terça-feira, 14 de abril de 2020

Maria de Sousa / e.e. cummings: "Amanhã é a nossa morada permanente"


No dia da morte de Maria de Sousa recordo um texto seu dos vários incluídos no livro "Meu Dito, Meu Escrito" , que a autora publicou na Gradiva (e em cuja edição tive o gosto de colabor). Trata-se da apresentação do Plano Nacional de Saúde ( Com João Lavinha) realizada no Porto em 2004. este texto tem a particularidade de a autora falar da ameaça das epidemias (refere o SARS). É exemplar na defesa da ciência, que ela prosseguiu durante toda a sua vida. Que o seu pensamento clarividente fique entre nós: 

O facto de o Plano Nacional de Saúde (PNS) constituir uma preocupação que integrará a lista de numerosas preocupações que afligem o Ministério da Saúde foi saudado com agrado por todos os clínicos investigadores que participaram na discussão deste tópico.

A comissão coordenadora do Plano Nacional de Saúde, liderada pelos Professores Paulo Ferrinho e João Lavinha, criou duas oportunidades para a discussão específica do tema «Investigação em Saúde», ambas coordenadas superiormente pelo Senhor Director-Geral, Senhor Professor José Pereira Miguel. A primeira oportunidade foi o fórum organizado pelo Instituto Nacional Ricardo Jorge, de que é director o Professor João Lavinha, em que participaram dezenas de investigadores, clínicos e não clínicos, os directores da FCT e do Plano para o Fomento da Investigação no Ministério
da Saúde, entre outros. O fórum reuniu à roda da pergunta: «Falta-nos um Sistema Nacional de Investigação em Saúde?» A segunda oportunidade foi uma série de reuniões, organizadas pelo Professor Ferrinho, por mim e pelo Professor Lavinha, com um grupo mais pequeno de clínicos das áreas da sida (Professor Rui Victorino), acidentes vasculares cerebrais (Professor José Ferro), Genética Humana e Doenças Genéticas (representadas por mim e pelo Professor Lavinha), Saúde
Pública e Epidemiologia (representadas pelo Professor Ferrinho) e Doença Hepática (Professora Estela Monteiro). Nessas reuniões considerámos a mesma pergunta do fórum, colocada pela representação da Direcção Geral da Saúde.

Não deveremos esquecer que a criação de Instituto Nacional de Investigação Biomédica (o INIBiomed) já tinha sido objecto de um despacho do Ministro da Ciência e Tecnologia em Abril de 2002. Um projecto do documento foi cuidadosamente preparado pelo Professor Fernando Lopes da Silva, a convite do ministro Mariano Gago, e foi discutido numa reunião com uma assistência restrita que teve lugar como parte das Conferências da Arrábida em Setembro de 2002.

Não faltam, portanto, intenções de papel nesta matéria. O desejo que se valorize a investigação científica vem, aliás, de tempos imemoriais e está bem documentada desde o século xviii. Um documento que eu particularmente aprecio foi publicado na Seara Nova em 1945, com o título «Uma iniciativa dos estudantes de Medicina do Porto», sob a forma de carta dirigida ao Conselho da Faculdade de Medicina do Porto. Alguma coisa, no entanto, deve faltar. Só assim se poderá justificar
o facto de, com as excepções notáveis de Egas Moniz e Corino de Andrade no país, a grande maioria
dos investigadores portugueses que estiveram e continuam a estar fora do país serem médicos a fazer investigação clínica, ou licenciados em medicina a fazer investigação em áreas da maior relevância para a medicina.

Como investigadores que somos, a dúvida domina a pergunta, a evidência, a ação. Uma das grandes belezas do colectivo que faz investigação científica é saber que, se partir armado com os mesmos instrumentos intelectuais e materiais, em geral chegará às mesmas conclusões. Ora, as conclusões a que chegaram os dois grupos (o grupo do fórum e o grupo, mais pequeno, das reuniões) relativas à integração da investigação no Plano Nacional de Saúde não foram muito diferentes. O consenso em ciência não é nem forçado, nem encorajado por ninguém. Atinge-se pela imposição da evidência
e da análise dos dados.

Os dados dizem-nos que há uma escassez flagrante de estudos multicêntricos em Portugal, que se estende desde a ausência de um registo nacional de cancro até ao não sabermos exactamente quais os números de doentes infectados pelos vírus HIV1, H1V2 ou HCV, por exemplo. A escassez de dados diz respeito também ao custo de algumas doenças e/ou tratamentos no país, uma área em que os dados não se encontram trabalhados de forma a sabermos atribuir-lhes significado. Por conseguinte, é imperativa a criação de redes temáticas que permitam aos investigadores de diferentes regiões colaborarem entre si. A existência de tais redes dará também ao país a oportunidade de «se saber» e actuar com base em conhecimento informado e formado.

O grau de valorização (0,5/20) da investigação científica e da gestão na exigência curricular hospitalar tem repercussões inevitáveis, não só no que não se sabe, mas também na forma como se sabe.

A necessidade de criar um orçamento específico de investigação dentro do Ministério da Saúde parece, a todos os que se têm debruçado sobre este assunto, óbvia. O grupo mais pequeno (o das reuniões) fez a proposta específica para que uma pequena percentagem do financiamento dos ensaios clínicos fosse colocada num Fundo Nacional de Investigação em Saúde, a que eu chamarei FUNIS. O ministro Mariano Gago deu ao Instituto o acrónimo INIBiomed. O fórum deu ao Sistema Nacional de Investigação em Saúde o acrónimo SNIS. Em resumo, eu diria que não há bela sem SNIS, nem há SNIS sem FUNIS, e que não vale a pena haver SNIS ou FUNIS sem VNIS: isto é, uma valorização
nacional da investigação em saúde.

Perdoem-me os que possam julgar que a invenção jocosa de novas siglas não reflecte a enorme seriedade com que eu encaro a questão da investigação em ciências da saúde em Portugal. Pelo contrário, se a área hoje se destaca como uma área de considerável produtividade científica com um financiamento na FCT três vezes menor do que a proporção de artigos publicados, é, em parte, e, insisto, só em parte, devido a uma também pequena comissão coordenadora da investigação em ciências da saúde a que presidi nos anos 80 e que introduziu a prática da avaliação externa de projectos e instituições na JNICT e na FCT. Uma prática posteriormente alargada a todas as áreas de investigação.

Siglas podem não faltar, mas a investigação não se faz nem com siglas nem com nomes sonantes dos programas. A investigação só se faz com investigadores. A avaliação externa teve consequências altamente produtivas porque tínhamos investigadores preparados para lhe «resistir».

A rapidez de resposta de um país às modificações do clima planetário, à mobilização global das populações para responder a grandes desafios, ao comportamento face à ameaça crescente de pandemias e doenças sexualmente transmitidas, etc., não se faz nem no papel nem com as mais imaginativas siglas do mundo: faz-se com treino e formação científica hoje, em áreas que
podem parecer irrelevantes para a medicina praticada hoje, mas que serão de imensa relevância para servir o país amanhã.

Na ausência de João Lavinha, que está a representar Portugal como delegado em Bruxelas, decidi usar um exemplo derivado do trabalho do ausente e do Instituto Ricardo Jorge. Nos anos 80, seguindo o exemplo da Dr.ª Vitória Vaz Pato, João Lavinha introduziu a prática da biologia molecular no estudo de hemoglobinopatias, nomeadamente da talassemia, uma doença que poderia parecer de pouca utilidade para a investigação clínica em Portugal. Dessa semente «inútil» para alguns, veio a crescer a prática alargada do treino e formação de investigadores e técnicos em biologia molecular
no Instituto Ricardo Jorge. Quando, em 2001, o antrax e, em 2002, o SARS se apresentaram como
ameaças reais em Portugal, o Instituto estava não só preparado para responder como tinha também numerosos técnicos prontos a aprenderem as técnicas mais avançadas para caracterizar novos e velhos microrganismos.

Quem subestimar a importância da investigação dentro do âmbito do Ministério da Saúde hoje, quem
subestimar a importância de estabelecer carreiras de investigação com avaliação externa dos candidatos, quem subestimar o valor de preparar técnicos em técnicas que hoje parecem inúteis, em projectos que hoje não parecem relevantes para a clínica, poderá ter de vir a responder pelas graves consequências para a saúde do país daqui a quinze ou vinte anos. Como os avanços nas ciências da saúde estão a ser extraordinariamente rápidos (em parte, pelo investimento que outros grandes e pequenos países estão a fazer nesta área) e como nós somos todos relativamente novos,
estaremos cá para julgar os erros que cometermos hoje.

Ainda assim, e sabendo que nos orgulharíamos de ver Portugal ter a ousadia de investir numa área que só pode ter retorno, concluímos que, na esperada ausência dessa coragem e ousadia, é mais sensato reforçar o já existente, nomeadamente:
— com redes temáticas nacionais ligadas às prioridades definidas pelo plano;
— em conjunto com a FCT, concretizando a prática rigorosa de avaliação externa de projectos e medidas;
— criando — com a FCT mas não só, também com a Fundação Calouste Gulbenkian, a Fundação
Oriente e outras que se queiram considerar parte deste desígnio nacional — financiamento de
bolsas de reintegração dos nosso mais aptos jovens (com menos de quarenta anos) investigadores
em áreas que se sabem serão da maior importância dentro de vinte anos.

Para concluir, não esqueçamos o poeta e o verso favorito, se não de todos os cientistas que o conhecem, pelo menos e seguramente meu favorito, e. e. cummings: «Tomorrow is our permanent address.» [Amanhã é a nossa morada permanente.]

Porto, 3 de Fevereiro de 2004

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