segunda-feira, 27 de abril de 2020

É preciso reorganizar os sistemas educativos em função do "novo normal"

Nos últimos dias têm sido entrevistados representantes de organizações internacionais que participam directamente na formulação de políticas educativas, com recomendações e orientações. Perguntam-lhes os jornalistas qual é o estado do ensino em virtude da COVID-19 e como evoluirá num futuro próximo.

Reproduzi aqui extracto de uma entrevista a Andreas Schleicher, director de Educação da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), reproduzo, abaixo, extractos de uma entrevista de Rui Polónio (TSF, 15 de Abril) a Stefania Giannini, Diretora-geral Adjunta para a Educação da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).

Apesar da diferença de origens e vocações das duas organizações, o discurso sobre a educação escolar é sobreposto. Poderiam trocar-se os nomes dos mencionados representantes que não se perceberia. Compare o leitor as repostas e verá...
A UNESCO tem acompanhado de perto o encerramento de escolas? Absolutamente. A UNESCO começou a monitorizar os dados desde o início. Em poucos dias, 300 milhões de crianças deixaram de ir à escola, na China, Itália e em mais alguns países. Mas este número tem vindo a subir e hoje temos 1.600 milhões de alunos em casa, que representam mais de 90% da população estudantil de todo o mundo (…). 
Quando um país decide encerrar escolas, quais são os riscos que ficam em cima da mesa? Mais do que riscos, prefiro falar em impactos. Em muitos países, as escolas são dos locais mais seguros, mas são também, muitas vezes, a garantia de uma nutrição apropriada. O fecho das escolas tem, claro, implicações no bem-estar das crianças e das famílias. Também é preciso garantir a qualidade do ensino, não deixar os mais desfavorecidos para trás e garantir equipamentos que assegurem esta mudança. Os impactos são muito fortes, mas deixe-me dizer isto: onde vemos um risco, também podemos ver uma oportunidade. Penso que o momento que estamos a viver também serve para fortalecer as ligações entre todos os atores do processo educativo, criar parcerias entre os Governos e sensibilizar para a importância da educação durante a crise e depois dela. 
Que desafios identificam? Há grandes desafios que os países e os Governos enfrentam no imediato. O primeiro é o de mudar (de um dia para o outro) das salas de aulas tradicionais para plataformas de e-learning e continuar a assegurar o ensino. Não é fácil e óbvio em lugar nenhum do mundo. O segundo é dar aos principais atores do processo, professores e alunos, especialmente os da primária, todas as ferramentas necessárias. Não apenas as infraestruturas e plataformas, mas também aptidões sociais e emocionais para estarem preparados. Para fazerem esta transição com naturalidade, aprenderem e ensinarem num novo contexto sem precedentes e totalmente inesperado (…). Depois há um impacto que nós já começámos a avaliar em vários países, talvez mais relacionado com as desvantagens para alguns segmentos da população estudantil: o que é que significa o fecho das escolas? Por exemplo, não podermos dar acesso à alimentação. Em muitos casos, a alimentação na escola significa ter acesso diariamente a comida saudável (…), há muitas variáveis que temos que levar em conta e é nisto que a coligação global para acompanhar o impacto do novo coronavírus, lançada pela UNESCO há quatro semanas, está a trabalhar. 
Como tem sido a atuação junto dos Governos? Estamos em contacto direto com quase todos os Governos e ministros da educação. De resto organizámos já a primeira reunião ministerial centrada nos grandes tópicos de que falei há pouco. Penso que neste momento é difícil para todos eles anteciparem o desenvolvimento desta situação (…) 
A UNESCO comprometeu-se com o desenvolvimento sustentável no âmbito da agenda 2030 (…) De que forma olha para este processo? Penso que a palavra-chave para o que estamos a construir é: solidariedade, uma nova forma de solidariedade que encontrámos na comunidade educativa. Uma nova forma de construir parcerias rapidamente pode ajudar os ministros a encontrarem soluções, estejamos a falar de apenas mais algumas semanas ou de uma situação a médio prazo que talvez obrigue os Governos a pensar para lá da crise. Uma nova forma de organizar os sistemas educativos (…). A este propósito, houve uma reunião extraordinária, por videoconferência, claro, da Comissão Internacional pelo Futuro da Educação. Foi um encontro centrado nos efeitos do novo coronavírus, mas em que se começou já a repensar o futuro do ensino (…). 
As soluções não são iguais para todos os países? (…) Estamos a tentar sentar à mesa os principais intervenientes, para que a um nível global se possa ajudar os diversos países a encontrarem o seu próprio caminho (…). Que países se estão a destacar na adoção de medidas? A China que foi o primeiro país a fechar escolas e em poucos dias colocou online 180 milhões de estudantes, de acordo com a informação que o ministro chinês da Educação nos transmitiu (…). Cada país está a lidar com este problema à sua maneira. O Irão também está a recorrer às rádios e televisões como forma de complementar as plataformas de e-learning (…). Na Europa, destacaria a França que ativou imediatamente o Centro Nacional para a Educação à Distância e está a funcionar bem (…) As escolas primárias não estão com o mesmo nível de eficiência que o secundário. Mas isso é normal, pois é muito diferente ensinar e aprender no começo do percurso escolar ou em níveis em que os alunos são mais autónomos, preparados para utilizar todos os instrumentos e capazes de interagir, com normalidade, através de plataformas online, com os professores. Na África subsaariana, alguns países, como o Senegal (…) não têm ligação à Internet na maior parte do território, não têm implementadas plataformas de e-learning. Estamos a ajudar a criar essas plataformas, mas (…) demora algum tempo. Entretanto, eles estão a utilizar algo que penso que lhe seja familiar: a rádio está a substituir, de alguma forma, a voz dos professores (…). 
O paradigma da educação pode mudar quando a pandemia acabar? Penso que sim. Nós falamos muito, pensamos muito em re-construir o modelo tradicional do ensino (…) agora que fomos obrigados a mudar de um dia para o outro, podemos aproveitar e finalmente mudar alguma coisa. Não é apenas sobre usar melhor ou pior as infraestruturas e os equipamentos. É um paradoxo: Quanto mais somos obrigados a mudar-nos das salas de aulas tradicionais, para salas virtuais, mais importante se torna centrarmo-nos no lado humano, no bem-estar, nas necessidades emocionais e sociais. É importante atrairmos os jovens e as crianças para o centro da construção do processo educativo (…). A crise tem sido muito abordada pela perspetiva dos alunos e das famílias. Mas há também 60 milhões de professores a enfrentar uma nova realidade. Este é um dos assuntos que a UNESCO - e a coligação global que lidera - vai abordar nos próximos dias com novos dados, novas linhas orientadoras e algumas reflexões que vamos partilhar com a comunidade internacional. Por agora, posso adiantar que 50% dos professores [dos países da OCDE] não estão preparados para uma mudança rápida em direção a um novo modelo de ensino. Isto significa que ainda há muito trabalho a fazer. Ser professor não é uma tarefa fácil, nunca o foi, mas hoje é mais desafiante do que nunca. 
Que cuidados devem ser tidos em conta na hora de reabrir as escolas? Esse é um aspeto que temos discutido com a coligação global e em que estamos a trabalhar de perto com os nossos parceiros (…). Primeiro apoiar a crianças, porque vai haver um impacto emocional ao entrarmos no que talvez seja o novo normal e isso é algo que nos preocupa. Outro aspeto prende-se com as famílias (…) pais ocupados com tarefas domésticas, com tele-trabalho e com as crianças a correr à sua volta e a terem aulas à distância (…). Depois, há a questão da avaliação e do acesso ao ensino. É importante que os sistemas escolares possam manter a confiança das famílias, dos alunos, mas também dos professores. Tem de haver continuidade na aprendizagem, é importante que o ensino mantenha um nível de qualidade alto e não acentue as desigualdades depois desta crise.

2 comentários:

Rui Ferreira disse...

Bater na mesma tecla repetidamente é uma técnica que dá frutos no consentimento cognitivo, não na dissonância cognitiva, aliás, nesta é vista mesmo como ridícula, a saber:
1. A escola tradicional significa qualidade e não o seu contrário;
2. A escola tradicional de hoje contempla o novo e a inovação;
3. A escola tradicional foi capaz, e com distinção, formar para o futuro (não esqueçamos que estes que se consideram bons e visionários foram todos eles formados na e pela escola tradicional).
Então, sendo assim, o que estes seres pretendem?
Para alcançar o seu objetivo maior o capitalismo sabe que tem de transformar o individuo num espectador passivo. A formação de qualidade dada pela escola tradicional deve estar disponível somente para as elites(Debord). O que pretendem mesmo não é acabar com ela, antes querem guardá-la só para eles. A escola tradicional é perigosa porque tende a levar as pessoas a pensar.

Anónimo disse...

Os discursos melífluos dos altos responsáveis da OCDE e da UNESCO são como as peneiras de farinha com que alguns pretendem tapar o Sol!
O ensino de qualidade da "velha escola" do século XX levou o Homem à Lua. Se a escola pública do século XXI acentuar o desprezo, que já se verifica, pelo ensino da Ciência e das Humanidades, demitindo-se da sua razão de ser, então os pobres perderão uma das últimas oportunidades de ascenderem socialmente, através do trabalho e do saber.

CARTA A UM JOVEM DECENTE

Face ao que diz ser a «normalização da indecência», a jornalista Mafalda Anjos publicou um livro com o título: Carta a um jovem decente .  N...