sexta-feira, 24 de abril de 2020

"A única coisa que muda é o meio: de presencial passa a virtual"

Há décadas que uso o trabalho do italiano Francesco Tonucci como elemento de reflexão-humor sobre a escola. Sendo professor e pedagogo, Tonucci é mais conhecido como desenhador/cartoonista que assina livros como Com olhos de criança (aqui) e Criança se nasce (aqui), tal como impulsionador do projecto Cidade das Crianças (aqui).

Seria, portanto, inevitável pedir-lhe opinião sobre o modo de educar durante e após a quarentena desencadeada pela COVID-19. Em entrevista aos jornais La Nacion ("Si el virus cambió todo, la escuela no puede seguir igual, aqui) e ao El País (“Não percamos esse tempo precioso com lição de casa”, aqui), afirma que ela veio evidenciar os problemas da escola mas também proporcionar uma oportunidade para a mudarmos. Mas não é isso que está a acontecer: mudou-se o meio de a concretizar (de presencial a virtual), mas o modo de a conceber mantém-se. 

Ainda que discorde de pressupostos de que Tonucci parte e de estratégias pedagógicas que propõe, subscrevo por inteiro o seu questionamento ao tão elogiado meio virtual. E quando se desce no nível de escolaridade mais pertinente vejo esse questionamento.

Eis algumas das ideias que apresenta nas mencionadas entrevistas.
O vírus fez mudar tudo. Este é o ponto de partida. Se mudou tudo, a escola não pode continuar igual ao que era. Contudo, esta instituição quer mostrar que pode continuar com aulas e trabalhos. A única coisa que muda é o meio: de presencial passa a virtual. A crianças continuam sentadas, a ouvir as lições. 
É preciso perguntar: as crianças devem estar tantas horas seguidas em frente a um ecrã? São todas capazes de fazer os trabalhos que se lhes pede? Têm todas elas a tecnologia adequada? 
Se as pessoas estavam satisfeitas com a escola, entende-se que não queiram mudar nada. Mas é preciso que mude, tem sobretudo de ter em atenção as crianças pois tudo se decide de fora. Há regulamentos, programas, manuais mas nenhum destes instrumentos interroga as crianças sobre o que querem fazer, quais são os seus desejos, aptidões e capacidades. 
Se a escola que temos se pode transpor para casa, aproveitemos a casa: que seja considerada um laboratório e os pais assistentes/colaboradores dos professores, convertendo cada espaço, desde a cozinha até uma gaveta de fotografias velhas, em oportunidades para aprender algo de novo. 
A escola vivia em constante conflito com a família, agora, a escola faz-se na família. É necessário que os pais  ajudem os filhos a compreender e a conhecer, por exemplo, como usar máquinas, pôr roupa a secar, passar a ferro... A cozinha é um laboratório de química, aí se pesam e misturam os ingredientes, se cozinham usando vários métodos. 
A escola poderia propor às crianças que preparassem um prato ou um molho segundo o costume de cada família, que construíssem a sua história de vida a partir de fotografias, que estudassem a planta da sua casa como forma de aprender geometria, que fizessem um diário ou vídeo (pessoal, com direito a preservar a intimidade) uma vez que estão a passar por uma experiência especial. 
Também poderia incentivar o amor pela leitura: o prazer e a necessidade de percorrer livros que estejam em casa ou que a escola faça chegar a casa, não para as crianças fazerem resumos, fichas, mas para fruírem a leitura.

2 comentários:

Rui Ferreira disse...

Tudo teorias boas que a realidade se encarregaria de demonstrar como más, por partirem do pressuposto que todos os alunos, como se de um dom natural se tratasse, quisessem aprender. As crianças e os jovens não têm a noção da importância do estudar (Savater). O ato de aprender precisa de esforço, daí a necessidade, mais ou menos evidente, consoante o caso, de imposição, coisa que muito dificilmente poderá vir a ser equacionada em regime virtual (incompatibilidade ao nível do controlo).
Parece que de um momento para o outro a palavra inimputável tivesse deixado de existir no meio judicial. Como se as crianças e os jovens pudessem agora vir a ser responsabilizadas por aquilo que fazem espontaneamente. Não podem. Têm de ser obrigadas. "Os homens nascem dos homens, eduquem-nos ou aturem-nos" (Marco Aurélio).
"A escola poderia propor às crianças..." e se elas dissessem que não?

Anónimo disse...

Chega de fichas e resumos: o que devemos fazer é incentivar o amor das crianças pela leitura. As crianças pobres não precisam de aprender conceitos científicos difíceis. No novo ensino, os laboratórios podem ser facilmente substituídos por cozinhas modestas de pobres famílias, onde se podem confecionar pratos deliciosos ao mesmo tempo que se aprende química útil para o trabalho e para a vida.
A escola pós-covid-19 tem de ser uma festa a tempo inteiro para professores e alunos!

O BRASIL JUNTA-SE AOS PAÍSES QUE PROÍBEM OU RESTRINGEM OS TELEMÓVEIS NA SALA DE AULA E NA ESCOLA

A notícia é da Agência Lusa. Encontrei-a no jornal Expresso (ver aqui ). É, felizmente, quase igual a outras que temos registado no De Rerum...