No livro "Mundos Imaginados", de June Goodfield (original norte-americano de 1981, edição da Gradiva de 1988, publicada por Guilherme Valente por sugestão de Onésimo Teotónio Almeida), a cientista portuguesa Maria de Sousa é identificada com o pseudónimo de Anna Brito. Nesse mesmo ano um número especial da revista "Gávea-Brown" foi-lhe dedicado, encontrando-se aí comentários, alguns poemas dela e uma grande entrevista de Onésimo Teotónio Almeida, professor na Universidade Brown:
https://www.brown.edu/academics/portuguese-brazilian-studies/sites/brown.edu.academics.portuguese-brazilian-studies/files/uploads/gavea%202.2.pdf
Há aí uma nota biográfica sobre Anna Brito, assinado por "Vieira do Canto Maia" (dito "freelance writer em New York"), que é certamente auto-biográfico, atendendo ao manancial de informação privada que contém. Transcrevo-o aqui, com um abraço ao Onésimo, que conheceu a Anna/Maria, muito antes de nós a conhecermos (ele tem este o jeito de estar na altura certa na hora certa). Com a obrigatória e merecida vénia tomo a liberdade de o transcrever. Revela quem era Maria de Sousa, vista por si própria:
Nota Biográfica sobre Ana Brito
Vieira do Canto Maia
A Dra. Ana Brito nasceu em Lisboa no Outono de 1939, filha de mae
lisboeta (freguesia de Santa Catarina) e de pai açoriano (freguesia da Fajã de
Baixo). Ana é heter6nimo, Brito, nome da jamflia da Mãe que, de outro
modo, se dissiparia por os av6s matemos s6 terem tido filhas; o seu uso
representa, portanto, o gesto "quixotesco" de quem sabe ter a mulher igual
responsabilidade biol6gica na carga genética que passa a filhos (ou filhas), e
assim poder restituir à mulher o igual transmitir de nome, e ao homem o direito de que seu nome se não sinta perdido por ter filhas e não filhos.
Cresceu no Dafundo entre o Tejo e o piano da prima com quem aprendeu
a tocar piano. Desse tempo lembra-se da dificuldade de tocar a "Aveé Maria"
de Gounod com mãos pequenas, de não querer aprender a ler, de brincar às famílias com um menino da mesma idade, e de ler O Capuchinho Vermelho
quando teve escarlatina. Aos 9 anos entrou para o Liceu Rainha D. Leonor,
onde completou o curso liceal em 1956. Nesses sete anos aprendeu a apreciar
casas velhas (o liceu era então no Palácio da Junqueira), desenvolveu um raro
gosto por andar de elétrico, começou a distinguir entre os que sabem e os que
pretendem que sabem, sobreviveu à atmosjera exclusivamente feminina da
escola fazendo algumas amigas e decidiu entrar para a Faculdade de Medicina,
depois de muito debater seguir Matemática.
Jornadas diárias entre o Dafundo e o Hospital de Santa Maria não eram fáceis em 1957; apercebeu-se pela primeira vez, nesses primeiros anos da
Faculdade, de quanta gente, alem de seu Pai, começava a trabalhar às 6 da
manha. Frequentando ao mesmo tempo o Conservat6rio Nacional, teve a
oportunidade de descobrir, por si só, sempre só, o Bairro Alto e a beleza das
grandes casas vazias de tudo menos de música. Nunca acabou o curso superior
de piano, mas o ter de frequentar o Conservat6rio contribuiu largamente para
a sua apreciação dos elevadores da cidade de Lisboa. Na Faculdade de
Medicina aprendeu, como era sua obrigação, coisas que satisfizeram favoravelmente o apetite voraz de examinadores nem sempre competentes.
Duas grandes fascinaç6es, nunca avaliadas por exame, tomaram forma nessa
altura: 1. a microscopia do momento da fecundação do 6vulo; 2. o fazer de perguntas em silêncio, ao microscópio. Da companhia dos colegas ficaram
cheiros de tabaco de cachimbo, a seriedade de ouvir Hindemith em grupo, o tempo que se perde a conversar, o julgar-se apaixonado de quando se é novo, e
um sabor à futilidade da agitação política falada, de microfone, sem compromisso de acção e vida. Sabor, portanto, a tempos perdidos e ganhos, gosto
pelo silêncio das bibliotecas e a decisão de fazer investigação. Memórias das
primeiras experiências: provocar tumores no estômago de coelhos,' em parte
por inspiração do professor com quem veio a fazer a tese, em parte pelos
coelhos, em parte pelo colega com quem as jazia. Em Outubro de 1963, completou o curso de Medicina em Lisboa e, na companhia do Petit Prince, partiu
para Londres em 1964. Aí, onde esteve até 1966, mudou muito. Científica e
humanamente evidenciaram-se os primeiros sinais de uma mudança mais exactamente descrita pela distinção entre a geleia e a compota. Um breve voltar a
Portugal entre 1966 e 1967 resultou mal, e bem, porque decidiu lá não ficar.
Em 1967 tomou a primeira posição de ensino em Imunologia, na Universidade
de Glasgow, onde se doutorou em 1971. Em terra de cinzentos aprendeu arco-iris pessoais, da mulher que começou verdadeiramente a ser, e científicos, de
ver hipóteses crescer por si próprias exigindo outras escolhas e outros paises.
Assim, em, 1975, fez uma sabática nos Estados Unidos e, em 1976, para cá veio
trabalhar deixando atrás um arco-iris, para só mais tarde se transformar
noutro, definitivo.
Nos Estados Unidos, da compota que ainda era, reganhou o azedo e o real sabor dos frutos que detestam tudo o que e desumano no sistema
capitalista (v. "Prayor for the hurricane men" e "Rewriting the book of Job
with fountain pens', e, ao mesmo tempo, reconhecem que todos os sistemas
humanos são falíveis (e têm falhado) e que o mais importante é o que fica feito
"malgré tout" (v. "A Naive Picture of American History"). (Publicados a
seguir)
"Malgre elle-meme,"publicou, em 1981, um livro sobre a circulação dos
linfócitos e apercebeu-se recentemente de que tem 100 artigos científicos
publicados. Meteu-se-Ihe primeiro na cabera, depois nas pobres cabeças de
quem tem trabalhado com ela nos últimos cinco anos, e recentemente noutras
cabeças, noutros países, que há um mundo a explorar na fronteira entre o sistema imunologico e o sistema do metabolismo do ferro.
Presentemente, sob influência do pensador português Agostinho da Silva,
acredita também que há um futuro de grande esperança para a língua portuguesa (v. Agostinho da Silva, Nova Renascença, Primavera de 1982), que
um dos fulcros desse futuro é o Porto, e que há um número suficiente de bons
imunologistas portugueses para aí se começar a construir o futuro pensado do
pensador. Na hora em que este número vai para o prelo, sente-se tal como se
dizia Saint-Exupery em Dezembro de 1939: "Je ne suis ni vieux ni jeune. Je
suis celui qui passe de la jeunesse a la vieillesse. Je suis quelque chose qui se forme. Je suis un vieillissement (Saint Ex, Écrits de Guerre, Gallimard, 1982).
Não tem automóvel.
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1 comentário:
A biografia é sempre um trabalho incompleto de transvisão (palavra inventada) de quem a escreve, o que deforma o reflexo do visado. As atmosjeras de ambos fundem-se e criam um sujeito parecido com a personagem principal do filme "A mosca", o que é tremenda e globalmente deteriorante.
Por outro lado, as autobiografias são exercícios de vaidade, parecidos com as entrevistas. Não fui 6u que disse, foi o António Lobo Antunes.
O melhor é não fazer nada disso. O escritor escreve, o cientista descobre (e por aí fora), a comunidade lê, aprende ou não e só isso importa. Temos todos direito às nossas virtudes e defeitos e não vejo ninguém melhor do que isto.
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