Meu artigo publicado por vários jornais no quadro do projecto "Cultura, Ciência e Tecnologia" que orientado pelo António Piedade, é patrocinado pela Associação Portuguesa de Imprensa:
A conclusão das fases
mais avançadas dos ensaios clínicos de várias vacinas anti-COVID-19 no final do
ano passado abriu o caminho para que 2021 seja o ano da vacinação em todo o
mundo. Assistimos a um feito inédito da ciência. Se o vírus surgiu no final de
2019 e se espalhou globalmente no início de 2020, nunca uma vacina tinha sido
feita em apenas dez meses (a mais rápida, a da papeira, tinha demorado quatro anos).
Milhões de pessoas já foram inoculadas em numerosos países. Israel tem sido o “campeão”
da vacinação, com o maior número de doses por 100 habitantes. Na Europa quem
vai à frente é o Reino Unido, estando Portugal muito próximo da média da União
Europeia.
A 2 de Dezembro passado o
Reino Unido aprovou a vacina da BioNTech-Pfizer, desenvolvida por um consórcio
entre uma pequena e relativamente recente empresa biotecnológica alemã e uma
mais do que centenária multinacional farmacêutica sedeada nos EUA, tornando-se pouco
depois no primeiro país ocidental a começar o processo de vacinação. A 11 de
Dezembro as autoridades dos EUA autorizavam essa vacina. Numa decisão com impacto
no nosso país, a União Europeia aprovou-a a 21 de Dezembro, tendo 27 de Dezembro
sido o dia D da vacina em Portugal, com a primeira dose dada a um médico do Hospital
de S. João, no Porto. Até hoje essa é vacina a que obteve mais autorizações à
escala global.
A vacina germânico-americana
foi a primeira a ser desenvolvida contra um coronavírus (não há ainda uma vacina
contra o SARS-CoV-1, o coronavírus que originou uma epidemia no início do
século XXI). Esta é também a primeira vacina de uma nova geração, baseada em
material genético, a ser aprovada para utilização em seres humanos. Ela recorre
ao RNA mensageiro (mRNA), uma molécula que leva informação do DNA, que está no
núcleo celular, para os ribossomas, as fábricas de proteínas. Nesta vacina não
é introduzido nem o vírus nem uma sua proteína, mas sim e apenas a instrução
para produzir a proteína viral, que desencadeia a formação de anticorpos e de
células de memória que têm um efeito preventivo da doença. A ideia do uso
terapêutico do mRNA foi de uma bioquímica húngara, Katalin Karikó. Em 1990,
quando trabalhava na Universidade da Pensilvânia, em Filadélfia, nos EUA, Karikó
submeteu o seu primeiro projecto de uma terapia baseada em mRNA. Não foi fácil
provar a validade das suas ideias e, assim, obter a concordância da comunidade
científica. Mas a investigadora húngara não desistiu. Apesar da não promoção na
carreira e escassez de recursos, continuou a trabalhar. Em 2005, após ter
estado à beira da expatriação, publicou, com o imunologista norte-americano Drew
Weissman, um artigo no qual resolvia o problema de rejeição do mRNA modificado
geneticamente. Este trabalho chamou a atenção de um casal de médicos alemães de
origem turca, Ugur Sahin e Özlem Türeci, que fundaram em 2008 a BioNTech em
Mainz, na Alemanha. Na vacina que a BioNTech desenvolveu e a Pfizer fabricou
são dadas instruções para os ribossomas fabricarem as proteínas da espícula, proteínas
decisivas para que o vírus entre nas células humanas e provoque infecção. Essa
proteína do vírus é feita pelas nossas células em resultado da vacina. Mas o nosso
sistema imunitário reconhece-a como não sendo nossa e responde passado pouco
tempo. Ao fim de duas doses separadas em regra por 21 dias, a eficácia é de 95%.
Mas há outras vacinas
para além desta. Concebida nos EUA com base no mesmo princípio, existe a vacina
da Moderna, uma empresa de biotecnologia com sede em Boston. Foi aprovada a 18
de Dezembro no país de origem e a 6 de Janeiro na União Europeia. Baseada numa tecnologia
diferente, existe a chamada “vacina de Oxford”, por ter sido desenvolvida na
Universidade de Oxford, no Reino Unido, e que é produzida pela AstraZeneca, uma
empresa anglo-sueca. Esta vacina utiliza um adenovírus (vírus bastante comuns
que causam constipações e sintomas parecidos com os da gripe) de um chimpanzé.
Esse vírus é modificado geneticamente para não se conseguir multiplicar nas
nossas células, mas o gene da proteína da espícula que lá está é lido pelas
nossas células e transcrito para mRNA, sendo o resto do processo como na vacina
da BioNTech-Pfizer. A vacina russa Sputnik-V é muito semelhante à de Oxford,
tendo como principal diferença o uso de dois adenovírus diferentes em cada
toma. Ou seja: o passageiro é o mesmo, sendo o condutor diferente. A vacina da Johnson
& Johnson, uma empresa norte-americana quase tão antiga como a Pfizer, que ainda
está à espera de aprovação, pertence à mesma família. Outras vacinas usam vírus
inactivados (como as chinesas da Sinopharm e da Sinovac) ou introduzem diretamente
proteínas ou partes delas (como a norte-americana da Novavax).
De facto, os chineses e
os russos, anteciparam-se ao mundo ocidental. Em Junho a China já tinha
aprovado algumas das suas vacinas para usos restritos, como o militar. E, em
Agosto, a Rússia tinha aprovado, para uso de emergência, a Sputnik V. Actualmente
existe, nas vacinas, uma verdadeira competição geoestratégica. Em Portugal estão
autorizadas as vacinas da BioNTech-Pfizer, da Moderna e da AstraZeneca. A
vacina, que a ciência proporcionou em tempo recorde, constitui neste momento a
nossa maior esperança para vencer a pandemia.
Carlos Fiolhais*
*Professor de Física da Universidade de Coimbra
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