Meu artigo publicado no jornal I de ontem:
Nascido em Mumbai (ex Bombaim, a cidade que a coroa portuguesa transferiu para a coroa inglesa como dote de D. Catarina de Bragança), mas emigrado há muitos anos para os Estados Unidos, Fareed Zakaria é uma das figuras mais conhecidas nos média internacionais. Os portugueses podem vê-lo e ouvi-lo na RTP3 no programa GPS - Global Public Square, emitido semanalmente na CNN, ao vivo de Nova Iorque, chegando a mais de 200 milhões de lares em todo o globo. O programa começou a ser emitido em 2008 e continua de vento em popa. Há um arquivo na RTP Play: o último que vi foi o episódio 58 da actual temporada, de 30 de Janeiro, que tratou do novo presidente americano e da vacinação contra a COVID-19. Zakaria, no seu take inicial, declarou que se devia passar para o dobro a meta de Biden de vacinar um milhão de americanos por dia. Biden passou logo para milhão e meio.
Zakaria
é licenciado na Universidade de Yale e doutorado em Ciências Políticas pela Universidade
de Harvard (onde estudou sob a orientação de Samuel Huntington, o autor de O
Choque das Civilizações e a Mudança na Ordem Mundial, Gradiva, 1999).
Depois de uma curta carreira académica foi editor da Foreign Affairs, da
Newsweek e da Time, e é, actualmente, para além do seu programa
na CNN, autor de uma coluna semanal no The Washington Post. É também
autor de uma meia dúzia de livros, dos quais quatro estão traduzidos em
português, todos eles na Gradiva, uma editora que se tem distinguido na área
das relações internacionais. Por ordem cronológica de publicação entre nós
elenco: O Futuro da Liberdade. A Democracia Liberal nos Estados Unidos e no
Mundo (2004) e O Mundo Pós-Americano (2008), A Ordem Liberal Internacional
Terá Chegado ao Fim? (2019) e, saído em Novembro passado (um mês depois do
original saído na W.W. Norton), Dez Lições para um Mundo Pós-Pandemia.
As teses destes bestsellers internacionais são muito oportunas: no
primeiro lembra que a constitucionalismo liberal precedeu a democracia,
prevenindo-nos dos perigos das democracias iliberais; no segundo fala da
emergência de novas potências como a China e a Índia; no terceiro discute com o
historiador britânico Niall Ferguson a sobrevivência do sistema liberal
internacional; e no último faz um exercício de prospectiva sobre o mundo que
virá após a actual pandemia.
A
tradução de Dez Lições para um Mundo Pós-Pandemia foi de Inês Fraga e
Sara Lutas (a Gradiva é das poucas editoras a colocar o nome dos tradutores na
capa) e a revisão literária de Hélder Guégués, o autor de Em Português Se Faz
Favor (Guerra e Paz, 2015). A capa, de Armando Lopes, serve-se de uma
imagem da Terra cuja sombra tem o perfil do novo coronavírus. O vírus tornou-se
do tamanho do mundo, apesar da sua pequenez. Diz Zakaria logo no início: “Na
verdade, o novo coronavírus mede cerca de 1/10 000 em relação ao tamanho do
ponto final desta frase.” O autor foi uma das pessoas que previram a pandemia,
como lembra a contracapa. Com efeito, em 25 de Junho de 2007, no seu programa
da CNN, afirmou que “uma das maiores ameaças que os Estados Unidos têm de
enfrentar não é, de todo, grande. Na verdade, é minúscula, microscópica,
dezenas de vezes mais pequena do que a cabeça de um alfinete.”
Depois
de uma introdução e antes de uma conclusão são dadas as “dez lições” sobre o
futuro do mundo. Alinho aqui os títulos, escolhendo uma citação que resuma o
conteúdo de cada um;
1— “Apertem os cintos”. É a hora de travar o ritmo
acelerado da humanidade em direcção ao futuro: “Não fizemos seguro. Nem sequer pusemos os cintos de
segurança. O motor aquece. Partes sobreaquecem e, por vezes, até pegam fogo.
Tivemos alguns acidentes, cada qual um pouco pior do que o anterior. Portanto,
arrefecemos o veículo, afinamos a suspensão, reparamos a carroçaria e decidimos
fazer melhor. Todavia, continuamos num ritmo de corrida e em breve estamos a
acelerar rumo a um terreno novo e ainda mais acidentado. É muito arriscado.”
2— “O que importa não é a quantidade, mas a
qualidade do governo”. É uma defesa de governos pequenos, mas eficientes (o que
não temos em Portugal!): “Aumentar
pura e simplesmente o tamanho de um governo pouco faz para resolver os
problemas sociais. Um bom governo consegue‑se com um poder limitado, mas com
linhas claras de autoridade. Consegue‑se por meio da autonomia, da discrição e
da capacidade de os funcionários pensarem por si. Exige que se empregue gente
brilhante e dedicada, inspirada pela possibilidade de servir o seu país e ser
respeitada por isso.”
3— “Os mercados não são suficientes”. O autor cita um editorial do Financial Times de 3 de Abril de 2020, cujo teor foi algo inesperado: “Os governos terão de desempenhar um papel mais activo na economia. Têm de encarar os serviços públicos como investimentos, e não como passivos, e também procurar formas de tornar os mercados de trabalho menos inseguros. A redistribuição de riqueza tornar‑se‑á de novo um tema fulcral, e os privilégios dos idosos e dos ricos serão postos em causa.”
4— “As pessoas deviam ouvir os especialistas —
e os especialistas deviam ouvir as pessoas.” Segundo Zakaria: “Vamos precisar de mais
especialistas, não de menos, para gerir os negócios das nações — de grandes
empresas a pequenos concelhos — durante estes tempos. Isso faz deles, inevitavelmente,
uma espécie de elite, um grupo cujo conhecimento lhes confere autoridade e
poder. A alternativa é impensável na era moderna: o governo por instinto e a
celebração da ignorância. (…) Mas especialistas e elites deveriam envidar
grandes esforços para pensar sobre como estabelecer uma ligação às pessoas.”
5— “A vida é digital”. São necessárias competências digitais, mas elas só por si não chegam: “Durante grande parte da História, os seres humanos foram elogiados por muitas qualidades além do seu poder de cálculo — bravura, lealdade, generosidade, fé e amor. O movimento da vida digital é amplo, rápido e real. Mas talvez uma das suas consequências mais profundas seja levar‑nos a estimar as coisas em nós que são mais humanas.”
6— “Aristóteles tinha razão: somos animais
sociais”. O autor olha já para o fim do desconfinamento: “Os humanos criam as cidades e as
cidades criam os humanos — são dois lados da mesma moeda. Mesmo quando
enfrentam calamidades, as cidades crescem e perduram, porque a maioria é
naturalmente propícia a participar, colaborar e competir. As razões para viver
em meios urbanos podem variar — trabalho, companheirismo, entretenimento,
cultura, ou uma combinação de tudo isto. Todavia, no cerne de todos estes
motivos esconde‑se a necessidade profunda de interacção social.”
7— “A desigualdade vai piorar”. Como a pandemia
está a agravar desigualdades, Zakaria pede igualdade na saúde: “Se, como é altamente provável,
tivermos de enfrentar outra pandemia, temos de reconhecer que é necessário dar
prioridade à segurança e à saúde, seja dos ricos seja dos pobres. Este é o tipo
de igualdade a que deveríamos aspirar.”
8— “A globalização não está morta”. Depois de discutir a ascensão da China, alavancada pela globalização, chama a atenção para os perigos da deflagração de um conflito com os Estados Unidos: “a globalização não está morta. Mas podemos matá‑la.”
9— “O mundo está a tornar‑se bipolar”.
Aprofunda a relação entre a China e os Estados Unidos: “Perante os contornos da política
internacional do futuro, torna‑se claro que a bipolaridade é inevitável. Uma
guerra fria permanece em cima da mesa.”
10— “Por vezes os mais realistas são os idealistas”.
Explicando melhor: “O
idealismo que subjaz ao liberalismo é simples e prático. Se as pessoas
cooperarem, conseguirão alcançar melhores resultados e soluções mais duradouras
do que se agissem isoladamente. Se as nações conseguirem evitar a guerra, os
seus povos estarão mais tempo na liderança, serão mais ricos e terão vidas mais
seguras. Se se tornarem interligadas no âmbito económico, todos iremos sair a
ganhar.”
A
mim parecem-me previsões clarividentes, apesar de o futuro ser sempre uma caixa
de surpresas. Muito provavelmente vai acertar mais vezes, como já acertou com o
surgimento do vírus. Zakaria reúne duas grandes qualidades: uma é a sua enorme
preparação e outra é a agilidade do seu raciocínio. Não se tem furtado a tomar
posições: esteve de início a favor da invasão do Iraque para a seguir reconhecer
que foi um disparate e colocou-se ao lado de Obama logo que este concorreu a
presidente nas primárias dos Democratas. Do ponto de vista religioso, reconhece-se
muçulmano, mas afirma-se secular: diz que está algures entre o deísmo e o
agnosticismo. Tem também algumas máculas: por exemplo, em 2012 foi suspenso por
uma semana pela Time e pela CNN devido a uma acusação de plágio: uma
citação não sinalizada que o próprio reconheceu ter sido um “erro terrível”.
Além do mais, Zakaria escreve bem, num estilo jornalístico tão sedutor como bem documentado (como mostra a quantidade enorme de notas no final). Deixo ao autor a última palavra, tirando-a do final da obra: “Os soldados que morreram durante a Segunda Guerra Mundial deram‑nos a oportunidade para construir um mundo melhor e mais pacífico. Por isso, também no nosso tempo, esta pandemia horrenda nos está a dar uma oportunidade de mudança e reforma. Abriu um caminho para um novo mundo. Está do nosso lado aproveitá‑la ou desperdiçá‑la. Nada está escrito.”
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