[Este escrito foi composto entre Abril e Junho de 2020 e ficou inédito. Assim ficaria, embora continue actual, se não fosse a evocação da tragédia de António Fragoso, lida num livro menos conhecido, a qual merece ser relembrada. É uma mensagem de dois passados: 1918 e 2020]
A epidemia de gripe de 1918, muito recordada atualmente, teve um enorme impacto nas autoridades sanitárias e ficou na memória coletiva, mas aparece pouco na literatura. Seabra e outros na Epidemia Esquecida (ICS, 2009) indicam que Vitorino Nemésio e Raul Brandão, entre outros, não a referem. Rómulo de Carvalho (pseudónimo de António Gedeão), sempre atento, nas Memórias (Gulbenkian, 2010) também não a parece indicar. Surge nos Novos Contos da Montanha, no conto “Renovo”, de Miguel Torga, assim como no livro de Leonardo Jorge, publicado no Brasil em 1968, António Fragoso: um génio feito Saudade (reeditado em 2018), em Amadeo (Circulo de Leitores, 1984) de Mário Cláudio, no Perfumista (Oficina do Livro, 2006) de Joaquim Mestre e em poucos mais. Daniel Melo refere que mais de metade dos romances históricos que envolvem essa época quase nada dizem sobre esta epidemia. E, no entanto, muitos, Torga e Jorge, em particular, assistiram a tragédias pungentes que dizimaram famílias inteiras. Jorge, filho de um médico de Cantanhede, a residir, por causa da epidemia, na Pocariça com seu avó, do Rio de Janeiro conta a memória da tragédia de António Fragoso e da sua família. Havia um ambiente de festa, a Pocariça parecia ser poupada e a família de Fragoso foi das mais visitadas. Mas, no espaço de alguns dias, morreram quatro dos cinco filhos do casal, António, Maria Leonor, Maria Isabel e Carlos. Só escapou Maria Fernanda, com três anos. Morreram também três parentes Elisa, Joana e a tia Corina, mulher de um professor de medicina do Porto, irmão do pai, dizendo, desesperada, que não queria morrer! O horror sentido por todos foi registado por Jorge e Torga e repetiu-se por todo o país. Os médicos impotentes, só davam conforto, mas havia falta destes. Foram registados mais de cem telegramas dos responsáveis. Apesar da censura, nos jornais havia relatos pungentes. Mas, com o fim da guerra, a crise financeira e muitas outras epidemias, a pneumónica raramente foi capa. E, no entanto, esta foi provavelmente mais mortífera do que as duas guerras mundiais e serve de estudo e referência para as epidemias de gripe.
O que tornava a pneumónica terrível era matar sobretudo as pessoas na força da idade. Não há referências literárias ou artísticas dos próprios, como na tuberculose ou na sífilis, porque estes morriam rapidamente e surpresos. Rostand (1868-1918), conhecido pela peça Cyrano de Bergerac, Guillaume Apollinaire (1880-1918), o príncipe Savoy-Aosta (1888-1918) e Egon Schiele (1890-1918), por exemplo. Por aqui morreram João Lúcio [Pousão Pereira] (1880 – 1918), Amadeo de Souza Cardoso (1887-1918), José de Freitas Pimentel (1894-1920) e António de Lima Fragoso (1897-1918), alguns já referidos, alguns dos pastorinhos de Fátima, entre muitos outros.
É interessante ver que medicamentos tinham e o que faziam em 1918. Usavam da quarentena, isolamento e higiene, como atualmente, mas havia coisas que não tinham. Ainda não tinham sido inventados os ventiladores e a maior parte dos medicamentos (que eram poucos) eram fabricados nas farmácias.
Este tipo de problemas só pode ser resolvido com mais ciência. Mais tarde ou mais cedo, vamos ter vacinas e medicamentos. Há universidades e companhias a testá-los. Chegámos a fases clínicas [isto foi escrito entre abril e junho de 2020]. A literatura ajuda-nos a perceber como funciona mas conta também histórias de ficção arrepiantes e distorcidas. Gostamos assim: a ficção ser mais arrepiante e tenebrosa do que a realidade. No livro A invenção da Gripe (Terramar, 2010), A. Travers refere as guerras das farmacêuticas, com as suas vacinas e medicamentos, a propósito da crise da gripe A/H1N1, em 2009. Os nomes são diferentes, mas quase os mesmos. Esta história tem terroristas de muitas nacionalidades, cartéis de droga, raptos e as coisas usuais. Sempre me espantou que as pessoas acreditassem que os livros relatassem a realidade como ela é. Os livros podem ser muito melhores! Retratam as coisas como achamos que elas são e ao mesmo tempo permitem-nos viajar e pensar. Têm muitos aspetos reais e realistas mas são ficção. Em O Fiel Jardineiro (D. Quixote, 2001), de John le Carré, que deu um filme com o mesmo nome, o fundo é verdadeiro, mas não as ações, obviamente.
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