sábado, 11 de abril de 2020

O HOMEM E OS VÍRUS


Meu artigo no último "As Artes entre as Letras" (na imagem, fotografia do tempo da gripe espanhola):

O biólogo molecular norte-americano Joshua Lederberg, que ganhou Prémio Nobel da Fisiologia ou Medicina em 1958 quando tinha apenas 33 anos pelas suas descobertas da evolução bacteriana sexuada, afirmou uma vez que “a  única grande ameaça ao continuado domínio do planeta pelo homem é o vírus” e noutra vez “podem vir aí catástrofes, vivemos numa competição evolucionária  com micróbios – bactérias e vírus. Não é garantido que sejamos os sobreviventes.”

Será que desta vez, com a doença provocada por um novo coronavírus, chegou a hora de se cumprir a profecia daquele cientista? Estou convencido que não. Neste momento estamos cientificamente muito mais avançados do que estávamos no final da década de 50 no nosso conhecimento dos nossos pequeníssimos rivais, graças aos biólogos que se sucederam a Lederberg. Talvez as inovações mais relevantes tenham vindo do domínio da genética. Em 1958 já se conhecia a estrutura em dupla hélice do ADN humano, embora há escassos cinco anos. Há cerca de quatro décadas sequenciámos pela primeira vez o ADN de um bacteriófago – e há duas décadas sequenciámos pela primeira vez o ADN humano. O novo vírus, de seu nome científico SARS-CoV-2, foi sequenciado por uma equipa chinesa cerca de um mês depois de terem surgido os primeiros casos da doença que ele causava, a COVID-19. O vírus não conhece o nosso genoma, mas nós conhecemos o genoma dele – é aliás graças a esse conhecimento que fazemos testes para identificar a sua presença no corpo humano, testes hoje banais mas que exigem instrumentos e métodos de biologia molecular.

A competição entre microrganismos e seres humanos é muito antiga. Na história evolutiva os vírus e bactérias, que se distinguem por os primeiros não serem vivos, são muito mais antigos do que o Homo sapiens. O seu convívio foi extraordinariamente incrementado quando as sociedades humanas, há cerca de 10.000 anos, passaram de caçadores-recolectores a agricultores, sedentarizando-se em povoações. Com efeito, a domesticação de plantas e animais tornou mais provável que alguns microorganismos existentes em animais passassem para  humanos: os vírus precisam de hospedeiros para o seu triunfo evolutivo. Mas, como são bastante estúpidos (não passa de uma “falsa notícia” aquela que propagou a inteligência do coronavírus), podem causar a morte dos seus hospedeiros, o que constitui para eles também o seu fim, a menos que se tenham espalhado antes. E, de facto, eles espalham-se de várias maneiras: por exemplo, ao espirrarmos quando estamos com gripe, uma doença comum causada por vírus.

Em cada pessoa infectada dá-se um intenso combate entre o seu sistema imunitário e os microorganismos em reprodução rápida (diz-se “incubação”). A febre significa que o corpo está a tentar atacar o vírus pelo aquecimento, uma vez que ele prefere temperaturas baixas. No caso que actualmente estamos a enfrentar, o nosso sistema imunitário consegue em geral ganhar, designadamente se a pessoa infectada não tiver idade muito avançada ou doenças debilitantes. Mas, infelizmente, nalguns casos, o ataque do invasor é rapidamente fatal.  No navio de cruzeiro britânico Diamond Press, que ficou de quarentena num porto japonês, 700 pessoas dos 3700 passageiros foram infectadas, tendo morrido 12, o que representa 1,7% dos infectados. Mas a taxa de letalidade nesse caso isolado (isolado é a palavra certa para o navio) está abaixo da que se conhece hoje à escala global: esta é 5,7%, muito maior do que a de uma simples  gripe, que se situa entre 0,01% e 0,1% (Trump e Bolsonaro revelaram a sua enorme ignorância quando minimizaram a letalidade do novo coronavírus!). De facto, essa taxa será menor se considerarmos o número real de doentes infectados, que, embora incerto, é muito maior do que o dos casos confirmados por meio da aplicação de testes. À hora a que escrevo acumulou-se um total de 1,4 milhões de pessoas infectadas no mundo, dos quais morreram 82 mil. Infelizmente, esses números continuam a crescer rapidamente, em todo o globo.

Esta pandemia, sendo controlável através das medidas de distanciamento social que estão a ser tomadas em muitos países, que devem ser combinadas por  redobrados cuidados de higiene, está a revelar-se uma das mais graves das últimas décadas. Pior, em tempos recentes, só  a SIDA, uma doença do sistema imunitário provocada pelo vírus HIV, que originou desde 1981 mais de 30 milhões de mortos. Mas, no passado, houve outras grandes pandemias: a gripe espanhola de 1918-1919, causada pelo vírus H1N1, numa altura em que não se sabia bem o que era um vírus (só nos anos 30 ele foi visto com um microscópio electrónico), deve ter causado cerca de 50 milhões de mortes no mundo, o que excede o número de mortos da Primeira Guerra Mundial; e a gripe asiática de 1957-1958, causada pelo vírus H2N2, que matou cerca de dois milhões de pessoas. Se na gripe espanhola não houve vacina que valesse a ninguém, os avanços da ciência permitiram desenvolver uma vacina para a gripe asiática que ajudou a conter a epidemia.

A história está cheia de epidemias, que em vários casos determinaram o rumo dos acontecimentos. Por exemplo,  em 1519 o espanhol Hernán Cortés desembarcou no México com 600 homens. O triunfo desse pequeno grupo deve-se muito ao espalhamento da varíola, que dizimou os aztecas, incluindo o seu imperador.  Os europeus tinham um grau de imunidade que os indígenas simplesmente não tinham. Não havia vacinas nessa época: a primeira vacina, palavra que  vem de vaca, foi desenvolvida pelo médico inglês Edward Jenner no final do século XVIII, quando notou que as mulheres que ordenhavam vacas ficavam imunes à varíola. Ocorreu-lhe injectar um pouco de pus da lesão de uma ordenhadora num rapazinho, que logo ganhou imunidade.

Várias equipas de cientistas estão actualmente a desenvolver uma vacina para a COVID-19. Já há protótipos, mas eles têm de ser testados num grande número de indivíduos para verificar tanto a segurança como a eficácia. Se uma vacina for descoberta e administrada rapidamente em suficiente quantidade, a doença ficará debelada. Não sabemos se e quando tal acontecerá. Mas, antes disso, podemos encontrar um antiviral adequado. De qualquer modo, as pandemias são sempre temporárias.
À hora a que escrevo há sinais de esperança: os números mais recentes de Itália, de Espanha e de Portugal parecem indicar que na Europa o pior já lá vai. Mas convém não baixar a guarda. Os vírus não são inteligentes, mas nós somos.

Carlos Fiolhais

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