Eis as declarações que prestei a Nuno Ribeiro, jornalista do Público, que ele resumiu muito bem aqui:
Uma coisa é
ciência, que exige método e tempo pois a "verdade" demora a assentar,
e outra é a política, que tem um método e um tempo e uma agenda muito
diferentes. A ciência não é a única dimensão que interessa à decisão em
assuntos da vida pública - a política tem o seu espaço próprio! - mas deve ser
um factor essencial dessa decisão.
A comunidade científica
portuguesa, apesar de já somar cerca de 50 000 pessoas e de ter alguma
visibilidade no espaço público, não está organizada de forma autónoma e não tem
porta-vozes constituídos, nem sequer para discutir e apresentar numa base
estritamente científica questões como a da actual pandemia. O que há é um
conjunto de organizações (institutos, laboratórios, universidades, etc.) e
pessoas dentro delas, que estão em geral dependentes de financiamento público,
e, como esse financiamento é escasso, travam uma "luta pela
sobrevivência". Competem uns com os
outros pela atenção dos políticos e da sociedade, esquecendo-se que os
mecanismos de cooperação são, por vezes, mais relevantes que os da competição.
Perante um caso tão sério como o da pandemia, temos visto várias iniciativas
mais ou menos individuais e voluntaristas, mas ainda não vimos a constituição
de um conselho interdisciplinar e independente, isto é, um conselho que pudesse
falar com a autoridade e também com a
humildade próprias da ciência (sabemos muita coisa, mas é mais o que não
sabemos) e que pudesse ser um porta-voz da ciência, da melhor ciência, tanto
junto do governo como do público. Esse Conselho é necessário.
Não temos aqui nem
um Dr. Anthony Fauci, um cientista à frente de um organismo público como há nos
Estados Unidos, nem Sir Patrick Vallance, o Chief Scientific Advisor do governo
britânico. Nem temos academias científicas vivas e actuantes capazes de dar
aconselhamento científico externo: a Royal Society de Londres é um corpo
independente de cientistas com mais de 350 anos, cujo presidente fala
directamente com o primeiro-ministro, sendo ouvido por este, pois, o seu
interlocutor está sentado na cadeira onde Newton se sentou. Também não temos um
conselho de universidades que seja verdadeiramente representativo e actuante. Apesar
de terem surgido, nesta crise sanitária,
vários "porta-vozes" individuais da ciência, com méritos
indiscutíveis, não há entre nós nem um conselho científico nem um porta-voz credenciado
pelos seus pares. Não há nenhum sítio onde possa ter lugar o diálogo
interdisciplinar que é absolutamente necessário para assegurar aconselhamento
científico coerente.
Neste estado de
coisas, o governo português "usa" a ciência sem se preocupar
verdadeiramente com ela. Invoca o nome dela em vão, como já disse o
ex-director-geral da DGS Constantino Sakellarides. Não fez o mínimo esforço
para formar um conselho científico para a crise. As reuniões informais no
Infarmed em que se têm ouvido peritos individuais mais não são mais do que
alibi para o governo fazer o que lhe aprouver, na velha tradução do
"achismo" lusitano. Os políticos aproveitam o facto de os peritos num
ou noutro aspecto discordarem (como é absolutamente normal) para fazerem uma
depreciação da ciência, ao dizer que os cientistas são confusos, se contradizem, se não entendem entre si, ao mesmo tempo que sobrevalorizam
a política.
O ministro da
Ciência, Tecnologia e Ensino Superior tem estado apagado, não sendo um
representante da ciência junto do governo, mas antes um representante do
governo junto da ciência. Infelizmente, não tem o carisma nem a nororiedade que
justamente tinha o saudoso José Mariano Gago. Tem, portanto, faltado ciência ao
governo. Que, claramente, no final do ano passado tomou decisões erradas,
aparecendo depois a usar termos científicos como "variantes
genéticas" para esconder o seu erro. O governo também diz que a oposição
estava a favor da "preservação do Natal" como se governar não fosse muitas
vezes ter de decidir com o objectivo do melhor bem público em vez de entrar em
concursos de popularidade com a oposição. A terceira vaga a que assistimos
entre nós, proporcionalmente a maior de todo o planeta, deveu-se a deficiente
planeamento e a más decisões. Teria sido preciso ir mais além do que a
percepção comum que é tida normalmente pelos políticos. A ciência consiste precisamente
em ir além da percepção do mundo que todos nós temos, usando com cuidado e
rigor a observação, a experimentação e o raciocínio lógico.
Em suma, seria
muito útil a existência de um conselho científico independente com um porta voz
credível. Ele ajudaria sobremaneira na necessária comunicação da ciência não só
com o poder público como com o público. É precisa uma boa comunicação da
ciência para o público em geral. Nos EUA as pessoas acreditaram mais no Dr.
Fauci do que em Trump. Na situação de insegurança e incerteza que vivemos, o
público tem direito a uma fonte científica credível, mandatada pelos seus pares,
que tenha os conhecimentos da ciência e que conheça o método da ciência. Em
contraste, temos assistido a uma cacofonia de vozes, umas mais credíveis do que
as outras: umas da área da ciência e outras meramente da política, muitas vezes
cruzadas e dificultando a audição da mensagem. Receio que, por vezes, ninguém
perceba nada de nada. É verdade que sobre certas coisas alguns cientistas dizem
uma coisa e outros outra, mas não é menos verdade é que sobre a maior parte
delas e sobre as coisas mais relevantes - a ciência consolidada - todos eles dizem
o mesmo.
É preciso confiar
na ciência que não é nem nunca foi a posição de um ou outro cientista, ou mesmo
de um ou outro grupo de cientistas. A ciência nunca é um artigo só, mas uma
acumulação de resultados. Alguns artigos passam, mas outros ficam. A ocasião
poderia ter servido - pode ainda servir - para explicar o que é a ciência: não
é apenas um conjunto de conhecimentos, mas sobretudo um método para alcançar
novos conhecimentos, um método que é partilhado por uma comunidade e cujo
resultado é dado à sociedade. É o nosso melhor método para conhecer o mundo
material de que fazemos parte, portanto, é o melhor método para dar alguma
segurança à nossa arriscada vida.
Carlos Fiolhais
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