Seja em autocracia ou em democracia, seja o governo de direita, de centro ou de esquerda política, seja na Europa ou fora dela, quem decide a política educativa não é quem tem razão derivada de conhecimento, mas quem tem poder. E quem, neste momento, tem poder é o capital (financeiro) de escala global. Organizações supranacionais, como o Banco Mundial e a OCDE, ajeitam o currículo global em função desse poder efectivo e pressionam as organizações internacionais, como a União Europeia, para o corroborarem. Ambos os grupos pressionam os governos, que, por sua vez, pressionam todos os níveis e sectores dos seus sistemas de ensino.
Confesso que, neste jogo fortemente hierarquizado, custa-me mais ver as esquerdas do que as direitas. Isto porque as direitas defendem um certo modo de gestão desse capital, que, sendo de larga escala, trata estas e outras organizações por tu, além de que aceita que o proveito de alguns se sobreponha ao bem comum. Já as esquerdas têm por princípio defender a igualdade de direitos democráticos, sendo o direito à educação um deles. Este direito, em particular, aponta para a liberdade, valor que não pode deixar de assentar numa consciência informada e formada.
Porém, ao que vejo, são as esquerdas que mais se empenham em levar para a frente as medidas veiculadas pelas ditas organizações. Na sua retórica circular, passa a ideia de que aquilo que é emanado da OCDE, da UNESCO, da União Europeia é como se fosse emanado de um deus cuja palavra se aceita sem qualquer discussão.
Atentemos em Portugal, no presente, que é de (esperemos) quase pós-pandemia: o Ministério da Educação, de um Governo à esquerda, pressupondo que os alunos se atrasaram nas aprendizagens escolares quis saber em que quais se atrasaram e quanto se atrasaram. Qual foi o caminho encontrado pelo Instituto de Avaliação Educacional (IAVE)?
Foi testar por referência àquilo que o PISA (Programa Internacional de Avaliação dos Alunos da OCDE) mede (ou seja, as aprendizagens em Matemática, Leitura e Ciências) em função da média obtida pelo PISA. Não saímos do círculo!
Por isso não tive nenhum interesse em saber os resultados, pois entendo que o direito à educação nada tem a ver com o que o PISA mede, mas estive atenta à palavra de peritos que constituem (mais) um “grupo de trabalho”, cuja missão é encontrar soluções para as débeis literacias diagnosticadas.
Entre eles, volto a encontrar uma economista, docente da Nova School of Business and Economics, que, a julgar pelos custos da proposta de programa de recuperação das aprendizagens dos alunos do ensino básico, que apresentou ao Governo, revela o afinado espírito empreendedor neoliberal de direita. Como noutros casos, a lógica não funciona, quer dizer, funciona ao contrário: a senhora afirma-se, ao que me dizem, de esquerda. Encontro também peritos da psicologia, que não podiam faltar porque o desenvolvimento das “competências emocionais” se tornou central na escola. Passo alguns outros habituais e centro-me num tipo de perito que se tornou indispensável no que quer que se faça: um representante do dito “prémio nobel dos professores” (siga o leitor o rasto deste prémio e verá se onde vai dar é compatível com as esquerdas).
E se dúvidas houvesse quanto à inspiração desta testagem e da intervenção destes peritos, elas ficariam resolvidas com a declaração do próprio Ministério da Educação: os dados serão objecto de “análises mais aprofundadas, permitindo nomeadamente cruzar estes resultados com indicadores socio-económicos”.
Ah, sim! E, para completar o diagnóstico, o mesmo Ministério declarou a intenção de “ouvir a voz dos professores”, que será, evidentemente, a voz que quer ouvir.
6 comentários:
Eis-nos, de novo, confrontados com as sábias sugestões da especialista em economia, finanças e educação, Doutora Susana Peralta. No meu comentário anterior, neste blogue, dei-me ao trabalho de esclarecer todos aqueles que têm o privilégio de se cultivarem com a leitura dos meus escritos que a fantochada da “recuperação das aprendizagens” não tem qualquer cabimento no ensino secundário, em Portugal. Contudo, ao nível das “escolas primárias”, houve, com certeza, casos graves de crianças que não aprenderam a ler nem a escrever, devido à covid-19 e às deficiências do ensino a distância. Mas, com um primeiro ciclo de quatro anos - que no meu tempo até davam para ensinar e aprender o vestuário do clero, nobreza e povo, no século XVI, os nomes dos rios e seus afluentes, da Metrópole e Províncias Ultramarinas, as mudanças de estado físico da matéria, e problemas com o cálculo do tempo que a água que sai de uma torneira demora a encher um determinado tanque -, tempo é o que não faltará para que OS PROFESSORES possam colmatar, com o regresso às aulas presenciais, essas falhas nas “aprendizagens essenciais” de maneira que os alunos entrem no 2.º ciclo a saber ler e escrever.
Antigamente, quando as inspeções e os exames serviam para verificar se os alunos REALMENTE aprendiam, e havia férias mesmo grandes, os professores universitários ensinavam na Universidade, e os gurus e mentores não eram admitidos na EDUCAÇÃO
Moita-carrasco!
Calar-se-ão os ignorantes e passarão por sábios!
Carlos Maia
Não direi nada de novo em relação ao que tenho escrito sobre esta pseudo-democracia de fazer da escola um local de brincadeira a partir da qual (brincadeira) os meninos - e as meninas, claro! -, por obra de uma natureza sobredotada, aprenderão sem serem ensinados. É evidente que, no imediato, não ter de mostrar conhecimentos evita o stress dos alunos em prestar contas e o dos professores em preparar essas contas. Mas a médio e longo prazo os alunos que não forem ensinados o mais rápido e melhor possível, perderão a oportunidade de desenvolver capacidades e revelar aptidões. E mais: chegará uma altura em que darão conta de que foram enganados pelos sistema de ensino de um País que diz defender o direito ao ensino. Como consequência genérica ainda advirá a incapacidade intelectual de descortinar os paradoxos, as incongruências e as falácias dos discursos dos governantes. Além do mais porque estes e alguns amigos colocarão os filhos em escolas onde a exigência de saber, de saber estar e até de saber renovar os fará facilmente ascender a um patamar que, mesmo não sendo demasiado elevado, é suficiente para justificar o controlo e aproveitamento de uma população analfabeta funcionalmente e acrítica. E destas duas falhas resulta o medo. O medo do poder dos governantes e dos chefes, o medo dos patrões e dos desafios laborais novos, o medo quanto ao futuro de uma tomada de posição que não agrade a quem manda.
Se pensarmos fazer da escola um serviço público de fraca qualidade, estamos a incentivar a diferenciação social pela riqueza, pelo histórico cultural das famílias ou até pelas influências pessoais. Uma escola sem qualidade impossibilita a mobilidade social - mesmo pelo mérito, a que o neoliberalismo tanto recorre cinicamente -, estamos a prorrogar as desigualdades sociais e culturais e estamos a desviar o potencial anímico e os recursos financeiros de uma nação para os colocar ao serviço de empresas privadas cujo objetivo é o lucro indevido e conseguido a custo de uma instituição que devia formar pessoas e não mão de obra barata, disponível a qualquer hora, em qualquer parte do mundo, a trabalhar em quaisquer condições. Não instruir, como não educar, é um crime. E não é só um crime contra uns milhares de crianças, jovens e adolescentes atuais; é-o contra várias gerações futuras - se mesmo elas não forem postas em causa - porque, enquanto os efeitos benéficos de uma boa educação tardam a revelar-se, os efeitos nefastos de uma má educação evidenciam-se rapidamente e expandem-se com um dinamismo inversamente proporcional ao que uma boa educação produz.
Há uma pergunta algo cínica que pode ser feita aos defensores de uma escola sem esforço, qualidade, prestação de contas, exigência de melhoria, etc.: onde é que esses defensores aprenderam estas ideias que propagam? Porque, se a sua educação e ensino partiram do nada, eles estão mal empregues a tratar de assunto tão sem interesse na sua opinião. Se, de facto, não aprenderam nada de qualidade, onde está a legitimidade para dar lições sobre o que não aprenderam? E, se foram bem ensinados, porque é que desejam que os adolescentes de hoje não sejam? Ou trata-se só de uma 'moda' que dá proveito pessoal ao ser defendida perante governos que nunca têm no ministério da educação quem entenda do assunto e mostre um sentido público de responsabilidade e visão de futuro?
O "facilitismo" no ensino, que acarreta a desvalorização das habilitações académicas, interessa mais aos pobres ou aos ricos?
É mau para todos, mas, a curto prazo, prejudica mais os pobres. Um pobre, que chegue facilmente a Doutor, vai continuar a ser pobre!
Quase me atreveria a dizer que os pedagogos (ou, como li algures, "pedabobos") se preocupam com o perfil do aluno subalternizando o perfil dos professores. Este facto, facilita o aparecimento de "doutores da mula ruça" capazes de darem dois erros em cada três palavras que manuscritas. Isto para não ser jocoso dizendo que em cada duas palavras que escrevem cometem três erros. Viva, em correcção deste verdadeiro descalabro, o corrector de escrita dos generosos computadores! Temo mesmo que neste nada "admirável mundo novo" baste o "escritor" pôr o tema do texto a publicar para o texto aparecer pronto a ser publicado nas impressoras.
No início daa 4.ª linha do meu comentário anterior, pousou a atrevida gralha "que", antes da palavra "manuscritas"! Penitencio-me, perante o leitor, por este facto fatídico!
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