quinta-feira, 23 de abril de 2020
COSMOS: MUNDOS POSSÍVEIS: UMA ESCADA ATÉ ÀS ESTRELAS
Neste Dia Mundial do Livro deixo aqui, para abrir o apetite para a obra, início do Cap. 1 de "Cosmos- Mundos Possiveis", de Ann Druyan, que a Gradiva acaba de publicar:
"Não sou eu que o digo, mas o mundo, que tudo é uno."
HERACLITO, CERCA DE 500 A. C.
"Neste grande futuro, não podes esquecer o teu passado."
BOB MARLEY, «NO WOMAN NO CRY»
"Ao longo de 99,9 por cento do tempo de existência da nossa espécie, fomos caçadores e recolectores [...] limitados apenas pela terra, pelo oceano e pelo céu [...] Nós, que nem o nosso lar planetário conseguimos pôr em ordem [...] vamos aventurar‑nos a viajar pelo espaço, a mover mundos, a modificar tecnologicamente outros planetas, a instalar‑nos em sistemas estelares próximos? [...] Na altura em que estivermos prontos para nos instalar nem que seja nos sistemas planetários mais próximos, já teremos mudado. Só por terem passado várias gerações já nos teremos modificado. Somos uma espécie adaptável. [...] Apesar de todos os nossos defeitos, apesar das nossas limitações e falhas, nós, seres humanos, somos capazes de grandeza [...] Onde terá a nossa espécie nómada chegado no fim do próximo século? E no fim do próximo milénio?"
CARL SAGAN, O PONTO AZUL‑CLARO |
Somos muito jovens, recém‑chegados à vastidão cósmica. Agarramo‑nos à nossa praia no oceano do cosmos como crianças que ainda mal sabem andar, afastamo‑nos uns passos da nossa mãe até que os nossos medos nos assaltam e voltamos para ela a correr em busca de protecção.
Há cerca de 50 anos fizemos meia dúzia de visitas à Lua, durante um breve período. Desde então as nossas viagens de exploração têm sido feitas por robôs. Em 1977, enviámos a Voyager 1, o nosso emissário robótico mais ousado, a uma distância de nós maior do que alguma vez tínhamos alcançado, para lá dos ventos emitidos pela nossa estrela, em direcção ao espaço interestelar.
Mas o Sol é apenas a estrela mais próxima. À velocidade de 60 mil quilómetros por hora, aproximadamente aquela a que se desloca a Voyager 1, seriam precisos quase 80 mil anos para chegar a Próxima do Centauro, a que está a menor distância a seguir ao Sol. Seria apenas uma viagem entre duas estrelas na Via Láctea, um grupo de centenas de milhares de milhões reunidas pela gravidade, e a Via Láctea é apenas uma de talvez um bilião de galáxias como a nossa — dois biliões, se contarmos com as galáxias anãs que entretanto se fundiram com outras maiores. Estas observações mostram‑nos um cosmos com triliões de estrelas, e provavelmente mil vezes mais mundos possíveis.
E estamos a falar apenas da parte do Universo que podemos ver. A maior parte do cosmos está escondida por trás das cortinas do tempo e da distância. A expansão inicial do tecido do espaço‑tempo, mais rápida que a luz, deixou uma parte imensa do Universo eternamente fora do alcance mesmo dos nossos telescópios mais poderosos. Existe ainda a possibilidade de todo o nosso Universo, um sítio de uma imensidão que chega a confundir‑nos, não passar de uma partícula minúscula num multiverso para lá da nossa imaginação. Não admira que nos sintamos assustados e nos agarremos à ilusão de que estamos no centro das coisas, à fantasia de que somos os filhos únicos do Criador. Perante essa realidade esmagadora, como podem seres como nós, que se perdem tantas vezes no que não passa afinal de um ponto, sentir‑se em casa no Universo?
Desde que somos humanos que contamos a nós mesmos histórias que nos ajudam a vencer o medo do escuro. A «escuridão» é uma qualidade, não uma quantidade. A noite no quarto de uma criança é um cosmos em si mesmo. A nossa espécie, movida por narrativas, encontra o seu caminho analisando o escuro com a ajuda de histórias. Antes de haver ciência não tínhamos forma de verificar essas histórias por confronto com a realidade. Deambulávamos no oceano do espaço‑tempo sem ideia de onde ou quando andávamos, até que muitas gerações de investigadores foram estabelecendo as nossas coordenadas.
A nossa última pista para a idade do Universo chegou‑nos do satélite Planck, da Agência Espacial Europeia, que observou o céu ao longo de mais de um ano, tempo durante o qual mediu meticulosamente a luz emitida quando o Universo não passava de um recém‑nascido, meros 380 mil anos após o big bang. A missão do Planck revelou um cosmos com 13,82 mil milhões de anos — mais 100 milhões de anos do que os cientistas pensavam.
Isto é uma das coisas de que gosto na ciência. Quando tivemos provas de que o Universo era um pouco mais velho do que imaginávamos, nenhum cientista tentou suprimi‑las. Assim que os novos dados foram verificados, toda a comunidade científica abraçou a nova visão das coisas que eles fundamentavam. A atitude permanentemente revolucionária, a abertura à mudança que está no centro da ciência, é o que a torna tão eficaz.
A história científica do tempo é tão longa que temos de a subdividir em segmentos mais humanos. O calendário cósmico traduz o tempo todo, esses 13,82 mil milhões de anos que tem a versão científica da História, em algo que somos capazes de abarcar, um simples ano de vida da Terra. O tempo começa no extremo superior esquerdo com o big bang, a 1 de Janeiro, e acaba à meia‑noite de 31 de Dezembro, no canto inferior direito. A esta escala, todos os meses representam um pouco mais de mil milhões de anos. Cada dia corresponde a 38 milhões de anos e cada hora a quase 2 milhões. Um único minuto cósmico são 26 mil anos. Um segundo cósmico corresponde a 440 anos, não muito mais que o tempo decorrido desde que Galileu olhou pela primeira vez através de um telescópio.
É por esta razão que o calendário cósmico é tão significativo para mim. Ao longo dos primeiros 9 mil milhões de anos não houve planeta Terra. Só depois de passados os primeiros dois terços do ano cósmico, lá para o fim do Verão, a 31 de Agosto, é que o nosso pequeno mundo começou a formar‑se com base no disco de gás e poeira que rodeia a nossa estrela. Nada do que constitui o nosso mundo existiu ao longo da maior parte da história do Universo. Por si só, isto já me parece uma razão profunda de humildade.
O nosso planeta foi seriamente maltratado ao longo dos seus primeiros mil milhões de anos de vida. No princípio, tudo isso fez parte das colisões entre os novos mundos que arrastavam a maior parte dos detritos que povoavam as suas órbitas. Mais tarde foi provavelmente o caos provocado no conjunto do sistema solar pela passagem de Júpiter e Saturno, com as suas enormes massas, através das órbitas dos outros planetas, que levaram muitos asteróides a sair das suas órbitas e a colidir com outros planetas e satélites.
Este bombardeamento intenso tardio, como é conhecido, ainda não tinha sequer acabado quando a vida começou, no fundo dos oceanos. Tudo boas notícias para aqueles que têm esperança que se venha a encontrar vida noutros pontos do Universo. A história da nossa estrela e dos seus mundos é provavelmente bastante comum no Universo. Os corpos que bombardearam a Terra podem ter sido um banal serviço de entregas dos ingredientes necessários à vida, e até do calor necessário para a pôr ao lume a cozinhar.
Pensa‑se que todos os seres vivos da Terra têm a mesma origem. Pensa‑se que tudo começou na escuridão das profundezas do oceano a 2 de Setembro, numa cidade perdida de torres de pedra no fundo do mar, uma história que contaremos em pormenor mais tarde. Dessa primeira vida fazia parte um mecanismo de cópia que permitia fazer mais vida. Era uma molécula, uma colecção de átomos em forma de escada de caracol, o ADN. Um dos seus grandes trunfos era a imperfeição. Por vezes cometia erros ao copiar, ou era danificada pelos raios cósmicos. Tudo isso era aleatório, mas algumas dessas mutações produziram formas de vida mais bem‑sucedidas — um processo a que chamamos evolução por selecção natural. Com isto a escada ia crescendo, acumulando cada vez mais degraus.
Foram precisos outros 3 mil milhões de anos para a vida evoluir a partir dos primeiros organismos unicelulares até assumir a forma de plantas que pudéssemos ver à vista desarmada. Só que não havia olhos para as ver. Ainda assim, já nessa altura havia consciência. Não é nenhum absurdo dizer que o organismo unicelular que sabe que «a ti como, a mim não» mostra já um certo grau de consciência.
(...)"
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