sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

AGUARELA BIOQUÍMICA E COVID-19

 

SARS-Cov-2, ilustração de D. Goodsell


Que ambiente molecular encontraríamos se conseguíssemos ver o interior de uma célula á escala atómica? Que hora de ponta bioquímica existe na agitação molecular característica dos processos biológicos vitais? Será que o conhecimento entretanto acumulado desde a formulação da teoria celular (que diz que a unidade fundamental de todos os seres vivos é a célula) em 1830, por Schleiden e Schwann, nos permite ter uma ideia, mais ou menos precisa, desse ambiente? Se sim, como o poderemos retratar para que possa ser visto pelos nossos olhos nano e micro-míopes?

De facto, desde que a ureia foi sintetizada em laboratório por Friedrich Woehler, em 1828, derrubando assim a teoria vital (a de que os compostos orgânicos só podiam ser sintetizados no interior de seres vivos), a cartografia biomolecular da célula foi sendo preenchida e detalhada com um número espantosos de moléculas e iões diferentes. Mais do que um inventário e catalogação de aglomerados moleculares e iónicos, o conhecimento das propriedades e físico-químicas dessas nuvens electrónicas intrinsecamente nucleadas por protões e neutrões (e outros ões sub-nucleares) em diversas combinações, tem permitido a construção de modelos e de simulações do que acontece a um nível biomolecular.

O poder de cálculo útil com que as tecnologias informáticas e de computação nos têm brindado nas últimas décadas (anos) contribuiu e permitiu, de forma decisiva, para a modelação e simulação de interacções moleculares com significado e funcionalidade biológicas.

Exemplos desta confluência, entre o saber bioquímico e a informática, são as bases de dados que passaram a desaguar imagens em aplicativos nos desktops, laptops, mobiles, etc. De entre elas, o RCSB Protein Data Bank (PDB) (http://www.rcsb.org/pdb/home/home.do), banco de dados sobre estruturas tridimensionais de proteínas e ácidos nucleicos, de domínio público e livre acesso, é disso exemplo incontornável. Mais de 170 mil estruturas biomoleculares estão ali depositadas e à espera de serem visualizadas.

Um ritual do sítio do PDB é o da publicação mensal de uma estrutura biomolecular seleccionada e desenhada pelo médico/artista molecular David S. Goodsell (http://mgl.scripps.edu/people/goodsell/). Desde Janeiro de 2000 (ou seja desde o último ano do século passado) que, mensalmente, Goodsell nos brinda com as suas aguarelas bioquímicas. Utilizando uma técnica de pintura que relembra o cloisonismo (técnica de pintura desenvolvida no último quartel do século XIX, primeiramente denominada por Edouard Dujardin, aquando do “Salão dos Independentes” ocorrido em Paris em Março de 1988, e caracterizada por gradações de uma mesma cor delimitadas por traços escuros), Goodsell consegue transmitir-nos a tridimensionalidade das estruturas moleculares sobre suporte bidimensional (o monitor, a folha de papel) e, assim, torna mais intuitiva a percepção da relação estrutura função, natureza essencial da Biologia Molecular e Bioquímica.

De facto, é preciso uma grande capacidade de abstracção e imaginação espacial para conseguir aprender estruturas e relações que funcionam devido à sua interacção tridimensional no tempo, em suportes bidimensionais. O recurso a animações 3D e vídeos que hoje começam a ser comuns no ensino da Bioquímica, parece ser um caminho interessante a percorrer. Contudo, enquanto estas novas e atractivas plataformas baseadas em tecnologia “new media” não se democratizam com qualidade e rigor científico, as representações tradicionais tenderão a ser o material de referência.

Neste contexto, o trabalho desenvolvido por Goodsell, pelo menos desde 1991, na comunicação de conhecimento bioquímico e biológico através de aguarelas adquiriu estatuto de espaço próprio e de tendência representativa nesta área.  

Também por isso é que o seu livro “The Machinery of Life”, editado primeiramente  pela Springer em 1993, e reeditado em 2009 pela mesma editora (ISBN: 978-0-387-84924-9), é um marco das boas e frutíferas relações entre arte e ciência. No seu livro, David Goodsell alia a sua arte pictórica e o seu conhecimento bioquímico para nos apresentar instantes de um mundo biomolecular denso em diversidade e nos guiar através dos processos moleculares subjacentes à vida. Mas Goodsell não se limita só a representar as diferentes biomoléculas, seus agregados funcionais e estruturas intracelulares com cores diferentes e matizadas para uma perspectiva em profundidade. Mais do que isso, utiliza a vastíssima informação analítica sobre a composição quantitativa e qualitativa das moléculas e átomos da vida, disponível nas inúmeras fontes de informação registadas em suportes celulósicos e electrónicos, para nos dar retratos dos fenómenos biológicos a nível molecular respeitando a demografia da miríade de componentes que participa na aventura da vida.

A estrutura tridimensional do Sars-Cov-2, que causa a doença pandémica COVID-19, foi determinada em 2020 e Goodsell não podia deixar de o ilustrar com a sua arte. É essa ilustração do novo coronavírus que aqui se apresenta.

António Piedade

Imagem: Créditos D. Goodsell.

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