponte entre as «duas culturas» de que falava C.P. Snow. Na sua página, Roald, que foi o anfitrião de um documentário da PBS (Public Broadcasting Service) intitulado «The World of Chemistry», convida-nos a entrar no seu mundo «entre a química, a poesia e a filosofia», mundo esse espelhado nos livros «Chemistry imagined: Reflections on Science» e «The Same and not the Same». O último, que tem as tensões inerentes à química como tema, toca, na linguagem única de Roald, aspectos de sociologia, psicologia, ética, ecologia, filosofia e filosofia da química.
Depois de ler os posts do Desidério e alguma da literatura por ele recomendada apercebi-me que na realidade o Roald, de uma forma magistral, abordou quimicamente algumas questões mais frequentes em obras filosóficas, patentes no próprio título do livro que interroga a identidade em química, que não é tão simples como se poderia pensar. Outras interrogações de Roald, como qual é a melhor forma de representar moléculas numa folha de papel, se na notação química usamos ícones ou simbolos ou se esta notação representa o real ou o ideal, tornam o livro fascinante para todos, químicos e não químicos.
Por outro lado, Roald aponta que a síntese de moléculas não só desafia a epistemologia (será que os químicos descobrem ou «inventam» novas moléculas?) como desafia contraintuitivamente os nossos conceitos de natural e desnatural, isto é, não é fácil dizer o que é natural e o que não é em química. Roald tenta explicar porque, numa altura em que a química tem para muitos uma conotoção negativa, as pessoas dizem preferir produtos «naturais» não obstante o seu quotidiano estar recheado de produtos sintéticos. Aliás, como a dona da mercearia onde por vezes compro fruta, que insiste em dizer que os seus vegetais não têm «químicos» - o que é um total absurdo-, para muitas pessoas a própria palavra «químicos» é quasi um termo pejorativo. Num mundo tornado possível (e mais belo, basta pensar nas cores com que a síntese de pigmentos agraciou o nosso quotidiano) graças à química e aos novos e velhos materiais tornados acessíveis a todos, num mundo em que todos discutem os efeitos de reacções químicas sortidas - por exemplo, em relação a poluição ou ao CO2 e ao efeito de estufa - a ignorância de química e dos processos químicos mais simples é quasi paradoxal.
Assim, o fio condutor do livro, para além de realçar o aspecto criativo/artístico da química que de acordo com Roald é ignorado pela maioria dos filósofos da ciência e relegado como despiciendo pelos que tentam «mecanizar» a química, é a apresentação ao grande público de aspectos insuspeitos da química. No livro podemos ler ainda que o conhecimento científico, neste caso químico, impede que as pessoas sejam «alienadas», «empobrecidas», que se sintam «impotentes, incapazes de agir» e que «a ignorância da química constitui uma barreira ao processo democrático» pelo que «as pessoas também têm uma responsabilidade - elas precisam de aprender química suficiente para resistir às palavras sedutores de, sim, peritos químicos que podem ser reunidos para apoiar toda e qualquer actividade nefária».
Pensando no que se disse e escreveu cá no burgo em relação à co-incineração, no sucesso de banhas da cobra como a homeopatia e em alguns alarmes do passado recente em relação a aditivos alimentares supostamente cancerígenos que afinal eram simplesmente... ácido cítrico (encontrado no sumo de um vulgar limão), só posso secundar o que escreve Roald em relação à necessidade de uma melhor educação química. Assim como secundo a sua ênfase de que embora a ciência não dê soluções para tudo, a compreensão de ciência é certamente necessária para a promoção e assunção plena da cidadania.
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3 comentários:
Olá.
Estudando níveis de desenvolvimento de consciência, verifica-se que a seguir a um nível de consciencia em que uma pessoa pensa estratégicamente, pragmáticamente, cientificamente e que supostamente se segue a um nível que se diz que se pensa miticamente (inclui Deus), há um nível de consciencia cada vez mais crescente nos meios alternativos e que está a alastrar para o meio empresarial, que busca a igualdade, a tolerância, a espiritualidade, sistemas naturais, etc. Este nível supostamente inclui o nível anterior, muito embora haja muita reacção pois, se bem vejo nestas discussões, o transpessoal é algo não muito bem visto. E portanto, admiro-me que surja quem possa dizer que surjam banhas da cobra como a homeopatia, e naturopatia, e coisas do género pois supostamente estes surgem num nível acima, que é mais abrangente. Quem fundamenta esta teoria de níveis de consciencia, diz que as pessoas num determinado nível não conseguem ver as de outro nível acima (entendê-las por assim dizer), e portanto, é certo que muita fricção existe. Já vi pessoas que estudaram medicina convencional por exemplo e que depois foram estudar a alternativa e tentam usar as duas em várias situações. Ainda há quem vá ainda estudar as tradições shamanicas e/ou milenares e inclui-las também.
No final disto, a filosofia é usar o que funciona. Não interessa o que for, desde que funcione. Ou seja, produza resultados supostamente positivos. Numa altura que vejo as discussões de filosofia aqui no blog em que o que se procura é discutir argumentos, procurar saber da sua validade ou não, a qualidade de informação, pergunto-me se esses não servirão para chegar a alguma conclusão, ou seja, atingir certos resultados. Certamente o é, mas como geralmente dizem os cientistas que usam as mesmas premissas que os filósofos, "estamos confortáveis com as incertezas." Ou seja, é certo que estão confortáveis com as incertezas. A questão é que se pode estar incerto, pode-se não ter todas as respostas e isso é importante reconhecer, mas pergunto-me porque razão algo que poderia ser tão antagónico com as ideias pragmáticas e racionais de algumas pessoas possa ser o que está a ser atraído, e então, as ideias espirituais e transpessoais começam também a fazer parte do discurso corrente. É o sucesso do yoga, do tai-chi e meditação e coisas do género que cada vez está presente e que no final de tudo, parece tão antagónico. Mas quando o objectivo são resultados a atingir, tudo vale. Afinal, não é tão fácil viver nas incertezas. Nem nas certezas. Vivemos certos confortavelmente nas incertezas, ou incertos confortavelmente nas certezas?
Caro Rui:
Mesmo não entrando nessa estória dos «níveis de consciência» a homeopatia é banha da cobra pura e dura, isto é, os remédios homeopáticos não passam de água vendida a preço de medicamentos.
A história de que a água tem «memória» das moléculas que solvatou e pode exercer o efeito destas (benéfico apenas, claro) é um disparate químico total! Só mesmo não sabendo algo de química é que se pode engolir essa!
Mas mesmo não percebendo nada de química fico abismada que alguém acredite que tendo a água «memória» tão longa que resiste a n diluições não se «lembre» de tudo o resto que solvatou: lixos sortidos, excrementos, desinfectantes, etc..
E só mesmo não percebendo como actuam os medicamentos é que se pode acreditar que há passes de mágica que permitem obter apenas os efeitos benéficos de uma qualquer molécula/medicamento sem o resto.
Em relação à homeopatia não tenho qualquer dúvida ou incerteza: tenho a certeza absoluta que é banha da cobra!
Entendendo a sua questão, pergunto-me porque razão então a homeopatia e todas as medicinas alternativas, bem como praticas alternativas como o yoga, o tai-chi e a meditação estão a ser cada vez mais usadas pelas pessoas e entrando em meios que supostamente teriam uma posição antagónica a estes dos alternativos. O outro dia li que a Unilever (grande empresa com vários produtos em várias áreas) foi fundada sob principios quakerianos, outras grandes empresas multinacionais fazem workshops em que envolve caminhada sobre o fogo, meditações transcendentais, batucadas africanas, risoterapias e tudo o mais. É atracção? E o sucesso do The Secret? Pode ser tudo considerado banha da cobra mas o que é certo é que esta está mais profífera que nunca e supostamente vindo de pessoas que dizem ter um entendimento mais abrangente (em inglês, whole) de tudo. Será que é mesmo assim?
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