Minha recensão no último "As Artes entre as Letras":
Não, não é da lua de Kafka, embora a Lua esteja presente na obra
de Franz Kafka, que quero falar. É do ensaio A Lua da autoria do
tradutor e escritor alemão Joachim Kalka (n. 1948), saído há poucos meses na
editora Bazarov do Porto, o qual, por acaso, até fala de Kafka. O autor,
trabalhando em Leipzig, não só traduziu para a sua língua-mãe uma mão cheia de
autores ingleses e franceses como é autor de numerosos artigos em revistas
literárias e, desde 2004, de livros próprios. Esta digressão literária à volta
da Lua é o seu primeiro livro traduzido em português. Teria ficado entre nós
ignorado não fora o aparecimento no ano passado da Bazarov, criada por Ricardo
Costa, que. após curso de Letras na Uni coordenação editorial de Guilherme Pires, já nos
trouxe uma dúzia de livros, metade de ficção e metade de ensaio, prometendo o
dobro para este ano. Destaco “Teoria de Cordas” do escritor norte-americano
David Foster-Wallace, um curioso ensaio sobre o ténis.
Bazarov é um apelido russo: Bazarov é um personagem, um estudante
de medicina e niilista, do romance Pais e Filhos (1862) do escritor
russo Ivan Turguéniev. Os livros da Bazarov não são fáceis de encontrar, neste
tempo de confinamento. Podem, porém, ser encomendados através do site da
editora (feito, tal como o design gráfico dos livros, com simplicidade e bom
gosto, pelos Estúdios Andrew Howard, que tinham feito o design da editora Ahab, também do Porto).
A Lua é o astro mais perto de nós, pelo que é central na nossa
vida, na nossa literatura e na nossa arte. O roteiro de Kalka em torno da Lua é
eminentemente pessoal. Poder-se-ia escrever um outro ensaio com outras tantas
citações sobre a Lua, que sobraria ainda bastante material. No livro, bem
traduzido do alemão por Isabel Castro Silva (que teve um enorme cuidado nas
traduções das citações, indo buscar as fontes mais fiáveis em português, e
deixando-nos o original dos poemas em alemão), cada capítulo abre com um
pequeno ícone da lua, começando com uma lua nova (o livro tem cinco lua novas,
o que significa 20 pequenos capítulos, que partem sempre de uma ou mais
citações literárias).
Entre os numerosos autores citados, lá está Franz Kafka, o
escritor checo que escrevia em alemão. É feita uma citação transcrita do
livro O Processo (1925), no qual o bancário Joseph K. é processado e
condenado sem qualquer acusação concreta. Na cena final lê-se: “Então largaram
K., que aguardava calado, tiraram os chapéus cilíndricos e limparam o suor da
testa com os lenços, enquanto olhavam em redor para a pedreira. Por toda a
parte havia o luar com a sua naturalidade e serenidade que mais nenhuma luz
tem.” O luar era, portanto, testemunha da inocência de K. Kalka parte
logo para uma citação do escritor inglês recentemente falecido John le Carré,
tirado do romance Guerra de Espelhos (1965), que refere o luar como
inimigo dos pilotos de guerra e dos espiões que atravessam fronteiras. E logo
salta para uma canção do cantor alemão Franz Josef Degenhard, que na
canção “As pessoas aqui são assim” fala de um forasteiro que é aconselhado a
ficar em casa numa noite de luar: “A Lua está cheia, esta é a hora/ Em que
ninguém consegue dormir aqui à noite.” Conclui Kalka este capítulo que “A Lua é
o fenómeno natural que expõe o perseguido (‘e hoje a noite está clara’) e é ao
mesmo tempo a força demoníaca que enlouquece as pessoas.“
A palavra “lunático” dá conta que Lua e doença mental estão
relacionadas. No poema Orlando Furioso (1532), do italiano
Ludovico Ariosto, um cavaleiro vai à Lua buscar o juízo perdido por causa
do amor por uma dama, montado num hipogrifo. Na Antiguidade já o romano Luciano
de Samósata tinha descrito uma viagem à Lua em História Verdadeira (séc.
II) e, na Revolução Científica, o astrónomo alemão Johannes Kepler voltaria a
esse tema no conto O Sonho (1634), que pode ser considerada a primeira
obra de ficção científica. Kalka,num registo anacrónico. coloca Ariosto entre As Loucas Aventuras do Barão de Münchhausen (1785) e o poema The Rape of the Lock (1712)
do inglês Alexandre Pope. Sobressaem no ensaio autores de língua germânica que
tem a particularidade de Lua ser masculino (“Der Mond”) ao passo que Sol é
feminino (“Die Sonne”).
Há também a proverbial associação da Lua ao amor. Escreve Kalka,
depois de citar o escritor suíço Gottfried Keller: “Tem vergonha, luar…
Vergonha porquê? Por causa da suspeita generalizada de que a Lua - a Luna que
brilha tão insolentemente, esteja em conluio com o erotismo.” E passa para o Romeu
e Julieta (1595) de Shakespeare.
As citações de Kalka são intermináveis, enredando-nos numa
história cultural da Lua. Começa com Jorge Luís Borges, que, no poema “A Lua”,
fala de um registador num livro de todas as coisas do Universo que, quando
acaba, levanta os olhos ao céu para reparar que se esqueceu da Lua… No ensaio
encontramos Shakespeare, Goethe, Hoffmann, Keats, Buechner, Dostoiévski, Gogol,
Wilde, Nabokov, Chandler, etc. Mas há também referências a obras de cinema (por
exemplo, o filme mudo La Voyage dans la Lune, de 1902, de George Meliès
e Pardon Us, de 1931, com Laurel e Hardy, e Cyrano de Bergerac, de
1990, com Gérard Dépardieu) e a obras musicais (por exemplo, a Flauta Mágica
de Mozart de 1791, o Turandot de Puccini, de 1926, e O Anjo Azul
de von Sternberg, de 1930, com Marlene Dietrich). Outras formas de cultura
popular, como a banda desenhada, não são esquecida: são transcritas as
primeiras palavras de Tintim quando, extasiado, vê a Lua de perto.
Há também alguma história da ciência. Por exemplo, o padre e
físico francês Pierre Gassendi, um amigo de Galileu, acreditava na existência
de vida na Lua. E há moderna pseudociência: é referida a teoria da conspiração
segunda a qual os astronautas da NASA nunca puseram os pés na Lua, tudo não
tendo passado de uma encenação.
A Lua, tal como as rosas e o mar, parece um cliché esgotado na
literatura, e, no entanto, ela continua a brilhar no nosso céu e na nossa arte.
No final, Kalka conta uma notícia sobre um leilão de adereços num teatro inglês
no início do século XVIII, no qual é licitada “uma lua nova um tanto
decaída”. Apesar de algum decaimento, a nossa lua continua nova,
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