Meu artigo no último "As Artes entre as Letras" (na imagem, fotografia do tempo da gripe espanhola):
O biólogo molecular
norte-americano Joshua Lederberg, que ganhou Prémio Nobel da Fisiologia ou
Medicina em 1958 quando tinha apenas 33 anos pelas suas descobertas da evolução
bacteriana sexuada, afirmou uma vez que “a
única grande ameaça ao continuado domínio do planeta pelo homem é o
vírus” e noutra vez “podem vir aí catástrofes, vivemos numa competição
evolucionária com micróbios – bactérias
e vírus. Não é garantido que sejamos os sobreviventes.”
Será que desta vez, com a doença
provocada por um novo coronavírus, chegou a hora de se cumprir a profecia
daquele cientista? Estou convencido que não. Neste momento estamos cientificamente
muito mais avançados do que estávamos no final da década de 50 no nosso
conhecimento dos nossos pequeníssimos rivais, graças aos biólogos que se
sucederam a Lederberg. Talvez as inovações mais relevantes tenham vindo do
domínio da genética. Em 1958 já se conhecia a estrutura em dupla hélice do ADN
humano, embora há escassos cinco anos. Há cerca de quatro décadas sequenciámos pela
primeira vez o ADN de um bacteriófago – e há duas décadas sequenciámos pela
primeira vez o ADN humano. O novo vírus, de seu nome científico SARS-CoV-2, foi
sequenciado por uma equipa chinesa cerca de um mês depois de terem surgido os
primeiros casos da doença que ele causava, a COVID-19. O vírus não conhece o
nosso genoma, mas nós conhecemos o genoma dele – é aliás graças a esse
conhecimento que fazemos testes para identificar a sua presença no corpo humano,
testes hoje banais mas que exigem instrumentos e métodos de biologia molecular.
A competição entre microrganismos
e seres humanos é muito antiga. Na história evolutiva os vírus e bactérias, que
se distinguem por os primeiros não serem vivos, são muito mais antigos do que o
Homo sapiens. O seu convívio foi extraordinariamente incrementado quando
as sociedades humanas, há cerca de 10.000 anos, passaram de
caçadores-recolectores a agricultores, sedentarizando-se em povoações. Com efeito,
a domesticação de plantas e animais tornou mais provável que alguns microorganismos
existentes em animais passassem para humanos:
os vírus precisam de hospedeiros para o seu triunfo evolutivo. Mas, como são bastante
estúpidos (não passa de uma “falsa notícia” aquela que propagou a inteligência
do coronavírus), podem causar a morte dos seus hospedeiros, o que constitui
para eles também o seu fim, a menos que se tenham espalhado antes. E, de facto,
eles espalham-se de várias maneiras: por exemplo, ao espirrarmos quando estamos
com gripe, uma doença comum causada por vírus.
Em cada pessoa infectada dá-se um
intenso combate entre o seu sistema imunitário e os microorganismos em
reprodução rápida (diz-se “incubação”). A febre significa que o corpo está a
tentar atacar o vírus pelo aquecimento, uma vez que ele prefere temperaturas
baixas. No caso que actualmente estamos a enfrentar, o nosso sistema imunitário
consegue em geral ganhar, designadamente se a pessoa infectada não tiver idade muito
avançada ou doenças debilitantes. Mas, infelizmente, nalguns casos, o ataque do
invasor é rapidamente fatal. No navio de
cruzeiro britânico Diamond Press, que ficou de quarentena num porto japonês,
700 pessoas dos 3700 passageiros foram infectadas, tendo morrido 12, o que
representa 1,7% dos infectados. Mas a taxa de letalidade nesse caso isolado (isolado
é a palavra certa para o navio) está abaixo da que se conhece hoje à escala
global: esta é 5,7%, muito maior do que a de uma simples gripe, que se situa entre 0,01% e 0,1% (Trump
e Bolsonaro revelaram a sua enorme ignorância quando minimizaram a letalidade
do novo coronavírus!). De facto, essa taxa será menor se considerarmos o número
real de doentes infectados, que, embora incerto, é muito maior do que o dos
casos confirmados por meio da aplicação de testes. À hora a que escrevo acumulou-se
um total de 1,4 milhões de pessoas infectadas no mundo, dos quais morreram 82
mil. Infelizmente, esses números continuam a crescer rapidamente, em todo o
globo.
Esta pandemia, sendo controlável
através das medidas de distanciamento social que estão a ser tomadas em muitos
países, que devem ser combinadas por redobrados
cuidados de higiene, está a revelar-se uma das mais graves das últimas décadas.
Pior, em tempos recentes, só a SIDA, uma
doença do sistema imunitário provocada pelo vírus HIV, que originou desde 1981
mais de 30 milhões de mortos. Mas, no passado, houve outras grandes pandemias:
a gripe espanhola de 1918-1919, causada pelo vírus H1N1, numa altura em que não
se sabia bem o que era um vírus (só nos anos 30 ele foi visto com um microscópio
electrónico), deve ter causado cerca de 50 milhões de mortes no mundo, o que excede
o número de mortos da Primeira Guerra Mundial; e a gripe asiática de 1957-1958,
causada pelo vírus H2N2, que matou cerca de dois milhões de pessoas. Se na
gripe espanhola não houve vacina que valesse a ninguém, os avanços da ciência
permitiram desenvolver uma vacina para a gripe asiática que ajudou a conter a
epidemia.
A história está cheia de
epidemias, que em vários casos determinaram o rumo dos acontecimentos. Por
exemplo, em 1519 o espanhol Hernán Cortés
desembarcou no México com 600 homens. O triunfo desse pequeno grupo deve-se
muito ao espalhamento da varíola, que dizimou os aztecas, incluindo o seu imperador.
Os europeus tinham um grau de imunidade
que os indígenas simplesmente não tinham. Não havia vacinas nessa época: a
primeira vacina, palavra que vem de
vaca, foi desenvolvida pelo médico inglês Edward Jenner no final do século
XVIII, quando notou que as mulheres que ordenhavam vacas ficavam imunes à varíola.
Ocorreu-lhe injectar um pouco de pus da lesão de uma ordenhadora num rapazinho,
que logo ganhou imunidade.
Várias equipas de cientistas
estão actualmente a desenvolver uma vacina para a COVID-19. Já há protótipos,
mas eles têm de ser testados num grande número de indivíduos para verificar
tanto a segurança como a eficácia. Se uma vacina for descoberta e administrada rapidamente
em suficiente quantidade, a doença ficará debelada. Não sabemos se e quando tal
acontecerá. Mas, antes disso, podemos encontrar um antiviral adequado. De
qualquer modo, as pandemias são sempre temporárias.
À hora a que escrevo há sinais de
esperança: os números mais recentes de Itália, de Espanha e de Portugal parecem
indicar que na Europa o pior já lá vai. Mas convém não baixar a guarda. Os
vírus não são inteligentes, mas nós somos.
Carlos Fiolhais
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