quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

ANTÓNIO SÉRGIO E A(S) ANTÍGONA(S)


Meu artigo no último JL (na imagem António Sérgio):

António Sérgio (Damão-Índia, 1883 – Lisboa, 1969) foi um dos maiores pensadores portugueses do século passado. É bem conhecida a sua extensa produção filosófica, historiográfica, literária, pedagógica, económica e política. Quem quiser saber só o essencial basta ler o livrinho de Carlos Leone, O Essencial sobre António Sérgio (Imprensa Nacional, 2008). Entre as várias polémicas em que embrenhou sobressaiu logo a primeira, em 1914, com Teixeira de Pascoaes, sobre a saudade, quando rompeu com o grupo da Renascença Portuguesa que tinha integrado com Raul Proença: logo aí afirma o seu imperativo de racionalidade.  Integrou em 1921 a redacção da revista Seara Nova, fundada há cem anos por Proença e outros intelectuais, que foi uma das revistas mais activas contra o Estado Novo. Nas duas primeiras décadas da revista foi até o autor que mais escreveu nela.

Menos conhecido é o facto de António Sérgio ter cultivado o teatro clássico. Saiu recentemente na Âncora um volume da sua autoria que documenta esse facto: Antígonas(s). Quatro variações sobre um mito, uma edição crítica com estudo e notas de Carlos Morais, professor de Língua e Culturas da Universidade de Aveiro, que tem investigado a recepção em Portugal do teatro grego. De Morais eu já conhecia a edição que preparou da primeira gramática de grego em língua portuguesa, publicada em Paris em 1760 o João Jacinto Magalhães, um “estrangeirado” que conviveu com os maiores nomes da ciência das Luzes (Universidade de Aveiro, 2000).

Quem como eu admira a obra de António Sérgio – na minha biblioteca alinham-se numerosas edições suas – sabia que ele tinha publicado no Porto em 1930 uma versão do mito de Antígona (Antígona. Drama em três actos, República), um livro que deu origem a acesa polémica num país conturbado. E sabia também que tinha publicado em 1958 uma outra (Pátio das Comédias, das Palestras e das Pregações, Jornada Sexta, Inquérito). Mas já não sabia, até porque permaneciam inéditas, que havia mais duas versões: Antígona: Diálogo Histórico-filosófico em Forma Dramática, de c. 1950, e Diálogo de Creonte a Antígona, de c. 1960. Se o volume de 1930 era um protesto contra a ditadura militar que vigorou entre nós entre 1926 e 1933, e o de 1958 era um libelo contra a fraude nas eleições presidenciais desse ano nas quais entrou Humberto Delgado, as duas edições manuscritas representavam um grito contra a ditadura salazarista. Na última ficava no final a pergunta: “Até quando, Creonte?”, mas a democracia só surgiria cinco anos após a morte de Sérgio. A edição em causa contém os textos completos, devidamente anotados, das quatro versões, a última das quais foi uma descoberta de Morais, assim como materiais relativos à polémica desencadeda pela primeira edição.

A Antígona de Sófocles (c. 496 a.C. - c. 405 a.C.) tem feito correr rios de tinta desde que o autor a escreveu c. 442 a.C. Está disponível uma tradução perfeita em português da pena de Maria Helena Rocha Pereira (tenho a 10.ª edição, Fundação Gulbenkian, 2012, mas saiu pela primeira vez na Atlântida, 1968). O enredo conta-se em poucas linhas. O tio de Antígona, o rei Creonte de Tebas, é um tirano que proíbe o funeral de um dos irmãos de Antígona, Polinices, que morreu numa luta fratricida com Etéocles. Movida por compaixão, Antígona desafia o édito, prestando honras fúnebres a Polinices. Creonte condena-a, por isso, a ser encerrada numa caverna, apesar de saber que o seu filho está noivo dela. A tragédia acaba… em tragédia: Antígona e o noivo suicidam-se, por esta ordem. Ao ver o filho morto, a rainha Eurídice, esposa de Creonte, também põe termo à vida e o tirano acaba sozinho e desesperado.  Antígona é a voz da lei natural, que vem do Olimpo, contra o poder do Estado, na Terra.  Uma fala de Antígona constitui o ápice da peça quando ela responde a Creonte: “É que estas [leis] não foi Deus que as promulgou, nem a Justiça, que coabita com os deuses infernais, estabeleceu tais leis para os homens. E eu entendi que os teus éditos não tinham tal poder, que um imortal pudesse sobrelevar os preceitos, não escritos, mas imutáveis dos deuses. Porque esses não são de agora, nem de ontem, mas vigoram sempre e ninguém sabe quando surgiram. Por causa das tuas leis, não queria eu ser castigada perante os deuses, por ter temido a decisão de um homem.”

Ora é precisamente com a ignomínia de certas leis humanas no seu país que Sérgio se insurge fazendo sua a voz de Antígona. Servindo-se do teatro, não hesitou em desafiar os poderes vigentes, fossem os da ditadura militar ou do regime superveniente de Salazar (o Creonte inicial é o retrato do general Óscar Carmona, presidente entre 1926 e 1951). Em 1930 assanharam-se contra Sérgio algumas vozes integristas, chamando à sua peça fraude literária por alegado plágio de uma peça do francês Jean Cocteau de 1922, que abreviava o original grego. Sérgio respondeu com palavras duras: a acusação é que era uma fraude! Uma nova adaptação de Jean Anouilh causaria celeuma na França ocupada de 1944 (foi representada entre nós no pós-guerra e publicada: Presença, 1965). Apesar das posições políticas algo ambíguas de Anouilh, a peça foi vista como um pronunciamento pelos Aliados.

É muito interessante verificar neste livro, feito com rigor, a obsessão de Sérgio ao longo de três décadas com Antígona. Outros autores têm sido fascinados por Antígona. Uma análise densa foi feita por Georges Steiner (Antígonas, Relógio d’Água, 1995). Entre as recriações portuguesas de Antígona merecem destaque a de Júlio Dantas (Bertrand, 1946), levada à cena no Teatro nacional D. Maria II em 1946 no espectáculo que foi a estreia de Mariana Rey Monteiro, a de António Pedro (Círculo de Cultura Teatral, 1956), representada pelo Teatro Experimental do Porto em 1954, e a de Paulo Quintela, representada pelo TEUC em Coimbra em 1959 (julgo que José Carlos Vasconcelos andava por lá). Nos nossos dias, Hélia Correia escreveu Perdição, Exercício sobre Antígona (D. Quixote, 1997; reedição: Relógio d’Água, 2006), posta em palco pela Comuna em 1993.

Antígona é eterna, porque a luta contra a arbitrariedade é eterna. Estou certo de que novas versões continuarão a surgir.

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