Os romances começaram por ser histórias para serem contadas oralmente a uma grande variedade de pessoas que gostavam de as ouvir e, para isso, não precisavam de conhecimentos especiais.
Depois, foi evoluindo por aí fora e apareceram duas grandes categorias de romancistas: aqueles que, não confundindo complexidade com complicação, escreviam os seus romances para serem lidos pelo maior número de pessoas possível (Dickens, Charlotte Bronte, Dostoiewsky, Tolstoi, Tcheckov, Balzac, Camilo, Eça, Conrad, Colette, Stendhal, etc.); e aqueles que escreviam os seus romances, para serem sobretudo “comentados” ou “estudados” nas universidades, uma das muitas formas de fazer ou ajudar a fazer curriculum (Joyce e seus discípulos).
Quando os docentes universitários começaram a tomar de assalto a grande imprensa não académica, para se tornarem os críticos sistemáticos com tribuna regular, e, depois, se tornaram também poetas e ficcionistas, armados até aos dentes com as teorias cada vez mais abundantes, ao seu dispor, teorias muitas vezes mal digeridas mas usadas como artilharia terrorista, o universo da ficção começou a perverter-se. Muitos não escreviam para serem lidos, mas para serem “vistos”, citados e comentados.
Um romance tornava-se uma alínea pimpona do CV. O novo Joycinho olhava com desprezo o simplório que contava histórias (Simenon, por exemplo, que foi um dos maiores génios do século XX, sem que isso o tornasse universitável). O romancista, para poder decentemente exercer a sua profissão e ser levado a sério, tinha de obter carta de alforria da Ordem dos Romancistas, afecta à Universidade. Ajudava muito à obtenção desta carta, se o candidato juntasse uma declaração, com assinatura reconhecida pelo notário, de que não achava necessário que o romance contasse uma história.
Esta necessidade de carteira profissional e de bênção universitária começou a aterrar alguns notáveis romancistas, como Carlos de Oliveira, que confessou ao seu amigo Alexandre Pinheiro Torres ter escrito o ilegível FINISTERRA, porque andava com medo de não ser levado a sério pela crítica universitária (que era mais “científica” do que a outra).
Começaram então a aparecer os Joycinhos lusíadas, que eram tão maus romancistas como o Joyce original, mas escreviam um português muito inferior ao inglês do autor de ULISSES. Grandes escritores, que eram também notabilíssimos espíritos críticos, como Jorge Luís Borges; George Bernard Shaw ou Virginia Woolf, não mediram as palavras, a demolir o irlandês catapultado aos cornos da Lua, nas universidades, que sempre gostaram mais de “comentar” do que de verdadeiramente “ler”.
Os Joycinhos escrevem uns para os outros, os romancistas propriamente ditos escrevem para serem lidos por todo o amante de leitura. Livros como os que Joyce escreveu, com excepção da colectânea de contos, DUBLINERS, são mais do domínio da patologia literária do que da literatura. Escrevem-se romances que estão muito mais preocupados com o “fazer romance” do que com “ser romance”. Não tem mal, pelo contrário, o romance mostrar curiosidade pelo “fazer”, desde que se não esqueça de o “ser”. Um Joyce com talento de romancista, seria oiro sobre azul. Mas Joyce sem romance dentro dá para ser “estudado” mas é intragável para ser lido. Mas só há uma coisa pior do que ser Joyce: é ser discípulo de Joyce.
Eugénio Lisboa
1 comentário:
O que revela sobre 'Finisterra', a ser verdadeiro, é extraordinário! Pode-me indicar a fonte onde Carlos de Oliveira diz tal coisa a Pinheiro Torres? Preciso de ler para acreditar.
Enviar um comentário