Por João Boavida
Eugénio Lisboa, Poemas em tempos de guerra suja. Lisboa: Guerra & Paz, 2022.
É um livro de poesia feito de indignação e de revolta, na linha de muitos outros que nascem da indignada consciência moral dos seus autores. A poesia sempre foi uma arma.
Lembremos, por exemplo, esse livro mítico que é a Praça da Canção, de Manuel Alegre, e a importância que teve no despertar de consciências contra um sistema opressivo que, à custa de uma visão fora de tempo e sem justificação para sustentá-lo, mantinha uma guerra dilacerante para nós e para os povos das colónias.
Lembremos também o entusiasmo que o livro gerou, as cópias clandestinas, umas ainda a stencil, outras já impressas, que andavam em Coimbra entre os estudantes, e a rapidez com que se espalharam por todo o país; lembremos as canções que originou, que ainda hoje nos emocionam porque se tornaram hinos à liberdade e para sempre ficaram ligadas a esses tempos empolgantes.
Lembremos algumas das vozes que as imortalizaram, como José Afonso e Adriano Correia de Oliveira, e sem as quais esses tempos não seriam, na memória de todos nós, o que continuam a ser, emocionantes e incomparáveis.
A poesia pode ser uma arma, e mais mortífera que aquelas que para matar foram feiras, isto é, sem sangue mas com ideias e sentimentos de justiça e de humanidade. Por tudo isto que este livro é oportuno e mostra a sua força contra uma certa amorfia que parece atravessar alguma intelectualidade portuguesa em relação à guerra de Putine e à invasão bárbara da Ucrânia.
É disso que se trata e, desde o título, porque é, de facto, uma «guerra suja» e a sua intenção é lutar, com poemas, pela consciência moral que se revolta com o que está a acontecer. «Nas guerras vence-se, mas não se ganha. Há sempre um vencedor, um vencido e dois perdedores», diz Eugénio Lisboa na, introdução, sendo, portanto, segundo o autor, mais um «serviço inútil».
Mas talvez não seja. Em primeiro lugar, porque compete a cada um fazer o que pode para evitar uma ignomínia destas, depois, porque esta guerra ficará, em pleno século XXI, como a imagem do brutal colonialismo que a URSS (de que Putine é um representante exemplar) andou, durante décadas e décadas, a acusar os outros e que ela fazia melhor e mais brutalmente que ninguém (lembremos a Hungria e a Checoslováquia), e que continua a fazer (lembremos a Geórgia, a Chechénia, a Transnistria e agora a Ucrânia).
A história verá esta guerra como mais uma negra e suja página na grande lista de guerras negras e sujas de que está cheia. Putine e o seu bando até podem vir, no fim, a cantar vitória, e acrescentar, ao seu imenso país, mais algumas regiões, como têm feito sempre (a ganância não tem limites) mas o seu gesto ignóbil e cobarde não tem perdão nem o futuro lho perdoará.
Poesia cortante e acerada.
«Putininio
reptilínio
latrocínio
assassínio
extermínio
curvilíneo morticínio…» (p. 42).
reptilínio
latrocínio
assassínio
extermínio
curvilíneo morticínio…» (p. 42).
Como todas, desde a fábula do lobo e do cordeiro, esta guerra também tem a sua «receita»:
«Encontre-se um pretexto
qualquer.
Dê-se a volta que um texto
requer.
Cuide-se bem do contexto
a rever.
Propague-se o hipertexto
com saber.
Usar então o pretexto
que houver.
A guerra que está no texto
requer,
ENTÃO,
Bombardear o contexto.
Morrer
estava previsto no texto» (p. 65).
«Encontre-se um pretexto
qualquer.
Dê-se a volta que um texto
requer.
Cuide-se bem do contexto
a rever.
Propague-se o hipertexto
com saber.
Usar então o pretexto
que houver.
A guerra que está no texto
requer,
ENTÃO,
Bombardear o contexto.
Morrer
estava previsto no texto» (p. 65).
Poesia maioritariamente em sonetos, mas com outras formas poéticas. Como redondilhas, de que respigo, por exemplo:
«Homens do CAPA–GÊ-BÊ
Têm grande sangue frio:
Mata-se de A a ZÊ
E sempre com grande brio» (p. 57).
«Homens do CAPA–GÊ-BÊ
Têm grande sangue frio:
Mata-se de A a ZÊ
E sempre com grande brio» (p. 57).
Ou esta:
«Imaginem Rosa Casaco
eleito nosso presidente!
Rimaria um tal velhaco
Com um cargo tão eminente?
«Imaginem Rosa Casaco
eleito nosso presidente!
Rimaria um tal velhaco
Com um cargo tão eminente?
Mas ser eleito presidente
de uma Rússia tão augusta
este CAPA-GÊ-Bê doente
não perturba nem vos assusta? (p.80).
É certo que nem só da guerra de Putine estes poemas tratam, mas ele anda sempre por ali como um fantasma:
«Ruínas onde foram ontem casas,
Corpos a apodrecer no chão,
Crianças mortas, lindas, já sem asas,
Um mundo antes vivo, em implosão».
E a indignação que o mundo civilizado sentiu, e sente, desde há meses, a ver, incrédulo, tal barbárie, transformou Eugénio Lisboa em poemas que são pedras, ou balas, que agora não matam, mas que matarão, à sua maneira, no futuro.
«Por todo o lado a morte em vez da vida
por todo o lado o nada em vez do tudo,
por todo o lado a vida invertida
e o rasto do monstro chavelhudo» (p. 70).
de uma Rússia tão augusta
este CAPA-GÊ-Bê doente
não perturba nem vos assusta? (p.80).
É certo que nem só da guerra de Putine estes poemas tratam, mas ele anda sempre por ali como um fantasma:
«Ruínas onde foram ontem casas,
Corpos a apodrecer no chão,
Crianças mortas, lindas, já sem asas,
Um mundo antes vivo, em implosão».
E a indignação que o mundo civilizado sentiu, e sente, desde há meses, a ver, incrédulo, tal barbárie, transformou Eugénio Lisboa em poemas que são pedras, ou balas, que agora não matam, mas que matarão, à sua maneira, no futuro.
«Por todo o lado a morte em vez da vida
por todo o lado o nada em vez do tudo,
por todo o lado a vida invertida
e o rasto do monstro chavelhudo» (p. 70).
«Agora mata-se mais e mais depressa,
mata-se mulher, velho e criança:
distinguir quem se mata não interessa,
é só perder tempo enquanto se avança» (p.71).
mata-se mulher, velho e criança:
distinguir quem se mata não interessa,
é só perder tempo enquanto se avança» (p.71).
E como os novos tiranos não são diferentes de outros de má memória para a humanidade:
«Heil, Putine, que uma bruxa pariu,
em noite assombrada de segredos,
feitiços e mezinhas, e previu,
naquele monstro, só medos e enredos.
em noite assombrada de segredos,
feitiços e mezinhas, e previu,
naquele monstro, só medos e enredos.
Heil, Putine, aborto malcheiroso,
cozido no enxofre do Inferno,
em frenético coito ardiloso,
fazendo do planeta longo inverno.
cozido no enxofre do Inferno,
em frenético coito ardiloso,
fazendo do planeta longo inverno.
Heil, ó filho de coitas fedorentas
lambido por demónio malformado,
farejando ruínas com as ventas
lambido por demónio malformado,
farejando ruínas com as ventas
sujas de beber o famigerado
sangue dos que à vida já roubou,
sangue dos que à vida já roubou,
feliz por ter feito quanto almejou» (p.79).
Poemas na linha da poesia satírica e das de escárnio e maldizer, acutilantes, fulgurantes, e atravessadas por uma indignação e um espanto moral que lhes dá, aqui e agora, outra dimensão e atualidade e, portanto, outro poder.
A poesia é uma arma, como disse acima, e será uma arma enquanto os poetas se indignarem com as indignidades e os seres humanos tenham sentido de moral. E ao contrário do que possa parecer, tê-lo-ão hoje mais atento e afiado que noutras épocas. É isso que nos faz ter esperança de que, no fim de todas as cantadas vitórias de Putine (que por certo as cantará) a história o derrotará e colocará no pelotão dos grandes facínoras que o mundo moderno cada vez suporta menos.
E para os que pensam que identificar Putine com o povo russo, que há séculos e séculos é martirizado, e hoje desinformado e envenenado pela propaganda, fica este excerto:
«Que diria Turguenév
Ou o suave Tchécov
daquele país de neve,
do século dezanove?
Um libertou os escravos
e o outro consolou
os aflitos e os agravos
a quem tudo ensinou.
Que diriam estes russos
destes seus irmãos de hoje,
mais parecidos com ursos,
atacando quem não foge?...» (p.22).
Poemas em tempo de guerra suja, lê-se de um fôlego, sem saber o que mais admirar, se a inspiração constante e quase tumultuosa do autor se a sua capacidade assertiva e implacável.
João Boavida
1 comentário:
Agradeço ao Professor João Boavida o seu generoso comentário aos meus singelos POEMAS EM TEMPO DE GUERRA SUJA. É uma leitura cheia de empatia e simpatia pelas vítimas de uma guerra suja. E é uma leitura corajosa, porque o Professor João Boavida sabe bem que tanto o meu livro como o seu límpido comentário não tardarão a serem conspurcados por aqueles espíritos enviesados que gostam de "contextualizar" os tiranos e confundir o invasor com o invadido. Dizer que Putine se está a defender é o mesmo que dizer que o preto é branco. Foi sempre esta a lógica dos tiranos.
Queria só dizer ao meu Amigo João Boavida que a porcaria que em breve vão atirar para cima de nós ficará sempre como nobres medalhas, que poderemos ostentar sem vergonha.
Bem haja! Um grato abraço do
Eugénio Lisboa
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