Meu artigo no último Jornal de Letras:
A ciência não foi apanhada desprevenida com a
presente crise do novo coronavírus. Trabalha há muito tempo em vírus e
epidemias. Em Setembro de 2019 saiu um relatório da Organização Mundial de
Saúde, que chama precisamente a atenção para o perigo viral. Dois meses depois
surgia o primeiro caso da nova doença em Wuhan, na China. Era fácil prever uma
nova epidemia, pois tem havido vários surtos epidémicos ao longo da história,
alguns deles neste século como o SARS (2002-2003) e o MERS (2015-2018), ambos
devidos a coronavírus como o actual, que passaram sem causar grandes estragos à
escala global. Na Europa pensámos que o problema era longínquo e não nos afectava. A epidemia provocada pelo vírus
Ébola (2014-2017) revelou-se bem mais perigosa, mas não saiu de África. O HIV, também
oriundo do continente africano, teve, pelo contrário, grande espalhamento
global desde 1981: já provocou mais de 32 milhões de mortos. Mas, após
desenvolvimentos científicos impressionantes, a SIDA já não é uma sentença de morte mas uma doença
sustentável.
O biólogo molecular norte-americano Joshua
Lederberg, Nobel da Medicina em 1958, afirmou que “a única grande ameaça ao
continuado domínio do planeta pelo homem são os vírus”. Podem-se juntar as
bactérias, que são muito mais antigas do que nós, vivem muito tempo (há bactérias vivas com mais de meio milhão de anos) e
continuarão na Terra mesmo que – lagarto, lagarto — a espécie humana pereça. Nós somos
parte da Natureza e a evolução trouxe-nos até aos dias de hoje, apesar dos continuados
ataques de vírus e bactérias, cuja existência só recentemente conhecemos. Veja-se o caso da
peste negra, devida a uma bactéria, que, vinda da China, alastrou na Europa no
século XIV e que voltou a deflagrar no Porto em 1899. O combate a esta peste
está, aliás, na base do nossos sistema de higiene pública, pois o médico
Ricardo Jorge fugiu da fúria popular no Porto contra os cordões sanitários, vindo fundar em Lisboa o Instituto Central
de Higiene, antecessor do Instituto Ricardo Jorge. O seu colega Câmara Pestana
ficou infectado na luta contra a peste, falecendo em idade precoce.
Hoje já não pensamos que as epidemias são
castigos divinos, mas sim processos naturais. O homem sempre partilhou o mundo
com bactérias e vírus. Convivemos
diariamente com eles. Temos vírus dentro de nós, e o material genético de
alguns deles dentro do nosso próprio genoma.
E
também um batalhão de bactérias, por exemplo, nos
intestinos. Sabemos hoje manipular vírus e bactérias: até usamos uma bactéria
para produzir insulina humana.
Distinguimo-nos em muitas coisas dos vírus e
bactérias. Como disse o historiador israelita Yuval Harari (Visão,19/3/2020),
os médicos e cientistas europeus comunicam com os seus congéneres chineses
através da Internet – uma grande invenção da ciência – mas os
vírus na China não comunicam com os nossos. Nós sequenciamos o genoma dos
vírus, mas eles não sequenciam o nosso. Contudo, não somos deuses. Somos mais
poderosos do que os vírus, mas temos as nossas limitações.
O que pode e o que não pode a ciência
A ciência está,
nas presentes circunstâncias, a fazer aquilo que pode. Mas não se lhe pode
pedir milagres, pelo simples facto de estes não existirem. Não há um passe de mágica que acabe de repente com o
novo vírus. Cientistas chineses sequenciaram em tempo recorde o novo vírus
(ficou em acesso livre em Janeiro). Os testes que se estão a fazer em todo o
mundo provêm desse conhecimento científico e da tecnologia que já tínhamos
instalada para reconhecimento genético. Os cientistas identificaram as
artimanhas do novo vírus para penetrar nas nossas células e estão a trabalhar
em fármacos e vacinas. Estes aliás já existem, mas é preciso tempo provar a sua
segurança e eficácia, tal
como para todos os fármacos e vacinas de que
dispomos. Desta vez poderá ser mais rápido, devido à grande pressão social. É possível que se consigam ainda este ano, embora tal
não seja garantido. Veja-se que ainda não há vacinas para o SARS e o MERS. Mas temo-las para
a gripe A (a epidemia associada ao vírus H1N1,
que em 2009-2010 terá causado 250.000 mortes) e para outras gripes.
A ciência sozinha não nos salva, mas sem ela
estaríamos perdidos. É preciso sociedade, acima de tudo uma forte cooperação
entre os humanos. O desafio está
colocado à ciência, mas também à sociedade, à economia e à política. Não temos
uma solução imediata, mas sabemos muito: sabemos o que é um vírus e como ele
actua. Um exemplo dos nossos avanços nesta área foi a identificação retroactiva
do vírus da gripe espanhola (1918-1919), que levou génios como Amadeu de Sousa
Cardoso ou Egon Schiele. Também agora vamos ser capazes de grande criatividade
e união.
Não vai ser o fim do mundo
Sabemos hoje que os surtos virais são
temporários, mesmo quando os nossos meios de actuação são escassos. Acabamos por ganhar imunidade ou
dão-se mutações que fazem o vírus desaparecer. Até lá temos de fazer tudo o que
podemos: Testes em grande escala (em Portugal a escala tem sido insuficiente),
isolamento social (uma prática que deve continuar, até pela possibilidade de
recidiva no Inverno) e cuidados de higiene repetidos (como a lavagem das mãos).
Os casos de doentes com maior risco, em especial os idosos, estão a colocar à
prova o nosso Serviço Nacional de Saúde, depauperado pela desinvestimento nos
últimos anos. Muitos dos nossos médicos estão, como Ricardo Jorge e Câmara Pestana,
na primeira linha do confronto. Não lamento desiludir os apocalípticos:
não vai ser o fim do mundo!
Os cientistas estão a responder. Uma das mudanças
mais visíveis na ciência biomédica
foi a rapidez de comunicação dos resultados da investigação. O número de
artigos científicos sobre a nova doença aumentou drasticamente e eles estão a
ser logo divulgados através de servidores electrónicos, na forma de preprints,
isto é, antes de avaliação pelos pares. Por outro lado, a comunicação de ciência também se intensificou. A ciência e a comunicação de
ciência andavam mais centradas noutras questões, como as alterações climáticas, que aliás continuam prementes (embora as
emissões de dióxido de carbono tenham diminuído). Agora, muita gente retida em
casa pode-se informar sobre a ciência, não só na Internet e televisão, mas também em livros e
revistas. Pode ouvir cientistas e médicos a explicar os vírus, o ADN e as
proteínas. Bem sei que estamos inundados por desinformação e que a maior parte
das pessoas prefere clicar no mais engraçado, no mais estranho, no mais
sensacional. A epidemia de fake news
pode ser pior que a epidemia propriamente dita. Tenho visto coisas incríveis
como um vídeo em que um fulano, dito doutor, afirma com ar sério os maiores
dislates, como a ideia de que os novos vírus foram criados por satélites com
emissões
5G.
Racionalidade e solidariedade
A racionalidade é uma obrigação que temos como espécie. A ciência é o único
meio que temos de decifrar o mundo natural, ao qual pertencemos. Talvez seja
uma oportunidade para as sociedades e os governos acreditarem mais na ciência e
lhe proporcionarem mais meios. Em Portugal o investimento na ciência tem
estado estagnado há anos. É bom que aumente a investigação biomédica, mas seria
um enorme erro deixar as outras disciplinas de lado: Precisamos de matemática
(que faz modelos epidemiológicos), de física e química (sem as quais não se
compreende a vida), de engenharia (os ventiladores são engenharia). E
precisamos de mais e melhor comunicação de ciência. O país não tem investido o
suficiente na cultura científica – e
fá-lo concentrando demasiado em Lisboa.
Não tenho a certeza de que o mundo venha ser mais
racional. O mundo sempre foi racional e irracional ao mesmo tempo, mas a
irracionalidade deve ser combatida tanto quanto o vírus. Não sei como vai ser o
mundo, ninguém sabe. Se esta epidemia pudesse levar à queda de campeões da irracionalidade como Trump e Bolsonaro seria bom para todos. O que Trump disse, antes de ser
presidente, sobre vacinas, vírus e alterações climáticas é tenebroso, como David
Marçal e eu assinalámos no livro Os Inimigos da
Ciência (Gradiva,
2019). Seria desejável mais democracia no mundo, mas a autocracia chinesa parece
ter posto termo à epidemia local. Está a ajudar a Europa e seria irónico se
tivesse também de ajudar os Estados Unidos e o Brasil.
Além da racionalidade uma outra nossa obrigação é a solidariedade. O prefixo “pan” significa “todo, inteiro.” Falamos hoje muito de mundo
global, mas os mundos nacionais permanecem fechados em si. Se soubermos actuar
solidariamente, conseguiremos debelar a crise com maior brevidade, algo que a
União Europeia ainda não entendeu. A mesma acção conjunta é necessária para
enfrentar as alterações climáticas,
cuja premência pode hoje não ser tão evidente, só
porque as vítimas não se acumulam nos hospitais. Se não nos soubermos juntar,
não conseguiremos resolver os grandes problemas do mundo.
Carlos Fiolhais
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