Novo post do psiquiatra Nuno Pereira:
Imagina-se uma má viagem de automóvel como
um percurso incómodo e às vezes sem rumo, o que pode ser atribuído à estrada, à
viatura ou ao condutor. Por exemplo, a trepidação pode dever-se a buracos na estrada,
a deficiente suspensão do carro ou a imperícia do condutor. De modo semelhante,
a depressão exprime uma vida penosa e vazia de sentido, em que se está abatido,
sem forças, negativo e com os ritmos alterados. Trata-se duma perturbação do
humor, comum e de gravidade variável, resultante de fatores interdependentes –
circunstanciais, biológicos e psicológicos.
Tal como a má viagem pode acarretar danos, os
sintomas depressivos, se atingirem intensidade suficiente, provocam mal-estar significativo
ou deficiência do funcionamento social, ocupacional ou noutras áreas
importantes, o que torna a depressão não tratada a mais longa incapacidade e
uma das principais causas de anos perdidos por incapacidade e mortes
prematuras.
A má viagem pode dever-se a irregulares
condições externas (da estrada e também do tráfego), mas, apesar disso, é
possível fazer-se uma viagem aceitável com um bom veículo e um condutor
experiente. De facto, passando pela mesma situação, uns fazem má viagem e
outros uma tolerável. Ora, os sintomas depressivos podem estar relacionados com
agentes circunstanciais, como fatores de stress (acontecimentos agudos ou
dificuldades crónicas), substâncias psicoativas (álcool ou outras drogas de
abuso, tóxicos e alguns medicamentos) e condições médicas (neurológicas,
endócrinas, metabólicas e outras). No entanto, a depressão pode ocorrer sem
nenhuma aparente razão, em circunstâncias de vida ideais. Assim, há depressão
secundária a fatores circunstanciais e depressão primária sem causa aparente ou
com fatores precipitantes na presença de predisposições físicas ou psíquicas.
As deficientes condições do veículo podem
ocasionar uma má viagem. Com efeito, para um automóvel com a suspensão danificada
todas as estradas são ruins. Ora, têm-se vindo a acumular as provas das bases
biológicas da depressão, que mostram que ela é uma doença do cérebro com
expressão anatómica, plástica, química, endócrina e genética. Atente-se, porém,
que o cérebro, ao contrário duma máquina, constitui um organismo vivo e
plástico em íntima ligação com o corpo, através de duas vias principais: uma
nervosa e outra sanguínea.
A má viagem pode também dever-se a erros do
condutor. Ora, uma pessoa pode tornar-se depressiva como resultado de fatores
psicológicos – cognitivos, afetivos e conativos – a trilogia da mente, sistema
de controlo plástico do cérebro. A mente, a que já chamaram “o fantasma da
máquina”, não é mais do que a expressão da atividade cerebral. Assim, a
depressão pode ter origem numa perturbação do estado da mente, isto é, no modo
disfuncional como pensamos, sentimos ou agimos, em contexto social.
Para resolver os problemas ligados ao
desequilíbrio do sistema estrada-veículo-condutor, torna-se necessário operar a
melhoria das condições externas, a reparação do veículo e/ou a formação do
condutor. Por outras palavras, agir sobre a estrada (e o tráfego), enviar o
veículo para uma oficina e/ou o condutor para uma escola. Felizmente, a depressão
trata-se com recurso a:
1 – Intervenção nos factores externos (psicossociais, tóxicos ou médicos) se presentes;
2 – Terapias físicas (medicamentosas ou estimuladoras cerebrais) mais nos casos moderados e graves;
3 – Terapias psicológicas (cognitivo-comportamental, interpessoal e outras) mais nos casos ligeiros e moderados.
Nuno Pereira
(psiquiatra)
1 comentário:
A lucidez pode ser deprimente por ser igual à realidade. Antídoto? A loucura do riso, o bálsamo do relativismo, a dormência do desapego ou a obediência da aceitação. Não é preciso medicação. Basta escolher o filósofo.
Conduzir de máscara, acariciar de luvas, seguir caminhos desviantes para evitar os buracos da estrada e os mortos faz trepidar qualquer viatura, mesmo a mais cómoda. Patológico é escolher a permanente suspensão da negação ou não encher os pneus...
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