terça-feira, 28 de abril de 2020

O "novo normal" para acabar de vez com essa figura difusa que é a "escola tradicional"

Parto, neste apontamento, de um comentário do leitor Rui Ferreira.

Não há muito tempo, comecei a encontrar, sobretudo nos documentos da Organização para a Cooperação Económica (OCDE), a estranha expressão "new normal" aplicada à educação* percebi que ela traduzia uma estratégia muito concertada e, mais do que isso, radical, de "mudança de paradigma" - da "educação tradicional" para a "educação tecnologizada"**.

Em mais de um século, as múltiplas tentativas de romper com a "educação tradicional",  não foram/são consideradas satisfatórias: qual hidra de mil cabeças, sobreviveu, replicou-se, ampliou-se. Chegámos ao século XXI e ela mantém-se inabalável, diz-se.

Para grandes males, bem se sabe, grandes remédios. No caso, o remédio foi preparado, de modo muito concertado, ao mais alto nível, tendo sido fixada em finais de 2019, depois de mais de uma década de trabalho. Trata-se de uma orientação global para os sistemas educativos. Espera-se que todos a reconheçam e implementem.

Ou seja, espera-se que substitua/m decisiva e definitivamente a/s normalidade/s "tradicional/is", que se foi/ram construindo em função das múltiplas contingências que influenciam a educação escolar, reconheçamo-lo, com as suas imperfeições, fragilidades, erros, por certo, mas também, com as suas virtudes e potencialidades, por uma única e "nova normalidade", construída e dada como perfeita, terminada, logo, inquestionável.

Diz muito bem o leitor Rui Ferreira,
a escola tradicional de hoje contempla o novo e a inovação; foi capaz, e com distinção, de formar para o futuro (não esqueçamos que estes que se consideram bons e visionários foram todos eles formados na e pela escola tradicional).
E diz mais:
A (...) escola tradicional deve estar disponível somente para as elites. O que pretendem mesmo não é acabar com ela, antes querem guardá-la só para eles. A escola tradicional é perigosa porque tende a levar as pessoas a pensar.
Aqui digo: uma certa escola tradicional, antes de mais, que pressupõe uma relação pedagógica presencial, assumindo que o ensino (dos professores) é fundamental para que os alunos aprendam, que veicula conhecimentos diversos, incluindo os de humanidades e artes, que insiste em desenvolver capacidades cognitivas, afectivas e motoras, que tem por fim formar pessoas para o mundo... Estou convencida que esta escola não será, de facto, para todos (já não é): a esmagadora maioria de crianças e jovens obrigados a uma escolaridade, cada vez mais longa, passam/passarão (como se dizia nos anos oitenta e noventa, a propósito da educação tradicional) por "um modelo único pronto-a-vestir": o "novo normal".
________
* Traduzi a expressão para "nova normalidade" mas tenho-a visto traduzida por "novo normal". 

** Uso esta expressão (educação tecnologizada) para designar a educação, destituída de pensamento educativo e comandada por técnicas (modos de fazer) que são impostas sem outro argumento que não seja o da eficácia. Podem (ou não) estas técnicas integrar hardware e software inscrito nas novas tecnologias da informação e da comunicação.

6 comentários:

Anónimo disse...

As grandes interrogações filosóficas do Homem, de onde surgiu a Nova Ciência de Galileu, por exemplo, não podem ser atiradas para o caixote do lixo da nova escola normalizada. O Homem, onde se incluem os professores e os os alunos, é um animal racional. Sem partilha de raciocínios a escola é impossível.
Chamem-lhe instituição de solidariedade social, armazém de pessoas, repartição pública de emissão de diplomas,... escola, não!

Helder Martins disse...

"The new normal" representa, neste momento, pouco mais de nada na educação, a não ser uma determinada "agenda" a que está subterrânea a "OECD Future of Education and Skills 2030". Uma agenda colocada por um conjunto de nomes, entre os quais Andreas Schleicher, que se arrogam criar não apenas um novo paradigma, mas um novo padrão por explicar. O que aqui funciona, ali poderá ser inoperante. Criar mais uma noção globalizante gerida supranacionalmente não-sei-por-quem é mais uma forma de "newspeak" orwelliana, uma metáfora sem termo de comparação implícito.
A noção aparece frequentemente associada às novas tecnologias, a uma noção de Inteligência Artificial, que, quer se queira quer não, necessita sempre de uma relação pedagógica presencial fundamentalmente reguladora.
Apesar já ter lido alguns autores sobre o assunto (AI na educação), a apresentação de ideias sabe sempre a pouco e suscita mais dúvidas do que soluções. Deixo aqui algumas inquietações:
1. como se vai processar a transferência de conhecimentos;
2. quem vai regular o quê e como a transferir;
3. e, acima de tudo, têm os nossos jovens competências de autorregulação suficientes para se manterem neste "new normal".
Há muitas interrogações, mas como Byung-Chul Han, entre outros, em todo este processo há uma grande necessidade de mediação, - e na educação muito mais ainda. Não nos esqueçamos que tendências não são leis, como Karl Popper afirmou. Necessitamos de ações consistentes porque na educação a teoria do caos, no seu efeito borboleta, cria excessiva instabilidade, que é contrária à aprendizagem num jovem.

Rui Ferreira disse...

A permeabilidade que assiste a difusão deste tipo de documentos é gritante e revela bem o quanto ignorantes são aqueles que lhes suscita interesse na área da Educação.
O mais recente surgiu com o nome de "Manual de Apoio à Aprendizagem Flexível durante a Interrupção do Ensino Regular" e tem a chancela da UNESCO.
Depois de lido com atenção comentava assim:
Documento pertinente a considerar no âmbito de uma alternativa ocupacional, a ser promovido por recursos humanos que integrem os ATL ou similares.
Porquanto intervenção educativa, o mesmo se verifica como estéril. A título de exemplo, a utilização repetida da palavra pedagogia (ped=pai + agogein=arte de orientar) cujo significado anula qualquer aproximação construtivista (o aluno é o centro) no âmbito do processo de ensino e aprendizagem.
Faço uma pergunta: como é possível um organismo desta importância recorrer ao wikipédia (enciclopédia gerida pelos utilizadores onde a percentagem de encontrar mentiras é enorme) para argumentar as suas legítimas opiniões? Eu não queria acreditar quando no decurso da leitura dei com a citação. Ai de aluno meu do ensino secundário que o faça, já para não falar dos alunos que tenho numa licenciatura e num mestrado via ensino na universidade.

Helena Damião disse...

Caro Leitor
Agradeço-lhe esta informação. Não conhecia o documento.
Vou prestar-lhe atenção e disso darei conta dela no DRN.
Cordialmente,
MHDamião

Rui Baptista disse...

Dito em poucas palavras, é a total desumanização do ensino ao serviço de interesses do capital (compra de computadores e arsenal de despesas que isso comporta: tinteiros, consertos, etc.) e, em sentido contrário, domesticação dos alunos tonando-os acéfalos como convém a determinadas correntes políticas.

Seja-me desculpado o atrevimento, embora não querendo ir além da chinela, em me meter num assunto aqui tão brilhantemente defendido por especialistas das complexas Ciências da Educação, ou que delas se ocupam por amor à arte com engenho notável.

Socorro, a minha mulher tem um blog disse...

Da OCDE esperava uma posição mais comprometida com a Educação e mais honesta. Já não se aguenta o Senhor Schleicher. E ele publica muito e fala muito também. As tendências que Hélder Martins menciona no seu texto já aí estão; quem está atento já as identificou.

O BRASIL JUNTA-SE AOS PAÍSES QUE PROÍBEM OU RESTRINGEM OS TELEMÓVEIS NA SALA DE AULA E NA ESCOLA

A notícia é da Agência Lusa. Encontrei-a no jornal Expresso (ver aqui ). É, felizmente, quase igual a outras que temos registado no De Rerum...