Que
ambiente molecular encontraríamos se conseguíssemos ver o interior de uma
célula á escala atómica? Que hora
de ponta bioquímica existe na agitação molecular característica dos processos
biológicos vitais? Será que o conhecimento entretanto acumulado desde a
formulação da teoria celular (que diz que a unidade fundamental de todos os
seres vivos é a célula) em 1830, por Schleiden e Schwann, nos permite ter uma ideia, mais ou menos precisa, desse ambiente? Se sim, como o poderemos
retratar para que possa ser visto pelos nossos olhos nano e micro-míopes?
De facto,
desde que a ureia foi sintetizada em laboratório por Friedrich Woehler,
em 1828, derrubando assim a teoria vital (a de que os compostos orgânicos só
podiam ser sintetizados no interior de seres vivos), a cartografia biomolecular
da célula foi sendo preenchida e detalhada com um
número espantosos de moléculas e iões diferentes. Mais do que um inventário e
catalogação de aglomerados moleculares e iónicos, o conhecimento das propriedades
e físico-químicas dessas nuvens electrónicas intrinsecamente nucleadas por
protões e neutrões (e outros ões sub-nucleares)
em diversas combinações, tem permitido a construção de modelos e de simulações
do que acontece a um nível
biomolecular.
O poder de
cálculo útil com que as tecnologias informáticas e de computação nos têm brindado nas últimas décadas (anos) contribuiu e permitiu, de forma decisiva, para a modelação e simulação de interacções moleculares com significado e
funcionalidade biológicas.
Exemplos desta confluência,
entre o saber bioquímico e a informática, são as
bases de dados que passaram a desaguar imagens em aplicativos nos desktops,
laptops, mobiles, etc. De entre elas, o RCSB Protein Data Bank (PDB) (http://www.rcsb.org/pdb/home/home.do),
banco de dados sobre estruturas tridimensionais de proteínas e ácidos
nucleicos, de domínio público e livre acesso, é
disso exemplo incontornável. Mais de 170 mil
estruturas biomoleculares estão ali depositadas e à espera de serem
visualizadas.
Um ritual
do sítio do PDB é o da publicação mensal de uma estrutura biomolecular seleccionada e desenhada pelo médico/artista molecular David
S. Goodsell (http://mgl.scripps.edu/people/goodsell/).
Desde Janeiro de 2000 (ou seja desde o último ano do século passado) que, mensalmente, Goodsell
nos brinda com as suas aguarelas bioquímicas. Utilizando uma técnica de pintura
que relembra o cloisonismo (técnica de pintura desenvolvida no último quartel
do século XIX, primeiramente denominada por Edouard Dujardin,
aquando do “Salão dos Independentes” ocorrido em Paris em Março de 1988, e caracterizada por
gradações de uma mesma cor delimitadas por traços escuros), Goodsell consegue
transmitir-nos a tridimensionalidade das estruturas moleculares sobre suporte bidimensional (o
monitor, a folha de papel) e, assim, torna mais intuitiva a percepção da relação estrutura função, natureza essencial da Biologia
Molecular e Bioquímica.
De facto,
é preciso uma grande capacidade de abstracção e imaginação espacial para
conseguir aprender estruturas e relações que funcionam devido à sua interacção tridimensional no
tempo, em suportes bidimensionais. O recurso a animações 3D e vídeos que hoje começam a ser comuns no ensino da Bioquímica, parece ser um caminho
interessante a percorrer. Contudo, enquanto estas novas e atractivas
plataformas baseadas em tecnologia “new media” não se democratizam com
qualidade e rigor científico, as representações tradicionais tenderão a ser o
material de referência.
Neste contexto, o trabalho desenvolvido por Goodsell, pelo menos desde 1991, na comunicação de
conhecimento bioquímico e biológico através de aguarelas adquiriu estatuto de
espaço próprio e de tendência representativa nesta área.
Também por
isso é que o seu livro “The Machinery of Life”, editado primeiramente pela Springer em 1993, e reeditado em 2009 pela mesma editora (ISBN:
978-0-387-84924-9),
é um marco das boas e frutíferas relações
entre arte e ciência. No seu livro, David Goodsell alia a sua arte pictórica e o seu conhecimento bioquímico para nos apresentar
instantes de um mundo biomolecular denso em diversidade e
nos guiar através dos processos moleculares subjacentes à vida. Mas Goodsell não se limita só a
representar as diferentes biomoléculas, seus agregados funcionais e estruturas
intracelulares com cores diferentes e matizadas para uma perspectiva em
profundidade. Mais do que isso, utiliza a vastíssima informação analítica sobre
a composição quantitativa e qualitativa das moléculas e átomos da vida, disponível
nas inúmeras fontes de informação registadas em suportes celulósicos e
electrónicos, para nos dar retratos dos fenómenos biológicos a nível molecular
respeitando a demografia da miríade de componentes que participa na aventura da
vida.
A estrutura tridimensional
do Sars-Cov-2, que causa a doença pandémica COVID-19, foi determinada em 2020 e
Goodsell não podia deixar de o ilustrar com a sua arte. É essa ilustração do novo
coronavírus que aqui se apresenta.
António Piedade
Imagem: Créditos D. Goodsell.
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