quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

A LUA DE KALKA


Minha recensão no último "As Artes entre as Letras":

Não, não é da lua de Kafka, embora a Lua esteja presente na obra de Franz Kafka, que quero falar. É do ensaio A Lua da autoria do tradutor e escritor alemão Joachim Kalka (n. 1948), saído há poucos meses na editora Bazarov do Porto, o qual, por acaso, até fala de Kafka. O autor, trabalhando em Leipzig, não só traduziu para a sua língua-mãe uma mão cheia de autores ingleses e franceses como é autor de numerosos artigos em revistas literárias e, desde 2004, de livros próprios. Esta digressão literária à volta da Lua é o seu primeiro livro traduzido em português. Teria ficado entre nós ignorado não fora o aparecimento no ano passado da Bazarov, criada por Ricardo Costa, que. após curso de Letras na Uni coordenação  editorial de Guilherme Pires, já nos trouxe uma dúzia de livros, metade de ficção e metade de ensaio, prometendo o dobro para este ano. Destaco “Teoria de Cordas” do escritor norte-americano David Foster-Wallace, um curioso ensaio sobre o ténis.

Bazarov é um apelido russo: Bazarov é um personagem, um estudante de medicina e niilista, do romance Pais e Filhos (1862) do escritor russo Ivan Turguéniev. Os livros da Bazarov não são fáceis de encontrar, neste tempo de confinamento. Podem, porém, ser encomendados através do site da editora (feito, tal como o design gráfico dos livros, com simplicidade e bom gosto, pelos Estúdios Andrew Howard, que tinham feito o design da editora Ahab, também do Porto).  

A Lua é o astro mais perto de nós, pelo que é central na nossa vida, na nossa literatura e na nossa arte. O roteiro de Kalka em torno da Lua é eminentemente pessoal. Poder-se-ia escrever um outro ensaio com outras tantas citações sobre a Lua, que sobraria ainda bastante material. No livro, bem traduzido do alemão por Isabel Castro Silva (que teve um enorme cuidado nas traduções das citações, indo buscar as fontes mais fiáveis em português, e deixando-nos o original dos poemas em alemão), cada capítulo abre com um pequeno ícone da lua, começando com uma lua nova (o livro tem cinco lua novas, o que significa 20 pequenos capítulos, que partem sempre de uma ou mais citações literárias). 

Entre os numerosos autores citados, lá está Franz Kafka, o escritor checo que escrevia em alemão. É feita uma citação transcrita  do livro O Processo (1925), no qual o bancário Joseph K. é processado e condenado sem qualquer acusação concreta. Na cena final lê-se: “Então largaram K., que aguardava calado, tiraram os chapéus cilíndricos e limparam o suor da testa com os lenços, enquanto olhavam em redor para a pedreira. Por toda a parte havia o luar com a sua naturalidade e serenidade que mais nenhuma luz tem.” O luar era, portanto, testemunha da inocência de K.  Kalka parte logo para uma citação do escritor inglês recentemente falecido John le Carré, tirado do romance Guerra de Espelhos (1965), que refere o luar como inimigo dos pilotos de guerra e dos espiões que atravessam fronteiras. E logo salta para uma canção do cantor alemão  Franz Josef Degenhard, que na canção “As pessoas aqui são assim” fala de um forasteiro que é aconselhado a ficar em casa numa noite de luar: “A Lua está cheia, esta é a hora/ Em que ninguém consegue dormir aqui à noite.” Conclui Kalka este capítulo que “A Lua é o fenómeno natural que expõe o perseguido (‘e hoje a noite está clara’) e é ao mesmo tempo a força demoníaca que enlouquece as pessoas.“

A palavra “lunático” dá conta que  Lua e doença mental estão relacionadas. No poema Orlando  Furioso (1532), do italiano Ludovico Ariosto, um cavaleiro vai à Lua  buscar o juízo perdido por causa do amor por uma dama, montado num hipogrifo. Na Antiguidade já o romano Luciano de Samósata tinha descrito uma viagem à Lua em História Verdadeira (séc. II) e, na Revolução Científica, o astrónomo alemão Johannes Kepler voltaria a esse tema no conto O Sonho (1634), que pode ser considerada a primeira obra de ficção científica. Kalka,num registo anacrónico. coloca Ariosto entre As Loucas Aventuras do Barão de Münchhausen (1785) e o poema The Rape of the Lock (1712) do inglês Alexandre Pope. Sobressaem no ensaio autores de língua germânica que tem a particularidade de Lua ser masculino (“Der Mond”) ao passo que Sol é feminino (“Die Sonne”).

Há também a proverbial associação da Lua ao amor. Escreve Kalka, depois de citar o escritor suíço Gottfried Keller: “Tem vergonha, luar… Vergonha porquê? Por causa da suspeita generalizada de que a Lua - a Luna que brilha tão insolentemente, esteja em conluio com o erotismo.” E passa para o Romeu e Julieta (1595) de Shakespeare.

As citações de Kalka são intermináveis, enredando-nos numa história cultural da Lua. Começa com Jorge Luís Borges, que, no poema “A Lua”, fala de um registador num livro de todas as coisas do Universo que, quando acaba, levanta os olhos ao céu para reparar que se esqueceu da Lua… No ensaio encontramos Shakespeare, Goethe, Hoffmann, Keats, Buechner, Dostoiévski, Gogol, Wilde, Nabokov, Chandler, etc. Mas há também referências a obras de cinema (por exemplo, o filme mudo La Voyage dans la Lune, de 1902, de George Meliès e Pardon Us, de 1931, com Laurel e Hardy, e Cyrano de Bergerac, de 1990, com Gérard Dépardieu) e a obras musicais (por exemplo, a Flauta Mágica de Mozart de 1791, o Turandot de Puccini, de 1926, e O Anjo Azul de von Sternberg, de 1930, com Marlene Dietrich). Outras formas de cultura popular, como a banda desenhada, não são esquecida: são transcritas as primeiras palavras de Tintim quando, extasiado, vê a Lua de perto. 

Há também alguma história da ciência. Por exemplo, o padre e físico francês Pierre Gassendi, um amigo de Galileu, acreditava na existência de vida na Lua. E há moderna pseudociência: é referida a teoria da conspiração segunda a qual os astronautas da NASA nunca puseram os pés na Lua, tudo não tendo passado de uma encenação.

A Lua, tal como as rosas e o mar, parece um cliché esgotado na literatura, e, no entanto, ela continua a brilhar no nosso céu e na nossa arte. No final, Kalka conta uma notícia sobre um leilão de adereços num teatro inglês no início do século XVIII, no qual é  licitada “uma lua nova um tanto decaída”. Apesar de algum decaimento, a nossa lua continua nova,

 Carlos Fiolhais

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