Num artigo de opinião, saído no jornal Público de dia 22 de Março com o título Uma nova ordem mundial: educação ideias e sociedade, António Carlos Cortez, professor e poeta português, apresenta argumentos que, tal como a entrevista de Nuccio Ordine, contribuem para reflectir sobre algumas ideias acerca da educação escolar defendidas num artigo de opinião a que antes aludimos: A oportunidade de ouro para criar as escolas do século XXI (ver também aqui). Diz Cortez:
Isaltina Martins e Maria Helena Damião
Reféns da economia computacional, maná do sistema global, assente nas redes sociais e na alienação da internet, diz-nos Bruno Patino num livro urgente (A Civilização do Peixe Vermelho, Gradiva, 2019) que é esse um dos sintomas mais evidentes da doença que (…) nos afecta. “A economia da atenção vai paulatinamente destruindo todas as nossas referências. [...] A perturbação da informação, as ‘notícias falsas’, a histerização do discurso público e a suspeição generalizada [espelham] o colapso da informação [...], a consequência primordial do regime económico escolhido pelos gigantes da Internet. O mercado da atenção forja a sociedade de todas as fadigas, informativas, democráticas. Faz com que se apaguem as luzes filosóficas em benefício dos sinais digitais” (p.15).
Julgo que é esta última imagem – a do apagar das Luzes em benefício dos sinais digitais – um dos pontos-chave neste tempo de clausura. De facto, este novo vírus (…) é uma terrível metáfora para este período em que vivemos (…).
Lucidez e coragem exigem-se, mais do que nunca.
Explorou-se até ao limite o que a Terra tem para dar e nas relações humanas, (…) ao nível do sistema educativo mundial, cai pela base a concepção de um ensino centrado na formação para o mercado de trabalho. Ao encerramento das escolas e universidades seria bom que se seguisse a sua reabertura, mas agora com currículos mais verdadeiramente pedagógicos: Música e Literatura, Artes e Direito, História das Mentalidades e Filosofia, e não a formatação de gerações inteiras (…) no rolo compressor de uma mentalidade gestora e de economistas que têm como única meta a exploração absoluta de tudo e de todos (…)
A covid-19 pode ser uma oportunidade para mudar. Mas, se insistirmos no mesmo paradigma, falharemos. Mais do que nos fazer reféns do teletrabalho, este tempo deve fazer-nos repensar a forma como todos nos estamos a relacionar desde que a Internet se tornou viral (as palavras não são vazias de sentido). No amor, nas relações profissionais, não estará doente a humanidade? (…)
Se é certo que, nesta fase, se impõe o dever de recolhimento doméstico, não sei se poderemos aceitar a domesticação pelo tele-trabalho (…).
O espelho mais cristalino dessa pandemia é o campo da educação dos mais novos, hoje autêntico rebanho de gente com uma mesma concepção de mundo. Mergulhados nos seus ecrãs, fechados para o mundo das ideias. Crê-se que, à custa desta quarentena de meses, a saída será o admirável mundo novo das tecnologias.
Mas não se compreende que o tempo da globalização veloz acabou? Que o hu-mano está a exigir um ritmo mais consentâneo com a sua humanidade, frágil e mortal? Acredito que a escola será das primeiras instituições a dar coordenadas novas no pós-coronavírus (…). É que a simples ideia de colocar milhares de alunos e professores numa espécie de ensino em rede, transformando o professor em mero tutor ou administrador de conteúdos, isso fere de morte aquele espírito das Luzes que, mais do que nunca, deveremos resgatar do olvido.
Ao coronavírus não queiramos acrescentar novas estirpes do vírus da alienação de que os sistemas educativos mundiais, visando o mercado de trabalho, criaram. Amestrar as nossas crianças e jovens – sem memória, sem linguagem, sem armas para combater com o pensamento livre esta fase nova da História – a pretexto do novo maná que seria um sistema de educação em rede, traduzir-se-ia (traduzir-se-á?) no apagamento definitivo de velha Europa.
Em nome de um ideal de sociedade mais fraterna, as políticas de ensino ancoradas na subserviência, no medo, no resultadismo mais nefando têm de ter um fim (…) queremos ser Europa da cultura letrada, da solidariedade, da democracia, fruto das Luzes. Substituir pelos sinais digitais os livros, as aulas por sessões em rede a isso nos obriga a covid-19: a mudar as mentalidades – não só a uma alteração de políticas."
1 comentário:
Se me dessem a escolher (se me fosse dado ou me tivessem dado a escolher), se houvesse verdadeiras alternativas à cultura da civilização à força, da liberdade de modelo único de organização política e económica e religiosa (todas as religiões são iguais, todos os partidos são iguais, todas as escolas são iguais...) eu teria escolhido não ter nada disso, teria escolhido ser selvagem e é a dor e a tristeza irremediável de nunca o ter podido ser, de me terem roubado a liberdade, de me terem sequestrado e raptado para as teias e para as celas e para os relógios e para os grilhões dos guardas omnipresentes, completamente domado, como um burro, ou um escravo, que ainda é acusado de ser escravo de si mesmo, obrigado a assistir ao filme interminável do seu triste filme, como se a sobrevivência fosse uma epopeia gloriosa, não sua, mas dessa tal civilização à força, que preconiza a liberdade... é a dor e a tristeza de nunca ter podido ser selvagem, dizia, que me impede de acreditar naquilo em que as sociedades humanas apostam em transformar as pessoas.
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