Outra parte da longa entrevista que dei a Inês Navalhas (IN), que está a preparar uma tese sobre a comunicação de ciência através dos livros:
IN:
Como autor e professor, gostaria de saber como é que surgiu o seu interesse
pela ciência e em particular pela sua área especifica. Lembra-se?
CF:
O meu primeiro livro saiu em 1991 na Gradiva, embora não na coleção Ciência
Aberta. Foi numa colecção que já não existe intitulada Aprender, Fazer
Ciência. Era uma colecção de índole experimental, bastante dirigida aos
jovens. O livro – intitulado Física Divertida - teve um êxito muito
grande, inesperado para mim. Vendeu bastante bem nas suas várias edições. Actualmente
está na 8.ª edição, julgo. E teve edições no estrangeiro, uma brasileira, outra
espanhola, outra italiana… Teve bom acolhimento no mundo latino, portanto. Calculo que
deve ter vendido, em Portugal, isto nas suas várias edições, cerca de 20.000
exemplares, o que é notável. Nos anos 90 as edições eram muito maiores do que são
hoje. Hoje é muito difícil de conseguir fazer isso.
Esse livro não veio do nada. Surgiu de um conjunto de
palestras que fiz em escolas nos anos 80. Foi uma actividade em que me empenhei
quando regressei do doutoramento na Alemanha no Natal de 1982. Demorou um pouco
a adaptação, o regresso ao lar, mas na segunda metade dos anos 80 realizei
numerosas sessões de divulgação científica, a maior parte delas a pedido de
escolas. As histórias que eu conto na Física Divertida têm por base as “experiências
orais” que realizei com jovens entre os 13 e os 17 anos. Era esse, na altura, o
público-alvo da colecção Aprender, Fazer Ciência. O livro tinha desenhos
do José Bandeira, hoje cartoonista no Diário de Notícias que eu conheci
na época porque dois dos capítulos foram pré-impressos numa revista que havia de ficção
científica intitulada Omnia. O editor era João Paulo Cotrim que hoje tem
as editoras Abysmo e Arranha-Céus, onde publiquei a minha História da
Ciência em Portugal. Na revista saíram os desenhos a cores, muito
engraçados. Portanto, o meu primeiro livro parte de uma experiência de falar
para o público escolar, de uma experiência de publicação em revistas e jornais.
Eu tinha 35 anos, já colaborava com a Gradiva sendo, pelo que é natural que o
livro saísse nessa editora.
Eu conhecia a editora através da colecção Ciência Aberta
e já tinha uma relação com ela. Comecei por fazer para a Gradiva traduções bem antes
de publicar esse livro. Conheci o editor Guilherme Valente pouco depois de vir
da Alemanha, portanto, nos anos 83/84. A editora é um pouco anterior, de 1980. O primeiro
livro que traduzi para a Ciência Aberta foi do alemão. Eu tinha vindo
da Alemanha e escrevi uma carta ao editor onde lhe propunha um livro de Manfred Eigen, um
Prémio Nobel da Química que, entretanto, já faleceu e que eu vim mais tarde a
conhecer pessoalmente. O livro, intitulado O Jogo, é o número 28 da
colecção. É coautora uma colaboradora de Eigen, Ruthild Winkler. Eigen, quando veio mais
tarde a Portugal a um congresso de Química, entrou em contacto comigo. Foi
muito curioso o encontro, dei-lhe o livro assinado em português e ele retorquiu com um CD com
música de piano tocado por ele, porque ele era um pianista amador mas com discos gravados. Era um Nobel com grande cultura artística. O número 28 seguiu-se, curiosamente, a um
dos maiores êxitos de sempre da colecção, que é o 27, Breve História do Tempo,
de Stephen Hawking. A minha participação na Gradiva começa aí, a colecção ia nas
duas dezenas e já devia ter uns cinco ou seis anos.
A sua criação e desenvolvimento são
mérito do editor, que foi muito clarividente numa época em que a cultura
cientifica em Portugal reduzida. Ele teve esta visão de lançar autores muito
bons de cultura científica. O número 2 é um livro de Hubert Reeves, o número 5
é o Cosmos, de Carl Sagan, que teve enorme impacto, quer o 2 quer o 5
foram livros que lançaram a colecção, porque venderam bastante. Aliás Cosmos
ainda hoje vende. Não esqueçamos que, quando eu estava na Alemanha foi a época
da série Cosmos, que surgiu na televisão em 1980. A edição portuguesa
não demorou muito tempo, embora não tenha sido de início a edição ilustrada.
O
primeiro autor português que apareceu na colecção foi o Jorge Dias de Deus, com o número
11. Depois apareceu o Stephen Jay Gould, no
número 12, e voltou o Hubert Reeves, com o número 13. Um livro que me marcou
muito como leitor foi o número 14, de Ilya Prigogine, outro Prémio Nobel da
Química, intitulado A Nova Aliança, em co-autoria com a sua colaboradora
Isabelle Stengers. Aliás, o meu primeiro artigo na imprensa nacional - já
tinha escrito nos tempos do liceu na imprensa regional - foi no jornal Expresso,
a convite do jornalista José Vitor Malheiros e foi precisamente uma recensão deste
livro que saiu no Expresso Revista. Ainda me lembro muito bem porque
uma pessoa lembra-se sempre bem da primeira vez… E entrei logo pelo jornal de
maior audiência que era, como hoje continua a ser, o Expresso. A equipa
que fazia o Expresso Revista foi a mesma que mais tarde fundou o Público,
mais ou menos na altura em que saiu o meu primeiro livro. Essa equipa
convidou-me a mim, que já tinha outros textos de recensão no Expresso, a
ser colaborador regular do Público, o que aceitei, começando a fazer
recensões de muitos livros precisamente da Gradiva e de outras, não muitas, que
lhe faziam concorrência na divulgação científica. Havia outras colecções de
ciência na época, na Europa-América, nas Edições 70, na Presença, etc. e eu
escrevia sobre ciência, em particular livros e actualidades da
ciência. O Público tinha no início um suplemento semanal chamado Hoje
e Amanhã, que era um magazine de ciência e tecnologia, e tinha também um
suplemento literário, Leituras, igualmente semanal. Praticamente não
havia semana nenhuma, nos primeiros tempos do Público, em que não
escrevesse. Depois o jornal diminuiu de tamanho, era um grande investimento. Conservo
ainda no meu computador os textos que escrevi, apesar de a informática ter
evoluído muito.
Escrevi ao editor Guilherme Valente sugerindo vários livros, entre os quais O
Jogo de Eigen e Winkler e o Guilherme disse-me imediatamente que traduzisse.
Ainda me lembro que ganhei um dinheirito com a tradução, não tenho a certeza, mas acho que foram
200 contos. Foi assim que entrei na área editorial, na Gradiva como conselheiro
e tradutor e nos jornais nacionais, o Expresso e o Público, como
recenseador e comentador na área da ciência. O primeiro autor português da
colecção Ciência Aberta foi, como já disse, Jorge Dias de Deus, professor do Instituto
Superior Técnico; depois seguiu-se um antigo professor meu, o químico Sebastião
Formosinho, da Universidade de Coimbra, infelizmente já faleceido, que escreveu
o número 22. A seguir a O Jogo traduzi um livro do inglês e outro do
francês. Do inglês traduzi uma obra que é o número 35, O que é uma Lei
Física, de Richard Feynman, e depois traduzi do francês, com um
colaborador (José Luís Malaquias), uma obra de Benoît Mandelbrot, que é o número
59, Objetos Fractais. Esse livro obteve uma menção honrosa num concurso nacional
de tradução científica. Entrei durante a tradução em contacto com o autor. E foi algo muito interessante. Mandelbrot que também já morreu, tinha
fama de ser um cientista arrogante. Mas não era nada, pelo menos do meu ponto de vista! Mandei-lhe algumas emendas ao livro e ele
agradeceu muito. Uma nova edição em França teve um novo prefácio e logo nas
primeiras linhas o autor começava por me agradecer. Foi muito simpático! Com
essa obra fechei as minhas traduções para a Gradiva, que como disse foram do alemão,
do inglês e do francês, tendo passado a fazer apenas revisões
científicas.
A partir daí também escrevi os meus próprios livros. O meu segundo livro na Gradiva saiu na colecção Ciência
Aberta. De algum modo resulta do êxito que tinha tido a Física
Divertida, que apareceu nos tops de vendas dos livros. Havia na
época uma cientista bastante popular que era escritora de ficção, a Clara Pinto Correia, autora
de Adeus Princesa, que também estava nos tops. Na não ficção
estava a Física Divertida e na ficção estava o romance da Clara Pinto Correia, que na altura era uma promissora escritora. O meu
segundo livro já não teve o mesmo êxito do primeiro. O que se percebe... Eu tinha
simplesmente pegado nalguns textos que tinha de conferências, juntei-os e
revi-os. Os livros que são conjunto de texto avulsos, sei-o hoje como coeditor,
não têm sucesso. O livro chama-se Computadores, Universo e Tudo o Resto
inspirado o livro de ficção científica de Douglas Adam. O título desse número
64 da Ciência Aberta era talvez demasiado grande. O livro, que é
fininho, vendeu pouco, ainda haverá exemplares em armazém. Foi o meu primeiro
livro na colecção Ciência Aberta (fui o terceiro autor português depois
do Dias de Deus e do Formosinho Simões), mas não teve êxito comercial. Para além do tamanho
(os livros pequenos não vendem muito) era uma colecção de ensaios dirigidos a
um público culturalmente mais evoluído. Tinha feito algumas conferências
convidadas, entretanto, sobre isto e sobre aquilo… Os livros para um público
juvenil têm em princípio maior potencial de vendas. Publiquei depois outros livros
na Ciência Aberta, Esses estão esgotados, mas também as edições foram mais
pequenas.
IN:
A seguir foi A Coisa mais Preciosa que Temos, que é o número 120,
não foi?
CF:
Sim e o Curiosidade Apaixonada, os dois esgotaram. Foram livros que venderam bem. A Coisa mais Preciosa saiu no ano 2005, o ano em que
comemorámos os cem anos dos trabalhos seminais de Einstein com a celebração do
Ano Mundial da Física. Depois publiquei
um outro livro na mesma colecção Aprender, Fazer Ciência, que foi uma
sequela do primeiro, embora tendo saído muito mais tarde, cerca de dez anos: Nova
Física Divertida. Também vendeu bastante bem, em várias edições.
Só para terminar esta parte histórica sobre a Gradiva: quero
repetir que o grande mérito é, de facto, do editor Guilherme Valente, que
conseguiu reunir um conjunto de nomes da ciência internacional que são singulares,
aos quais juntou nomes nacionais. Eu acho que é muito difícil encontrar
coleções desta índole… e existem várias no mundo, que sejam tão antigas e que
tenham tal qualidade de edição. O nome Ciência Aberta vem do francês: as
Éditions du Seuil, têm a Science Ouverte, criada em 1966b e dirigida desde
1972 pelo físico Jean-Marc Lévy-Leblond Mas com esta qualidade, com esta
intensidade, com esta persistência, acho que é um caso único no mundo. Hoje sou
responsável da colecção e tenho muito orgulho nisso: quando começo a dizer a
alguém de fora quem são os autores da colecção e que ela tem 40 anos, os meus
interlocutores ficam completamente admiradas e seduzidas. Às vezes até nem
acreditam que há uma editora que consegue reunir toda esta gente… Devíamos
estar gratos ao editor que,
tenho dito isto várias vezes, fez cultura científica em Portugal, ao lançar
uma colecção de livros de cultura científica em Portugal que deixou lastro. Com
certeza havia antecedentes, alguns muito primitivos, nos anos 40 de Bento Jesus
Caraça, a colecção Cosmos, que é também uma iniciativa muito
interessante e com grande êxito na época. Mas. nos anos 80/90 do século passado
e continuando até aos tempos, a colecção Ciência Aberta marca a cultura científica
em Portugal.
Há muita gente hoje que se diz descendente dessa colecção, que leu
esses livros e dele ficou devedora! Para dar um exemplo muito recente, tive a
visita há dias de um técnico de informática, formado em Matemática, que veio
instalar um supercomputador à universidade, que pediu para falar comigo porque
tinha lido algumas traduções e obras minhas, como os Objectos Fractais.
Ora ele era muito jovem na altura, tinha 14 ou 15 anos. Mas confirmou-me coisas
incríveis de que eu me lembrava: a novidade e o entusiasmo que
estes livros transmitiam na época. Eram lidos por professores, numa época em que os
professores gastavam mais dinheiro em livros do que gastam hoje, até porque dispunham de mais meios para isso. E eram lidos por alunos. Os alunos também liam mais do
que hoje. Na universidade, os alunos liam este tipo de livros. Infelizmente
esses hábitos de leitura perderam-se um pouco. Portanto, não tenho dúvidas
nenhumas em dizer que esta colecção teve impacto na cultura científica
portuguesa.
Eu, o Jorge Buescu, o Nuno Crato e outros autores
portugueses, dávamos sugestões. O Guilherme soube-se rodear de pessoas
que tinham interesse na cultura científica. Na altura éramos muito mais jovens
do que somos todos hoje. Hoje já estamos nos 50 e 60 e estou a falar de há 30
anos, quando tínhamos 30 ou 40 anos. Dávamos sugestões e o editor procurava
imediatamente pôr essas sugestões em prática, embora nem sempre estivesse
presente fisicamente, porque esteve boa parte da vida em Macau. Na altura
escreviam-se cartas, não havia e-mail…
Havia uma coeditora, Maria do Rosário Pedreira, que hoje é uma grande editora
num grande grupo editorial e também escritora, mas que começou na Gradiva e eu
contactei muito por cartas e pessoalmente em Lisboa. Ainda guardo as cópias das
cartas que recebia. Era a maneira de comunicar na altura, pois não havia as
comunicações electrónicas que há hoje. Era um tempo muito diferente.
O mérito do Guilherme foi também de se saber rodear
de um conjunto de pessoas que estavam atentas ao que aparecia lá fora e que lhe
davam sugestões. Ele imediatamente respondia, sempre com grande atenção e
amabilidade. Foi essa rede de contactos permitiu erguer e manter a colecção. Também merece
ser referido um outro nome que não é da área das ciências: Onésimo Teotónio de
Almeida, um professor e escritor português que vive nos Estados Unidos há muitos
anos, que era também amigo do Guilherme e que também lhe mandava informações: “Saiu
agora um livro muito interessante sobre isto, saiu um outro sobre aquilo…” O
Onésimo ensina na Universidade de Brown, na área da filosofia e da cultura
portuguesa. Alguns dos títulos da Ciência Aberta têm a marca, de pessoas
da comunidade portuguesa lá fora. Portanto, o editor tinha uma rede em Portugal
e lá fora. E era uma rede muito eficaz, se olharmos para o conjunto de autores
e títulos reunidos. Enfim, eu continuei sempre a dar sugestões, mas tive outro
tipo de colaborações, por exemplo o número 129, que é um livro intitulado Fronteiras
da Ciência, em que apareço como como editor. Foi uma conferência que se fez para
assinalar o aniversário da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade
de Coimbra, onde trabalho. Convidámos alguns autores estrangeiros e portugueses,
autores de renome e o livro é uma espécie de actas desse encontro em Coimbra. Nesse
encontro esteve o Mandelbrot e outros autores da coleção. Tenho uma fotografia
em que apareço eu, o Jorge Dias de Deus, o João Queiró, o Benoît Mandelbrot, o
João Caraça, da Fundação Gulbenkian. O número 128 foi um livro do Einstein, O
Significado da Relatividade, O 127 um livro do João Magueijo, um cientista
português que estava e está no Reino Unido, que vendeu bastante bem, Mais
rápido que a luz.
A Gradiva publicou livros de cientistas portugueses dentro e
fora do país, embora esses livros de inicio fossem pouco numerosos. Há um outro
professor que dava sugestões e que depois foi autor, que é António Manuel Baptista,
um físico e uma personagem que teve muita importância na cultura científica audiovisual,
na rádio e na televisão, antes de aparecer a Gradiva. Lembro-me dos seus
programas dos meus tempos de jovem do liceu… Só há três autores portugueses até
ao número 64, o meu Universo, Computadores e Tudo o Resto, o que significa
que eram uma minoria e assim continuou até porque a ciência estava em
desenvolvimento. É preciso integrar tudo na época… Foi só em 1995 só que surgiu
o Ministério da Ciência e Tecnologia com o José Mariano Gago à frente, ele
tinha estado na Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica - JNICT
e tinha organizado em 1987 umas Jornadas
Nacionais de Investigação Científica e Tecnológica e sempre teve atenção à cultura científica,
que ele apoiou… Também deu sugestões ao editor, porque era amigo do Guilherme
Valente, que publicou em 1990 o seu Manifesto pela Ciência em Portugal.”
Esta colecção mais tarde ganhou o Grande Prémio Ciência Viva: o primeiro
premiado do Ciência Viva é precisamente o Guilherme Valente, como editor da Ciência
Aberta.
Portanto a colecção teve desde o início não só um pai, mas também
vários padrinhos, vários amigos da ciência, juntaram-se para fazer crescer e encaminhar
a “criança”. O primeiro livro do Nuno Crato, acho que vendeu bem, é o número 166,
Passeio Aleatório, mas antes dele houve outros portugueses. Luís Bigotte
de Almeida, neurologista, Teresa Lago, astrónoma que preparo uma coleção de
textos sobre o Universo, Joaquim Marques de Sá e Maria Paula Oliveira, matemáticos,
o próprio António Manuel Baptista como autor e não apenas conselheiro editorial
e tradutor, Jorge Buescu, que haveria de publicar vários livros de crónicas
matemáticas (sendo o autor português até agora com mais títulos na Ciência
Aberta). A partir do número 100, a presença de autores portugueses
intensificou-se… Por exemplo, Margarida Telo da Gama, física, foi editora de
uma colectânea de textos. Foi um tempo em que a ciência portuguesa crescia a
olhos vistos com a visão de José Mariano Gago, com o aumento dos institutos de
investigação, dos centros de ciência Ciência Viva, etc. Portanto a partir do número
100 vamos ver uma participação nacional mais forte, reflectindo o incremento da
ciência em Portugal. Mesmo depois, quando o Mariano Gago saiu do governo, o
Presidente da Fundação para a Ciência e Tecnologia - FCT, Fernando Ramoa
Ribeiro, que era professor de Química no Instituto Superior Técnico, organizou umas
conferências intituladas Despertar para a Ciência, que deram lugar a vários
volumes na Ciência Aberta. Eram conferências públicas com muitos nomes
portugueses, tendo os textos ficado na colecção para a posteridade. Eu escrevi
um precisamente com o mesmo título Despertar para a Ciência, sobre a
iniciação na ciência dos mais novos Se formos ver os nomes das pessoas que derem palestras no Despertar
para a ciência , verificamos que é uma espécie de who’who da ciência
em Portugal. Tinha-se estabelecido uma comunidade de pessoas interessadas e
activas na divulgação de ciência.
Não há dúvida nenhuma de que o Guilherme Valente foi o “pai” da
colecção, mas eu, quando adquiri consciência da relevância da colecção, passei
a colaborar de perto. Conto até uma pequena história, que revela a afectividade
com que a colaboração se iniciou e depois continuou. Eu quando propus o livro
que referi, O Jogo, fi-lo por meio de uma carta ao editor. Escrevi-lhe
num tom muito formal - “Ex.mo. Sr. Dr.”,
etc. - pois não o conhecia de lado nenhum e, para lhe mostrar que sabia muita
coisa, para além de lhe elogiar os livros publicados, também o criticava em
pequenos aspectos: “olhe que está uma falha ali naquela tradução, a palavra cientificamente
correcta não é aquela…” Portanto, armava-me em “bom”, como convinha a um professor
de 30 anos que se quer afirmar… O Guilherme, e eu nunca mais me esqueço da
atitude dele, podia ter-me respondido por carta, podia ter esperado, mas não. Descobriu
o meu número de telefone, era uma altura em que havia listas telefónicas, e ligou-me
para casa. “Queria falar consigo…”. A resposta inicial dele foi bastante
calorosa e a nossa conversa durou mais de uma hora. Entendemo-nos logo bem ao telefone, tão bem que combinámos encontrar-nos pessoalmente. Disse-me “Olhe,
eu sou de Leiria, tenho lá uma casa de família, temos que nos conhecer
pessoalmente, eu vou muitas vezes a Leiria, você está em Coimbra e talvez possa
ir lá…”, Combinámos para breve um encontro, que teve lugar na praça principal
de Leiria. E a partir daí a nossa amizade perdurou porque basicamente partilhamos
o mesmo interesse pela cultura científica e pela cultura em geral. O Guilherme
é um homem com uma cultura extraordinária e com uma visão muito arguta. É muito
atento ao mundo, ao que os outros dizem, mas pensa como poucos pela sua própria cabeça. E essa
é uma grande qualidade num editor. Um editor tem que saber ler o mundo, saber
interagir com as pessoas, saber, como é o caso comigo, acarinhar os escritores,
os colaboradores, mas tem de decidir o que publicar. Sou-lhe muito devedor. Alguns
livros meus, como disse, foram traduzidos lá fora, num esforço que ele empreendeu
de promoção de autores nacionais no estrangeiro. A Gradiva tem um grande prestígio
lá fora… O Guilherme ia e ainda vai à Feira do Livro de Frankfurt. Eu fui um
dia com ele, uma oportunidade que apreciei pois pude assim regressar à cidade
onde fiz o doutoramento. E, enfim, a Feira do Livro é um evento extraordinário,
é simplesmente a maior feira do livro do mundo. Andámos a ver livros juntos…
É natural, por isso, que ele, a certa altura, a partir do número
200, me tenha perguntado se eu não queria tomar conta da colecção. Eu já estava
próximo dela, já conhecia o que se editava, já tinha dado muitas sugestões, mas
ele passou a partir dessa altura a confiar mais em mim, a dizer “Agora escolhes
tu!”, com certeza dentro das disponibilidades e constrangimentos da editora,
que é pequena e independente. Ele dizia: “Não podemos publicar todos os livros
bons, mas todos os livros que nós publicamos têm de ser bons”. Não me pôs
pressão nenhuma, confiando absolutamente nos meus critérios. Desde o número 200
já saíram 34 volumes. O número de livros publicados diminuiu, o que tem a ver
com o mercado, assim como diminuíram as tiragens das edições. Livros como o Cosmos,
do Sagan, ou Um Pouco Mais de Azul, do Reeves ou, com certeza, ou Breve
História do Tempo, do Hawking, venderam muitíssimo. O mesmo se passou com
autores de biologia, como o Richard Dawkins, autor de O Gene Egoísta,
que tem uma reedição recente (de facto, já tinha vendido bem, mas continua a
vender) e o Stephen Jay Gould. Há livros que têm caminho longo, são os long-sellers,
vendem desde há mais de 30 anos e continuam a sair. Há um público novo para O
Gene Egoísta que não conheceu o livro quando ele apareceu. O Richard
Feynman, que eu traduzi quando era mais novo, se não é deveria também ser um long-seller.
O número de livros publicados diminuiu e a tiragem de cada um deles também
diminuiu. Existem hoje graves problemas da edição em Portugal. Há um artigo
muito recente do Observador, que eu recomendo, sobre os números da
edição em Portugal, que não são famosos. São vários os problemas. Um é a
concorrência do digital. Não é bem apenas livros electrónicos, é a leitura
electrónica, qualquer que ela seja, incluindo a de livros pirateados. As pessoas
hoje olham para ecrãs, não olham para livros. Depois há a questão económica: tivemos
crise económica em 2011, um bocadinho atrasada pois no mundo foi em 2008, e as
pessoas passaram a ter menos dinheiro e deixaram de gastar tanto em
livros. Em Portugal a classe média, os professores, que são, digamos, classe
média, não gastam hoje tanto em livros como gastavam. E depois é preciso
reconhecer, e esse é um problema que interessa muito ao Guilherme Valente, ele
tem escrito sobre isso e eu acompanho-o em boa medida, que a nossa escola não
tem formado leitores em número suficiente. A escola forma pessoas que a, dada
altura, deixam de ler, os rapazes antes das raparigas. As raparigas, até porque
lêem mais, conseguem com mais facilidade entrar no ensino superior...
IN:
Houve algum programa de televisão, alguma colecção de livros, brinquedos
científicos de ciência e tecnologia que tenham influenciado o seu interesse
pela Física?
CF:
A minha infância ocorreu antes da chegada da televisão. Em 1969, tinha eu 13
anos, não havia televisão em casa. Fui ver não me lembro bem onde a chegada do
homem à lua. Havia televisão em poucos lares nessa época e era a preto e branco.
Portanto a televisão não foi para mim um meio importante... talvez mais a
rádio. Ouvia o António Manuel Baptista, eu lembro-me dos programas dele de
ciência. Não terão sido decisivo na escolha da vocação científica, mas
lembro-me de o ter ouvido a falar, ele tinha uma bela voz. Coisa curiosa: eu
estou neste momento a fazer um programa cultural na SIC intitulado Original
é a Cultura na companhia de uma escritora, Dulce Maria Cardoso, e de um
musicólogo, Rui Vieira Nery, e a pivô do programa, que trabalhou em várias
editoras, a Cristina Ovídio, é filha do António Manuel Baptista. Portanto,
estou a fazer um programa com a filha de um físico, que contribuiu muito,
principalmente no área do audiovisual, na rádio e na televisão, para a
divulgação da ciência.
Mas a minha principal influência não foi audiovisual, nunca
fui uma pessoa muito audiovisual. Foi antes através da leitura, através dos
livros. Não que em minha casa houvesse muitos livros. Com o dinheiro dos
primeiros prémios escolares que recebi, concursos de arte, etc., comecei a
comprar livros e escolhia livros não necessariamente de ciência, pois me
interessava bastante também por arte nessa época. Comecei a fazer a minha
própria colecção de livros e hoje tenho uma biblioteca imensa. Tornei-me um
leitor omnívoro, oferecem-me muitos livros, mas ainda hoje gasto muito dinheiro
em livros. Ao contrário do cidadão comum que deixou de comprar livros, eu cada
vez compro mais, para equilibrar… (risos). Eu criei de raiz uma biblioteca de
cultura científica a que dei o nome de “Rómulo”, à qual estou a dar muitos dos
livros que recebo ou que compro. A minha principal influência para entrar no
mundo da ciência veio dos livros. Como disse, o primeiro dinheiro que ganhei
foi para livros, depois comecei a ganhar dinheiro como monitor na Universidade de
Coimbra e depois como bolseiro, na Alemanha, e comprava muitos livros. Fazia
actividades para além de investigação científica: traduções, dava aulas de
português, era intérprete, várias coisas... Sempre fui de gastar em livros. É
muito simples: eu ganho dinheiro a fazer livros e gasto-o depois a comprar livros.
Já agora, um aparte: sou autor de cerca de 60 livros, não
estou a falar de prefácios nem capítulos nem secções nem edições. Estou a falar
de livros escritos por mim sozinho ou em coautoria. Pode-se perguntar como é
que se atinge esse número de 60 livros. Bem, não foi apenas na Gradiva, tenho,
por exemplo, cerca de uma dezena de livros infantis numa colecção intitulada Ciência
a Brincar, na Bizâncio, já falei da História da Ciência em Portugal
na Arranha-Céus, tenho livros na Imprensa da Universidade de Coimbra, na Fundação
Calouste Gulbenkian (estes mais académicos), na Fundação Francisco Manuel dos
Santos, instituição com a qual tenho colaborado. Mas cerca de metade dos meus
livros, 30, não são de divulgação de ciência, são livros pedagógicos para os
ensinos básico e secundário, são livros escolares. Há toda uma geração que
beneficiou de livros que ajudei a fazer de Física e Química, livros que estão aliás
no mercado. Uma parte do mercado de livros escolares de ciências é de uma
equipa em que integro, na Texto Editores, no grupo Leya. De resto, é impossível
fazer algo nessa área sozinho. O livro não são é só o texto, são as figuras, o design,
os materiais complementares para professores e alunos, muitos deles
audiovisuais. Os direitos de autor que recebo desses livros são gastos em parte a alargar a minha biblioteca.
O meu interesse pela leitura, nos anos do liceu, não tendo
muitos livros em casa, proveio da frequência de bibliotecas. Li muitos livros da
Biblioteca Municipal de Coimbra. A área que comecei a ler nessa altura era
precisamente a área que a Gradiva depois veio ocupar, a da divulgação científica.
Embora não existisse a mesma variedade e qualidade que hoje há, havia alguns,
incluindo de autores portugueses. Eu chamei Rómulo ao centro que fundei
porque alguns dos livros que li na época eram livros de Rómulo de Carvalho, que
foi um grande professor de Físico-Química e também um grande poeta e prosador sob
o nome de António Gedeão. E, além disso, um historiador da ciência, um pedagogo,
um divulgador. Enfim, era um homem dos sete instrumentos, um professor e uma
pessoa que admiro muito. Conheci-o pessoalmente. Se me é permitido, considero-me
devedor da herança que ele deixou. Mas a dívida não é apenas dos livros dele. Lembro-me
de ler várias biografias de Einstein, publicadas por várias editoras, e textos
de introdução à teoria da relatividade. Havia pequenos livros de bolso, por
exemplo de Bertrand Russell o ABC da Relatividade, e eu aprendi a teoria
da relatividade e a teoria quântica por minha própria conta, isto porque a
física moderna praticamente não se dava no liceu (tirando um bocadinho que se
dava na Química). Infelizmente hoje ainda quase não se dá no ensino secundário…
Poderia ter um espaço maior. A mim interessava-me a ciência em construção, a
aventura da ciência, não tanto a ciência antiga do Arquimedes e do Galileu, que
e reconheço que são coisas necessárias e úteis, mas a ciência moderna, a
ciência mais perto da actualidade. Fui muito influenciado pelos livros de
divulgação de ciência moderna que pude ler, naquela altura em que se lê mais,
entre os 12 e os 20 anos, quando tinha grande avidez da leitura e muito tempo
para ler. Lembro-me do tempo em que as férias de Verão eram muito grandes: uma
pessoa tinha aqueles três ou quatro meses no Verão para leituras prolongadas.
Mais tarde fui fazer o doutoramento para a Alemanha com uma bolsa da Fundação Gulbenkian
e, durante o doutoramento de três anos e meio também tive muito tempo. Não podia
estar só a fazer o trabalho de investigação. Na biblioteca universitária de
Frankfurt am Main havia livros sobre todos os assuntos: muitos livros em
português, incluindo ficção. Lembro-me de ler não só em português europeu mas também
em português do Brasil, até porque eu dava aulas de línguas e literatura
portuguesa, para estrangeiros e para filhos de emigrantes. Li lá quase todo o
Eça de Queirós, li lá os primeiros livros de um autor então desconhecido, mas hoje
famosíssimo, o António Lobo Antunes, que apareceu numa editora que não era mainstream,
li o Memorial do Convento do José Saramago, quando a fama dele começava
a despontar. Lembro que a Memória de Elefante é de 1979 e o Memorial
do Convento de 1982. Tinha tempo para ler e lia. No tempo de formação quer
na escola secundária, quer na Universidade de Coimbra, quer depois na
Universidade Goethe em Frankfurt tinha mais tempo para ler do que tenho hoje. Hoje
acumulo livros, com a esperança de os vir a ler um dia. Gostava de me reformar
para ler alguns dos livros que tenho, pois hoje tenho pouco tempo. Tenho que
ver exames, os alunos querem as notas... (risos)
1 comentário:
O que aqui vai de informação, Carlos. Se isso não fica registado, perde-se.
Foram anos de uma actividade extraordinária da Gradiva, que teve um papel importantíssimo na divulgação científica em Portugal.
Sim, enviei vários livros daqui que o Guilherme Valente mandou traduzir e editou. Estou a lembrar-me de "Está a brincar, Sr. Feynman!"; "O Código Cósmico", de Heinz Pagels; de Carlo Cipolla, "Canhões e Velas na Primeira Fase da Expansão Europeia"; de David Landes, "A Riqueza e a Pobreza das Nações", e vários outros.
Muito obrigado pela referência.
Um abraço. E continua com essa genica imparável.
Onésimo
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