Por
Cátia Delgado e Maria Helena Damião
“Não há falta de médicos, há falta de médicos a sujeitarem-se a
isto”, declarou uma jovem médica. Referia-se, como se percebe, às difíceis
condições para exercer medicina num serviço nacional de saúde que se foi
degradando e chegou à profunda crise estrutural que sabemos. A falta de
profissionais é um dos seus maiores sintomas.
A frase, transposta para o sistema
educativo, sinaliza idêntico sintoma. Atentemos no diagnóstico que tem sido
feito nos últimos meses:
- há “falta de professores” sobretudo de Informática, pois a concorrência das empresas no recrutamento de recém formados é uma realidade. A eventualidade de alguém formado nesta área enveredar pelo ensino é muitíssimo reduzida;- há “falta de professores” na zona de Lisboa e concelhos limítrofes, bem como na zona do Algarve, onde os professores, na sua maioria deslocados, têm de pagar, só pela habitação, um valor próximo de metade do ordenado.
Tendo em conta só estes dois aspetos, é justo perguntar: qual é o
recém-formado que, podendo iniciar uma carreira a ganhar pelo menos o dobro do
que se ganha como professor, persiste em entrar no ensino?
A estes aspetos devem
somar-se outros, de que ele terá plena consciência: um caminho eminentemente
solitário, trabalho pós-laboral (de preparação de aulas, de avaliação, etc.),
reuniões múltiplas e demoradas, difícil gestão de comportamentos, burocracia
infinita e infundamentada, atribuição de funções que extravasam o ensino, falta
de sentido do trabalho, etc.
Justificar-se-ia, portanto, da parte da tutela, a
tomada de medidas de fundo, capazes de, como ela própria reconhece, tornar a
docência “atrativa”.
Contudo, as medidas que, nos últimos dias, têm vindo a
lume, destinadas a superar a presumível carência de professores, são residuais e
de emergência: é preciso que no próximo ano os alunos não fiquem “sem aulas”. Nada de mais substancial se vê!
Ora, estamos face a um problema estrutural que é
muito evidente e…grave: para quem tem qualificação superior, a profissão docente
é, cada vez mais, um último recurso, pelo qual se opta se todos os outros
falharem.
No Público, Alberto Veronesi, professor, referindo-se à alegada falta
de professores e às respostas governamentais que têm sido avançadas para a
mitigar, alerta para o atentado que está em marcha aos “verdadeiros
professores”.
“Esta situação (…) conduzir-nos-á a um estado de emergência educativa onde o recurso a “qualquer um” que aceite desempenhar a função de professor (…) seja a prática comum.”
Não se podem justificar os baixos ordenados
pela diminuta qualificação que passa a ser permitida. A premissa deve ser
precisamente a inversa: a exigência de recrutar bons professores deve ser
acompanhada de condições que lhes permitam ser, efetivamente, bons professores.
1 comentário:
Naturalmente que um dos principais fatores que contribuiriam para a melhoria das condições para se ser professor seria o aumento substancial dos vencimentos dos docentes. Só que, infelizmente para nós, o estatuto social dos professores desceu a pique nas últimas três décadas, na razão inversa do aumento descontrolado do número dos cidadãos que adquiriram as habilitações académicas necessárias para lecionarem tudo e mais alguma coisa, incluindo educação infantil. Ora, todos sabemos que o ouro vale muito porque, comparativamente com outros metais, como o ferro ou o alumínio, é pouco abundante na Terra; os professores são mal pagos porque, entre outras razões, são muito numerosos, ou seja, cada vez estão mais proletarizados. A questão não é tanto de “tornar” a docência atrativa, é mais de “voltar” à docência atrativa. Evidentemente que me estou a referir aos antigos professores do liceu, os “filhos da alta burguesia”, que a sociedade revolucionária portuguesa do 25 de Abril de 1974 houve por bem sacrificar em benefício dos professores primários e educadores de infância, esses, sim, filhos diletos da classe operária. Tenho de referir esta particularidade portuguesa porque, dentro da decadência geral dos sistemas de ensino público europeus, o nosso caso é o pior. As 22 horas (50 min de aula + 10 min de intervalo) de tempo letivo semanal na escola, quando havia alguma racionalidade na gestão da atividade do professor, dentro e fora da “sala de aula”, foi considerado pelos revolucionários um luxo e um ultraje aos operários fabris que trabalhavam mais horas na fábrica e, ao fim do mês, muitas vezes, levavam menos dinheiro para casa do que os chamados “doutores”. Para dar o golpe de misericórdia nos professores do ensino secundário foram chamados professores e professoras doutoras dos ensinos politécnico e universitário que, entre outras barbaridades, impuseram as aulas ininterruptas de 90 minutos, desconsideraram os intervalos entre aulas como tempo de trabalho (letivo ou não letivo) dos professores, esconderam debaixo do tapete o problema da violência e indisciplina infrenes em meio escolar, diminuíram as reduções de horas letivas a que os professores tinham direito, por idade, ou por lecionarem o ensino secundário, juntaram ao trabalho “pós-laboral (de preparação de aulas, de avaliação, etc.), reuniões múltiplas e demoradas, difícil gestão de comportamentos, burocracia infinita e infundamentada, atribuição de funções que extravasam o ensino, falta de sentido do trabalho, etc.”, na síntese lúcida e deprimente das professoras Helena Damião e Cátia
Delgado.
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