segunda-feira, 12 de setembro de 2022

UM BELO E INSTRUTIVO ROMANCE DE TERESA MARTINS MARQUES: NÃO MATARÁS

Por Eugénio Lisboa

"Uma pessoa, seja ela cavalheiro ou senhora, que não tire prazer da leitura de um bom romance, deve ser intoleravelmente estúpida", Jane Austen. Com estas palavras da celebrada romancista inglesa do século XIX, que, aparentemente, se entreteve a escrever fofoquices sobre meninas em transe de arranjarem marido, como destino de vida, e que se tornaria, no século XX, a preferida queridinha do público em geral, dos críticos mais sisudos, dos biógrafos mais sequiosos, dos mais exigentes professores universitários e dos cineastas em busca de argumentos certeiros, põe-se claramente o acento tónico no conceito de PRAZER – o prazer da leitura, que um romance deve proporcionar. 

Um bom romance deve pretender, antes de mais nada, ENTRETER o leitor, dar-lhe PRAZER com a sua leitura. (Nota para ler com atenção: António Sérgio, que não era leviano, dizia, provocadoramente, que esse era também o objectivo de uma boa crítica: saber ENTRETER, intelectualmente, o leitor.) O resto vem por acréscimo e sem dor.

Disto se esquecem, infelizmente, hoje em dia, muitos dos nossos cultores do romance, apostados em se tornarem outros tantos Joyces da inovação ficcional, por aí se tornando tão estéreis e tão chatos como o Joyce original (que sofreu uma das mais inflacionadas avaliações críticas que a história literária jamais acolheu!). Estes pretendem “inovar”, quase sempre de modo desastrado, frequentemente desnecessário e, não raro, intoleravelmente estúpido, para voltar a citar a autora de ORGULHO E PRECONCEITO: assim conspurcando um género literário que vem de tempos remotíssimos, quando, à roda de uma fogueira, as pessoas se dispunham a ouvir contar uma boa história. Gosto que para sempre ficou, digam o que disserem os snobes parolos qua afectam não gostar de histórias. Não sabem o que perdem. 

Resumindo: um romance conta um história, sim senhor ou senhora, e não tem mal nenhum fazê-lo e é péssimo quando o não faz. 

Teresa Martins Marques, que já antes nos dera um impressivo romance – A MULHER QUE VENCEU DON JUAN – contemplou-nos agora com um explosivo romance histórico, centrado corajosamente no infame assassinato do político Aldo Moro, perpetrado pelas Brigadas Vermelhas, de má memória. A autora, não só gosta de contar boas histórias, como agrava o dossier, gostando de as contar empolgantes. E não atravancando o horizonte do leitor com picardias narrativas desnecessárias.

Uma coisa se torna evidente, à medida que vamos mergulhando na leitura deste livro, no qual a autora se empenhou com verdadeira paixão, investindo nele três anos e meio de investigação histórica, com uma vontade carbonária de restabelecer a verdade, denunciando as cumplicidades cobardes por detrás deste crime.

A escritora americana Toni Morrison escreveu algures que há livros que desejamos ler mas que ainda não foram escritos, portanto temos de ser nós a escrevê-los. 

Julgo que este romance foi, para Teresa Martins Marques, um desses livros. A história verdadeira – os cinquenta e cinco dias de sequestro, que desaguam no assassinato em 9 de Maio de 1979, na garagem de uma casa em Roma - são o miolo central do livro; mas a história ficcionada da ligação de Anna com Moro, muito astuciosamente tecida, a partir dos cabelos encontrados no casaco do morto, nem por ser de dimensão mais reduzida, é menos crucial e dilacerante. O medo do muito que Moro sabia e que intersectava muita gente dos mais variados quadrantes, disfarça-se na bela mas falsa auréola de que se não negoceia com terroristas. Raramente um sórdido assassinato revestiu tão belas vestes.

Teresa dá-nos dois admiráveis retratos, ao longo desta narrativa absorvente e destemidamente documentada: Aldo Moro, político impoluto e marido e pai exemplares, e Anna (ficcional mas nem tanto…), a qual, trazendo do passado uma ferida de monta, vai descobrindo finalmente uma espécie de amor sublimado pelo sequestrado, cuja inteireza, doçura e bondade a ofuscam.

Não vou aqui desvelar minúcias da narrativa empolgante que Teresa Martins Marques soube congeminar para fazer bem presente um crime cometido há quase cinquenta anos. Mas o empenho apaixonado que pôs na concepção, construção e redacção desta ardorosa interpelação, mostra, como poucos textos, um testemunho de alto gabarito do que pode ser a solidariedade com os perseguidos e injustiçados deste nosso mundo. 

Com razão disse a romancista canadiana Margaret Atwood que uma pessoa sozinha não é uma pessoa completa: só existimos em relação com os outros.

A autora de NÃO MATARÁS visou, com este livro, uma merecida completude.

Eugénio Lisboa

1 comentário:

Teresa Martins Marques disse...

O meu profundo agradecimento a Eugénio Lisboa por esta tão bela leitura do meu romance. E também ao De Rerum Natura que em boa hora a acolheu.

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