quarta-feira, 8 de abril de 2020

MINHA ENTREVISTA SOBRE A COLECÇÃO CIÊNCIA ABERTA


Outra parte da longa entrevista que dei a Inês Navalhas (IN), que está a preparar uma tese sobre a comunicação de ciência através dos livros:

IN: Como autor e professor, gostaria de saber como é que surgiu o seu interesse pela ciência e em particular pela sua área especifica. Lembra-se?

CF: O meu primeiro livro saiu em 1991 na Gradiva, embora não na coleção Ciência Aberta. Foi numa colecção que já não existe intitulada Aprender, Fazer Ciência. Era uma colecção de índole experimental, bastante dirigida aos jovens. O livro – intitulado Física Divertida - teve um êxito muito grande, inesperado para mim. Vendeu bastante bem nas suas várias edições. Actualmente está na 8.ª edição, julgo. E teve edições no estrangeiro, uma brasileira, outra espanhola, outra italiana… Teve bom acolhimento no mundo latino, portanto. Calculo que deve ter vendido, em Portugal, isto nas suas várias edições, cerca de 20.000 exemplares, o que é notável. Nos anos 90 as edições eram muito maiores do que são hoje. Hoje é muito difícil de conseguir fazer isso.

Esse livro não veio do nada. Surgiu de um conjunto de palestras que fiz em escolas nos anos 80. Foi uma actividade em que me empenhei quando regressei do doutoramento na Alemanha no Natal de 1982. Demorou um pouco a adaptação, o regresso ao lar, mas na segunda metade dos anos 80 realizei numerosas sessões de divulgação científica, a maior parte delas a pedido de escolas. As histórias que eu conto na Física Divertida têm por base as “experiências orais” que realizei com jovens entre os 13 e os 17 anos. Era esse, na altura, o público-alvo da colecção Aprender, Fazer Ciência. O livro tinha desenhos do José Bandeira, hoje cartoonista no Diário de Notícias que eu conheci na época porque dois dos capítulos foram pré-impressos numa revista que havia de ficção científica intitulada Omnia. O editor era João Paulo Cotrim que hoje tem as editoras Abysmo e Arranha-Céus, onde publiquei a minha História da Ciência em Portugal. Na revista saíram os desenhos a cores, muito engraçados. Portanto, o meu primeiro livro parte de uma experiência de falar para o público escolar, de uma experiência de publicação em revistas e jornais. Eu tinha 35 anos, já colaborava com a Gradiva sendo, pelo que é natural que o livro saísse nessa editora.

Eu conhecia a editora através da colecção Ciência Aberta e já tinha uma relação com ela. Comecei por fazer para a Gradiva traduções bem antes de publicar esse livro. Conheci o editor Guilherme Valente pouco depois de vir da Alemanha, portanto, nos anos 83/84. A editora é um pouco anterior, de 1980. O primeiro livro que traduzi para a Ciência Aberta foi do alemão. Eu tinha vindo da Alemanha e escrevi uma carta ao editor onde lhe propunha um livro de Manfred Eigen, um Prémio Nobel da Química que, entretanto, já faleceu e que eu vim mais tarde a conhecer pessoalmente. O livro, intitulado O Jogo, é o número 28 da colecção. É coautora uma colaboradora de Eigen, Ruthild Winkler. Eigen, quando veio mais tarde a Portugal a um congresso de Química, entrou em contacto comigo. Foi muito curioso o encontro, dei-lhe o livro assinado em português e ele retorquiu com um CD com música de piano tocado por ele, porque ele era um pianista amador mas com discos gravados. Era um Nobel com grande cultura artística. O número 28 seguiu-se, curiosamente, a um dos maiores êxitos de sempre da colecção, que é o 27, Breve História do Tempo, de Stephen Hawking. A minha participação na Gradiva começa aí, a colecção ia nas duas dezenas e já devia ter uns cinco ou seis anos. 

A sua criação e desenvolvimento são mérito do editor, que foi muito clarividente numa época em que a cultura cientifica em Portugal reduzida. Ele teve esta visão de lançar autores muito bons de cultura científica. O número 2 é um livro de Hubert Reeves, o número 5 é o Cosmos, de Carl Sagan, que teve enorme impacto, quer o 2 quer o 5 foram livros que lançaram a colecção, porque venderam bastante. Aliás  Cosmos ainda hoje vende. Não esqueçamos que, quando eu estava na Alemanha foi a época da série Cosmos, que surgiu na televisão em 1980. A edição portuguesa não demorou muito tempo, embora não tenha sido de início a edição ilustrada. 

O primeiro autor português que apareceu na colecção foi o Jorge Dias de Deus, com o número 11.  Depois apareceu o Stephen Jay Gould, no número 12, e voltou o Hubert Reeves, com o número 13. Um livro que me marcou muito como leitor foi o número 14, de Ilya Prigogine, outro Prémio Nobel da Química, intitulado A Nova Aliança, em co-autoria com a sua colaboradora Isabelle Stengers. Aliás, o meu primeiro artigo na imprensa nacional -  já tinha escrito nos tempos do liceu na imprensa regional -  foi no jornal Expresso, a convite do jornalista José Vitor Malheiros e foi precisamente uma recensão deste livro que saiu no Expresso Revista. Ainda me lembro muito bem porque uma pessoa lembra-se sempre bem da primeira vez… E entrei logo pelo jornal de maior audiência que era, como hoje continua a ser, o Expresso. A equipa que fazia o Expresso Revista foi a mesma que mais tarde fundou o Público, mais ou menos na altura em que saiu o meu primeiro livro. Essa equipa convidou-me a mim, que já tinha outros textos de recensão no Expresso, a ser colaborador regular do Público, o que aceitei, começando a fazer recensões de muitos livros precisamente da Gradiva e de outras, não muitas, que lhe faziam concorrência na divulgação científica. Havia outras colecções de ciência na época, na Europa-América, nas Edições 70, na Presença, etc. e eu escrevia sobre ciência, em particular livros e actualidades da ciência. O Público tinha no início um suplemento semanal chamado Hoje e Amanhã, que era um magazine de ciência e tecnologia, e tinha também um suplemento literário, Leituras, igualmente semanal. Praticamente não havia semana nenhuma, nos primeiros tempos do Público, em que não escrevesse. Depois o jornal diminuiu de tamanho, era um grande investimento. Conservo ainda no meu computador os textos que escrevi, apesar de a informática ter evoluído muito.

Escrevi ao editor Guilherme Valente sugerindo vários livros, entre os quais O Jogo de Eigen e Winkler e o Guilherme disse-me imediatamente que traduzisse. Ainda me lembro que ganhei um dinheirito com a tradução, não tenho a certeza, mas acho que foram 200 contos. Foi assim que entrei na área editorial, na Gradiva como conselheiro e tradutor e nos jornais nacionais, o Expresso e o Público, como recenseador e comentador na área da ciência. O primeiro autor português da colecção Ciência Aberta foi, como já disse, Jorge Dias de Deus, professor do Instituto Superior Técnico; depois seguiu-se um antigo professor meu, o químico Sebastião Formosinho, da Universidade de Coimbra, infelizmente já faleceido, que escreveu o número 22. A seguir a O Jogo traduzi um livro do inglês e outro do francês. Do inglês traduzi uma obra que é o número 35, O que é uma Lei Física, de Richard Feynman, e depois traduzi do francês, com um colaborador (José Luís Malaquias), uma obra de Benoît Mandelbrot, que é o número 59, Objetos Fractais. Esse livro obteve uma menção honrosa num concurso nacional de tradução científica. Entrei durante a tradução em contacto com o  autor. E foi algo muito interessante. Mandelbrot que também já morreu, tinha fama de ser um cientista arrogante. Mas não era nada, pelo menos do meu ponto de vista! Mandei-lhe algumas emendas ao livro e ele agradeceu muito. Uma nova edição em França teve um novo prefácio e logo nas primeiras linhas o autor começava por me agradecer. Foi muito simpático! Com essa obra fechei as minhas traduções para a Gradiva, que como disse foram do alemão, do inglês e do francês, tendo passado a fazer apenas revisões científicas. 

A partir daí também escrevi os meus próprios livros. O meu segundo livro na Gradiva saiu na colecção Ciência Aberta. De algum modo resulta do êxito que tinha tido a Física Divertida, que apareceu nos tops de vendas dos livros. Havia na época uma cientista bastante popular que era escritora de ficção, a Clara Pinto Correia, autora de Adeus Princesa, que também estava nos tops. Na não ficção estava a Física Divertida e na ficção estava o romance da Clara Pinto Correia,  que na altura era uma promissora escritora. O meu segundo livro já não teve o mesmo êxito do primeiro. O que se percebe... Eu tinha simplesmente pegado nalguns textos que tinha de conferências, juntei-os e revi-os. Os livros que são conjunto de texto avulsos, sei-o hoje como coeditor, não têm sucesso. O livro chama-se Computadores, Universo e Tudo o Resto inspirado o livro de ficção científica de Douglas Adam. O título desse número 64 da Ciência Aberta era talvez demasiado grande. O livro, que é fininho, vendeu pouco, ainda haverá exemplares em armazém. Foi o meu primeiro livro na colecção Ciência Aberta (fui o terceiro autor português depois do Dias de Deus e do Formosinho Simões), mas não teve êxito comercial. Para além do tamanho (os livros pequenos não vendem muito) era uma colecção de ensaios dirigidos a um público culturalmente mais evoluído. Tinha feito algumas conferências convidadas, entretanto, sobre isto e sobre aquilo… Os livros para um público juvenil têm em princípio maior potencial de vendas. Publiquei depois outros livros na Ciência Aberta, Esses estão esgotados, mas também as edições foram mais pequenas.

IN: A seguir foi A Coisa mais Preciosa que Temos, que é o número 120, não foi?

CF: Sim e o Curiosidade Apaixonada, os dois esgotaram. Foram livros que venderam bem. A Coisa mais Preciosa saiu no ano 2005, o ano em que comemorámos os cem anos dos trabalhos seminais de Einstein com a celebração do Ano Mundial da Física.  Depois publiquei um outro livro na mesma colecção Aprender, Fazer Ciência, que foi uma sequela do primeiro, embora tendo saído muito mais tarde, cerca de dez anos: Nova Física Divertida. Também vendeu bastante bem, em várias edições.
Só para terminar esta parte histórica sobre a Gradiva: quero repetir que o grande mérito é, de facto, do editor Guilherme Valente, que conseguiu reunir um conjunto de nomes da ciência internacional que são singulares, aos quais juntou nomes nacionais. Eu acho que é muito difícil encontrar coleções desta índole… e existem várias no mundo, que sejam tão antigas e que tenham tal qualidade de edição. O nome Ciência Aberta vem do francês: as Éditions du Seuil, têm a Science Ouverte, criada em 1966b e dirigida desde 1972 pelo físico Jean-Marc Lévy-Leblond Mas com esta qualidade, com esta intensidade, com esta persistência, acho que é um caso único no mundo. Hoje sou responsável da colecção e tenho muito orgulho nisso: quando começo a dizer a alguém de fora quem são os autores da colecção e que ela tem 40 anos, os meus interlocutores ficam completamente admiradas e seduzidas. Às vezes até nem acreditam que há uma editora que consegue reunir toda esta gente… Devíamos estar gratos ao editor que,  tenho dito isto várias vezes, fez cultura científica em Portugal, ao lançar uma colecção de livros de cultura científica em Portugal que deixou lastro. Com certeza havia antecedentes, alguns muito primitivos, nos anos 40 de Bento Jesus Caraça, a colecção Cosmos, que é também uma iniciativa muito interessante e com grande êxito na época. Mas. nos anos 80/90 do século passado e continuando até aos tempos, a colecção Ciência Aberta marca a cultura científica em Portugal. 

Há muita gente hoje que se diz descendente dessa colecção, que leu esses livros e dele ficou devedora! Para dar um exemplo muito recente, tive a visita há dias de um técnico de informática, formado em Matemática, que veio instalar um supercomputador à universidade, que pediu para falar comigo porque tinha lido algumas traduções e obras minhas, como os Objectos Fractais. Ora ele era muito jovem na altura, tinha 14 ou 15 anos. Mas confirmou-me coisas incríveis de que eu me lembrava: a novidade e o entusiasmo que estes livros transmitiam na época. Eram lidos por professores, numa época em que os professores gastavam mais dinheiro em livros do que gastam hoje, até porque dispunham de mais meios para isso. E eram lidos por alunos. Os alunos também liam mais do que hoje. Na universidade, os alunos liam este tipo de livros. Infelizmente esses hábitos de leitura perderam-se um pouco. Portanto, não tenho dúvidas nenhumas em dizer que esta colecção teve impacto na cultura científica portuguesa.

Eu, o Jorge Buescu, o Nuno Crato e outros autores portugueses, dávamos sugestões. O Guilherme  soube-se rodear de pessoas que tinham interesse na cultura científica. Na altura éramos muito mais jovens do que somos todos hoje. Hoje já estamos nos 50 e 60 e estou a falar de há 30 anos, quando tínhamos 30 ou 40 anos. Dávamos sugestões e o editor procurava imediatamente pôr essas sugestões em prática, embora nem sempre estivesse presente fisicamente, porque esteve boa parte da vida em Macau. Na altura escreviam-se cartas, não havia e-mail  Havia uma coeditora, Maria do Rosário Pedreira, que hoje é uma grande editora num grande grupo editorial e também escritora, mas que começou na Gradiva e eu contactei muito por cartas e pessoalmente em Lisboa. Ainda guardo as cópias das cartas que recebia. Era a maneira de comunicar na altura, pois não havia as comunicações electrónicas que há hoje. Era um tempo muito diferente.

O mérito do Guilherme foi também de se saber rodear de um conjunto de pessoas que estavam atentas ao que aparecia lá fora e que lhe davam sugestões. Ele imediatamente respondia, sempre com grande atenção e amabilidade. Foi essa rede de contactos permitiu erguer e manter a colecção. Também merece ser referido um outro nome que não é da área das ciências: Onésimo Teotónio de Almeida, um professor e escritor português que vive nos Estados Unidos há muitos anos, que era também amigo do Guilherme e que também lhe mandava informações: “Saiu agora um livro muito interessante sobre isto, saiu um outro sobre aquilo…” O Onésimo ensina na Universidade de Brown, na área da filosofia e da cultura portuguesa. Alguns dos títulos da Ciência Aberta têm a marca, de pessoas da comunidade portuguesa lá fora. Portanto, o editor tinha uma rede em Portugal e lá fora. E era uma rede muito eficaz, se olharmos para o conjunto de autores e títulos reunidos. Enfim, eu continuei sempre a dar sugestões, mas tive outro tipo de colaborações, por exemplo o número 129, que é um livro intitulado Fronteiras da Ciência, em que apareço como como editor. Foi uma conferência que se fez para assinalar o aniversário da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, onde trabalho. Convidámos alguns autores estrangeiros e portugueses, autores de renome e o livro é uma espécie de actas desse encontro em Coimbra. Nesse encontro esteve o Mandelbrot e outros autores da coleção. Tenho uma fotografia em que apareço eu, o Jorge Dias de Deus, o João Queiró, o Benoît Mandelbrot, o João Caraça, da Fundação Gulbenkian. O número 128 foi um livro do Einstein, O Significado da Relatividade, O 127 um livro do João Magueijo, um cientista português que estava e está no Reino Unido, que vendeu bastante bem, Mais rápido que a luz.

A Gradiva publicou livros de cientistas portugueses dentro e fora do país, embora esses livros de inicio fossem pouco numerosos. Há um outro professor que dava sugestões e que depois foi autor, que é António Manuel Baptista, um físico e uma personagem que teve muita importância na cultura científica audiovisual, na rádio e na televisão, antes de aparecer a Gradiva. Lembro-me dos seus programas dos meus tempos de jovem do liceu… Só há três autores portugueses até ao número 64, o meu Universo, Computadores e Tudo o Resto, o que significa que eram uma minoria e assim continuou até porque a ciência estava em desenvolvimento. É preciso integrar tudo na época… Foi só em 1995 só que surgiu o Ministério da Ciência e Tecnologia com o José Mariano Gago à frente, ele tinha estado na Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica - JNICT e tinha organizado em 1987  umas Jornadas Nacionais de Investigação Científica e Tecnológica  e sempre teve atenção à cultura científica, que ele apoiou… Também deu sugestões ao editor, porque era amigo do Guilherme Valente, que publicou em 1990 o seu Manifesto pela Ciência em Portugal.” Esta colecção mais tarde ganhou o Grande Prémio Ciência Viva: o primeiro premiado do Ciência Viva é precisamente o Guilherme Valente, como editor da Ciência Aberta.

Portanto a colecção teve desde o início não só um pai, mas também vários padrinhos, vários amigos da ciência, juntaram-se para fazer crescer e encaminhar a “criança”. O primeiro livro do Nuno Crato, acho que vendeu bem, é o número 166, Passeio Aleatório, mas antes dele houve outros portugueses. Luís Bigotte de Almeida, neurologista, Teresa Lago, astrónoma que preparo uma coleção de textos sobre o Universo, Joaquim Marques de Sá e Maria Paula Oliveira, matemáticos, o próprio António Manuel Baptista como autor e não apenas conselheiro editorial e tradutor, Jorge Buescu, que haveria de publicar vários livros de crónicas matemáticas (sendo o autor português até agora com mais títulos na Ciência Aberta). A partir do número 100, a presença de autores portugueses intensificou-se… Por exemplo, Margarida Telo da Gama, física, foi editora de uma colectânea de textos. Foi um tempo em que a ciência portuguesa crescia a olhos vistos com a visão de José Mariano Gago, com o aumento dos institutos de investigação, dos centros de ciência Ciência Viva, etc. Portanto a partir do número 100 vamos ver uma participação nacional mais forte, reflectindo o incremento da ciência em Portugal. Mesmo depois, quando o Mariano Gago saiu do governo, o Presidente da Fundação para a Ciência e Tecnologia - FCT, Fernando Ramoa Ribeiro, que era professor de Química no Instituto Superior Técnico, organizou umas conferências intituladas Despertar para a Ciência, que deram lugar a vários volumes na Ciência Aberta. Eram conferências públicas com muitos nomes portugueses, tendo os textos ficado na colecção para a posteridade. Eu escrevi um precisamente com o mesmo título Despertar para a Ciência, sobre a iniciação na ciência dos mais novos Se formos ver os nomes  das pessoas que derem palestras no Despertar para a ciência , verificamos que é uma espécie de who’who da ciência em Portugal. Tinha-se estabelecido uma comunidade de pessoas interessadas e activas na divulgação de ciência.

Não há dúvida nenhuma de que o Guilherme Valente foi o “pai” da colecção, mas eu, quando adquiri consciência da relevância da colecção, passei a colaborar de perto. Conto até uma pequena história, que revela a afectividade com que a colaboração se iniciou e depois continuou. Eu quando propus o livro que referi, O Jogo, fi-lo por meio de uma carta ao editor. Escrevi-lhe num tom muito formal -  “Ex.mo. Sr. Dr.”, etc. - pois não o conhecia de lado nenhum e, para lhe mostrar que sabia muita coisa, para além de lhe elogiar os livros publicados, também o criticava em pequenos aspectos: “olhe que está uma falha ali naquela tradução, a palavra cientificamente correcta não é aquela…” Portanto, armava-me em “bom”, como convinha a um professor de 30 anos que se quer afirmar… O Guilherme, e eu nunca mais me esqueço da atitude dele, podia ter-me respondido por carta, podia ter esperado, mas não. Descobriu o meu número de telefone, era uma altura em que havia listas telefónicas, e ligou-me para casa. “Queria falar consigo…”. A resposta inicial dele foi bastante calorosa e a nossa conversa durou mais de uma hora. Entendemo-nos logo bem ao telefone, tão bem que combinámos encontrar-nos pessoalmente. Disse-me “Olhe, eu sou de Leiria, tenho lá uma casa de família, temos que nos conhecer pessoalmente, eu vou muitas vezes a Leiria, você está em Coimbra e talvez possa ir lá…”, Combinámos para breve um encontro, que teve lugar na praça principal de Leiria. E a partir daí a nossa amizade perdurou porque basicamente partilhamos o mesmo interesse pela cultura científica e pela cultura em geral. O Guilherme é um homem com uma cultura extraordinária e com uma visão muito arguta. É muito atento ao mundo, ao que os outros dizem, mas pensa como poucos pela sua própria cabeça. E essa é uma grande qualidade num editor. Um editor tem que saber ler o mundo, saber interagir com as pessoas, saber, como é o caso comigo, acarinhar os escritores, os colaboradores, mas tem de decidir o que publicar. Sou-lhe muito devedor. Alguns livros meus, como disse, foram traduzidos lá fora, num esforço que ele empreendeu de promoção de autores nacionais no estrangeiro. A Gradiva tem um grande prestígio lá fora… O Guilherme ia e ainda vai à Feira do Livro de Frankfurt. Eu fui um dia com ele, uma oportunidade que apreciei pois pude assim regressar à cidade onde fiz o doutoramento. E, enfim, a Feira do Livro é um evento extraordinário, é simplesmente a maior feira do livro do mundo. Andámos a ver livros juntos…

É natural, por isso, que ele, a certa altura, a partir do número 200, me tenha perguntado se eu não queria tomar conta da colecção. Eu já estava próximo dela, já conhecia o que se editava, já tinha dado muitas sugestões, mas ele passou a partir dessa altura a confiar mais em mim, a dizer “Agora escolhes tu!”, com certeza dentro das disponibilidades e constrangimentos da editora, que é pequena e independente. Ele dizia: “Não podemos publicar todos os livros bons, mas todos os livros que nós publicamos têm de ser bons”. Não me pôs pressão nenhuma, confiando absolutamente nos meus critérios. Desde o número 200 já saíram 34 volumes. O número de livros publicados diminuiu, o que tem a ver com o mercado, assim como diminuíram as tiragens das edições. Livros como o Cosmos, do Sagan, ou Um Pouco Mais de Azul, do Reeves ou, com certeza, ou Breve História do Tempo, do Hawking, venderam muitíssimo. O mesmo se passou com autores de biologia, como o Richard Dawkins, autor de O Gene Egoísta, que tem uma reedição recente (de facto, já tinha vendido bem, mas continua a vender) e o Stephen Jay Gould. Há livros que têm caminho longo, são os long-sellers, vendem desde há mais de 30 anos e continuam a sair. Há um público novo para O Gene Egoísta que não conheceu o livro quando ele apareceu. O Richard Feynman, que eu traduzi quando era mais novo, se não é deveria também ser um long-seller. O número de livros publicados diminuiu e a tiragem de cada um deles também diminuiu. Existem hoje graves problemas da edição em Portugal. Há um artigo muito recente do Observador, que eu recomendo, sobre os números da edição em Portugal, que não são famosos. São vários os problemas. Um é a concorrência do digital. Não é bem apenas livros electrónicos, é a leitura electrónica, qualquer que ela seja, incluindo a de livros pirateados. As pessoas hoje olham para ecrãs, não olham para livros. Depois há a questão económica: tivemos crise económica em 2011, um bocadinho atrasada pois no mundo foi em 2008, e as pessoas passaram a ter menos dinheiro e deixaram de  gastar tanto em livros. Em Portugal a classe média, os professores, que são, digamos, classe média, não gastam hoje tanto em livros como gastavam. E depois é preciso reconhecer, e esse é um problema que interessa muito ao Guilherme Valente, ele tem escrito sobre isso e eu acompanho-o em boa medida, que a nossa escola não tem formado leitores em número suficiente. A escola forma pessoas que a, dada altura, deixam de ler, os rapazes antes das raparigas. As raparigas, até porque lêem mais, conseguem com mais facilidade entrar no ensino superior...

IN: Houve algum programa de televisão, alguma colecção de livros, brinquedos científicos de ciência e tecnologia que tenham influenciado o seu interesse pela Física?

CF: A minha infância ocorreu antes da chegada da televisão. Em 1969, tinha eu 13 anos, não havia televisão em casa. Fui ver não me lembro bem onde a chegada do homem à lua. Havia televisão em poucos lares nessa época e era a preto e branco. Portanto a televisão não foi para mim um meio importante... talvez mais a rádio. Ouvia o António Manuel Baptista, eu lembro-me dos programas dele de ciência. Não terão sido decisivo na escolha da vocação científica, mas lembro-me de o ter ouvido a falar, ele tinha uma bela voz. Coisa curiosa: eu estou neste momento a fazer um programa cultural na SIC intitulado Original é a Cultura na companhia de uma escritora, Dulce Maria Cardoso, e de um musicólogo, Rui Vieira Nery, e a pivô do programa, que trabalhou em várias editoras, a Cristina Ovídio, é filha do António Manuel Baptista. Portanto, estou a fazer um programa com a filha de um físico, que contribuiu muito, principalmente no área do audiovisual, na rádio e na televisão, para a divulgação da ciência.

Mas a minha principal influência não foi audiovisual, nunca fui uma pessoa muito audiovisual. Foi antes através da leitura, através dos livros. Não que em minha casa houvesse muitos livros. Com o dinheiro dos primeiros prémios escolares que recebi, concursos de arte, etc., comecei a comprar livros e escolhia livros não necessariamente de ciência, pois me interessava bastante também por arte nessa época. Comecei a fazer a minha própria colecção de livros e hoje tenho uma biblioteca imensa. Tornei-me um leitor omnívoro, oferecem-me muitos livros, mas ainda hoje gasto muito dinheiro em livros. Ao contrário do cidadão comum que deixou de comprar livros, eu cada vez compro mais, para equilibrar… (risos). Eu criei de raiz uma biblioteca de cultura científica a que dei o nome de “Rómulo”, à qual estou a dar muitos dos livros que recebo ou que compro. A minha principal influência para entrar no mundo da ciência veio dos livros. Como disse, o primeiro dinheiro que ganhei foi para livros, depois comecei a ganhar dinheiro como monitor na Universidade de Coimbra e depois como bolseiro, na Alemanha, e comprava muitos livros. Fazia actividades para além de investigação científica: traduções, dava aulas de português, era intérprete, várias coisas... Sempre fui de gastar em livros. É muito simples: eu ganho dinheiro a fazer livros e gasto-o depois a comprar livros.

Já agora, um aparte: sou autor de cerca de 60 livros, não estou a falar de prefácios nem capítulos nem secções nem edições. Estou a falar de livros escritos por mim sozinho ou em coautoria. Pode-se perguntar como é que se atinge esse número de 60 livros. Bem, não foi apenas na Gradiva, tenho, por exemplo, cerca de uma dezena de livros infantis numa colecção intitulada Ciência a Brincar, na Bizâncio, já falei da História da Ciência em Portugal na Arranha-Céus, tenho livros na Imprensa da Universidade de Coimbra, na Fundação Calouste Gulbenkian (estes mais académicos), na Fundação Francisco Manuel dos Santos, instituição com a qual tenho colaborado. Mas cerca de metade dos meus livros, 30, não são de divulgação de ciência, são livros pedagógicos para os ensinos básico e secundário, são livros escolares. Há toda uma geração que beneficiou de livros que ajudei a fazer de Física e Química, livros que estão aliás no mercado. Uma parte do mercado de livros escolares de ciências é de uma equipa em que integro, na Texto Editores, no grupo Leya. De resto, é impossível fazer algo nessa área sozinho. O livro não são é só o texto, são as figuras, o design, os materiais complementares para professores e alunos, muitos deles audiovisuais. Os direitos de autor que recebo desses livros são gastos em parte a alargar a minha biblioteca.

O meu interesse pela leitura, nos anos do liceu, não tendo muitos livros em casa, proveio da frequência de bibliotecas. Li muitos livros da Biblioteca Municipal de Coimbra. A área que comecei a ler nessa altura era precisamente a área que a Gradiva depois veio ocupar, a da divulgação científica. Embora não existisse a mesma variedade e qualidade que hoje há, havia alguns, incluindo de autores portugueses. Eu chamei Rómulo ao centro que fundei porque alguns dos livros que li na época eram livros de Rómulo de Carvalho, que foi um grande professor de Físico-Química e também um grande poeta e prosador sob o nome de António Gedeão. E, além disso, um historiador da ciência, um pedagogo, um divulgador. Enfim, era um homem dos sete instrumentos, um professor e uma pessoa que admiro muito. Conheci-o pessoalmente. Se me é permitido, considero-me devedor da herança que ele deixou. Mas a dívida não é apenas dos livros dele. Lembro-me de ler várias biografias de Einstein, publicadas por várias editoras, e textos de introdução à teoria da relatividade. Havia pequenos livros de bolso, por exemplo de Bertrand Russell o ABC da Relatividade, e eu aprendi a teoria da relatividade e a teoria quântica por minha própria conta, isto porque a física moderna praticamente não se dava no liceu (tirando um bocadinho que se dava na Química). Infelizmente hoje ainda quase não se dá no ensino secundário… Poderia ter um espaço maior. A mim interessava-me a ciência em construção, a aventura da ciência, não tanto a ciência antiga do Arquimedes e do Galileu, que e reconheço que são coisas necessárias e úteis, mas a ciência moderna, a ciência mais perto da actualidade. Fui muito influenciado pelos livros de divulgação de ciência moderna que pude ler, naquela altura em que se lê mais, entre os 12 e os 20 anos, quando tinha grande avidez da leitura e muito tempo para ler. Lembro-me do tempo em que as férias de Verão eram muito grandes: uma pessoa tinha aqueles três ou quatro meses no Verão para leituras prolongadas. Mais tarde fui fazer o doutoramento para a Alemanha com uma bolsa da Fundação Gulbenkian e, durante o doutoramento de três anos e meio também tive muito tempo. Não podia estar só a fazer o trabalho de investigação. Na biblioteca universitária de Frankfurt am Main havia livros sobre todos os assuntos: muitos livros em português, incluindo ficção. Lembro-me de ler não só em português europeu mas também em português do Brasil, até porque eu dava aulas de línguas e literatura portuguesa, para estrangeiros e para filhos de emigrantes. Li lá quase todo o Eça de Queirós, li lá os primeiros livros de um autor então desconhecido, mas hoje famosíssimo, o António Lobo Antunes, que apareceu numa editora que não era mainstream, li o Memorial do Convento do José Saramago, quando a fama dele começava a despontar. Lembro que a Memória de Elefante é de 1979 e o Memorial do Convento de 1982. Tinha tempo para ler e lia. No tempo de formação quer na escola secundária, quer na Universidade de Coimbra, quer depois na Universidade Goethe em Frankfurt tinha mais tempo para ler do que tenho hoje. Hoje acumulo livros, com a esperança de os vir a ler um dia. Gostava de me reformar para ler alguns dos livros que tenho, pois hoje tenho pouco tempo. Tenho que ver exames, os alunos querem as notas... (risos)

1 comentário:

Onésimo T. Almeida disse...

O que aqui vai de informação, Carlos. Se isso não fica registado, perde-se.
Foram anos de uma actividade extraordinária da Gradiva, que teve um papel importantíssimo na divulgação científica em Portugal.
Sim, enviei vários livros daqui que o Guilherme Valente mandou traduzir e editou. Estou a lembrar-me de "Está a brincar, Sr. Feynman!"; "O Código Cósmico", de Heinz Pagels; de Carlo Cipolla, "Canhões e Velas na Primeira Fase da Expansão Europeia"; de David Landes, "A Riqueza e a Pobreza das Nações", e vários outros.
Muito obrigado pela referência.
Um abraço. E continua com essa genica imparável.
Onésimo

O BRASIL JUNTA-SE AOS PAÍSES QUE PROÍBEM OU RESTRINGEM OS TELEMÓVEIS NA SALA DE AULA E NA ESCOLA

A notícia é da Agência Lusa. Encontrei-a no jornal Expresso (ver aqui ). É, felizmente, quase igual a outras que temos registado no De Rerum...