domingo, 1 de março de 2020

Algo não bate certo no que respeita à necessidade de contratação de professores no sistema educativo

Um artigo saído no Expresso em finais de 2017, da autoria da jornalista Isabel Leiria, retomava o estudo “Professores: uma profissão sem renovação à vista”, realizado por Isabel Flores e publicado algum tempo antes no relatório anual do Conselho Nacional de Educação (2016). O tema era a necessidade de professores no sistema educativo, no referente ao 3.º ciclo do ensino básico e ao ensino secundário. No artigo, cujo título reforça o da investigadora - "Candidatos a professor quase sem emprego a partir de 2020" -, dizia que: 
os alunos que entraram agora no ensino superior [em 2017/2018, portanto] ou que estão nos primeiros anos e que esperam vir a dar aulas podem vir a enfrentar grandes dificuldades de emprego, sobretudo se chegarem ao mercado de trabalho entre 2020 e 2025 [na década em que nos encontramos]. Nos cinco anos seguintes, as perspetivas devem melhorar um pouco, mas o “sistema não terá capacidade para absorver os 1500 novos professores que, por hipótese, se continuem a formar anualmente” (…) 
Os cálculos foram feitos com base no número de nascimentos em Portugal até 2017 e ponderando as elevadas taxas de insucesso (que mantém os alunos mais tempo no sistema), a escolaridade obrigatória até aos 18 anos e a redução do abandono escolar. Apesar de as estimativas preverem igualmente a reforma de “30 mil professores nos próximos 15 anos”, a dimensão da quebra da natalidade fará com que sejam precisos muito menos docentes: “apenas 13 mil novas entradas entre 2015 e 2030” para o 3.º ciclo e secundário, com a maioria a acontecer até 2020. Nos cinco anos seguintes, o número poderá ficar abaixo das 500 contratações para a totalidade desse período. Isto se (…) não houver alterações na organização do sistema, como mexidas no limite de estudantes por turma ou horários de trabalho dos professores.
O estudo em causa foi além do retrato geral: fez uma análise por disciplinas. O caso mais crítico no que respeita à necessidade de professores era Português, seguido da Matemática.

Num trabalho publicado no mesmo jornal em 8 de Fevereiro passado (ver "Primeiro caderno", pp. 20 e 21), Isabel Leiria e Raquel Albuquerque, retomam o tema de modo muito completo e aprofundado, dando, nomeadamente, conta da:

- dificuldade que os recém mestres em ensino (o mestrado é a habilitação mínima requerida para exercer a profissão) de certas áreas disciplinares encontram para entrarem no sistema, integrando o contingente de professores sem colocação;

- falta de professores de algumas áreas disciplinares de alguns ciclos de ensino;

- falta de professores (mais acentuada numas áreas disciplinares do que noutras) em zonas do país (sobretudo de Lisboa e do Algarve) onde o elevado custo de vida é incompatível com o salário;

- fadiga e  desânimo extremos dos professores que, sendo provocados por causas variadas, conduzem a baixas médicas frequentes e prolongadas, à reforma antecipada e, mesmo, à saída para outros empregos.

No artigo, Isabel Leiria explica, a partir de dados actuais, que o cenário em causa não é exclusiva do nosso país: a crise é generalizada na Europa e estende-se a outros continentes. Nas suas palavras:
Ainda que os problemas e as condições relacionadas com o exercício da profissão e o reconhecimento social sejam bastante diferentes de país para país, há características comuns que estão a levar quem já exerce ou está em fase de escolher uma profissão a afastar-se do ensino. Desde a remuneração às dificuldades na progressão na carreira, passando pelas tarefas burocráticas ou pela maior dificuldade em lidar com os comportamentos das novas gerações e de uma escola que tem de ser capaz de acolher todos os jovens.
A jornalista nota, ainda, o "silêncio do Ministério da Educação" de Portugal, dando conta das tentativas de contacto que fez para recolher uma posição da tutela, que se percebe como muito urgente. Isto mesmo quando no Programa de Governo se declara a intenção de, e cito:
elaborar um diagnóstico de necessidades docentes de curto e médio prazo (cinco a dez anos) e um plano de recrutamento que tenha em conta as mudanças em curso e as tendências da evolução na estrutura etária da sociedade e, em particular, o envelhecimento da classe.
Num artigo saído hoje, com título "A falta de professores e o futuro de Portugal", Vítor Aguiar e Silva detém-se no reconhecimento, que presumo ter sido muito recente, "por parte do Ministério da Educação da falta de professores habilitados pedagogicamente para a docência das diversas disciplinas do ensino básico e do ensino secundário" com destaque para o Português, algo que já tinha sido notado no estudo acima citado. Diz este professor da Universidade de Braga:
Na origem desta situação altamente preocupante, está o multiforme processo de degradação, nas duas últimas décadas, do estatuto profissional e social dos professores do ensino básico e do ensino secundário (...). Mal remunerados, com a vida familiar ameaçada pela instabilidade das colocações imprevisíveis, confrontados quotidianamente com populações discentes indisciplinadas, numerosos professores, mesmo prejudicados financeiramente, têm optado em grande número pela reforma antecipada. 
Por outro lado, muitos jovens que entram nas Universidades não escolhem cursos que habilitem para o exercício do magistério (...), porque o horizonte profissional é desmotivador. Com efeito, é desolador verificar, ano após ano, que são maioritariamente os alunos mediocremente classificados que se matriculam nos cursos de Letras e até de Ciências cujas saídas profissionais são o magistério no ensino básico e no ensino secundário. 
As próprias Universidades não têm investido, como seria necessário e desejável, na formação de professores, em clamoroso contraste com o que se verifica nas três últimas décadas do século XX (...) Sem uma mudança profunda nas políticas de formação de professores e nas políticas do exercício da actividade dos professores do ensino básico e do ensino secundário, é todo o futuro do desenvolvimento cultural, científico, social e económico do nosso País que fica hipotecado.
A informação que acima recuperei convive, aparentemente sem conflito, com as exacerbadas declarações sobre a importância dos professores, feitas ciclicamente por todas as entidades supranacionais que, mais do que se pronunciarem sobre o ensino, determinam as políticas públicas internacionais e nacionais. Por exemplo, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico, sobretudo quando dá conta dos resultados do PISA, diz, mais palavra menos palavra, o seguinte:
“os professores são o recurso mais importante das escolas”. Um professor “pode mudar vidas” e, nessa medida, não deve ser encarado como “um mero peão de uma cadeia de montagem” (ver, por exemplo, OCDE 2018).
O mesmo acontece por parte de Portugal, que tem patenteado em letra de lei - Decreto-Lei n.º 79/2014, de 14 de Maio - que aos professores cabe desempenhar a 
“nobre e exigente tarefa de ensinar”.
Como se percebe, algo não bate certo no que respeita à formação dos professores, às funções que lhe são atribuídas, ao modo como se reconhece o seu trabalho, etc. Mas isso faz parte de uma mistificação mais geral que é a da educação escolar, pensada à escola global e de cada país.

Algumas referências:
- CNE (2019). Regime de Seleção e Recrutamento do Pessoal Docente da Educação Pré-Escolar e Ensinos Básico e Secundário (Estudo solicitado pela Assembleia da República através da Deliberação n.º 4-PL/2018, de 25 de julho, publicada em Diário da Assembleia da República, II Série-A, n.º 145). Lisboa: CNE (aqui).
- DGEEC (2016). Perfil do docente 2014/2015. Lisboa: Direcção Geral de Estatísticas da Educação e Ciência.
- Flores, I. (2016). Professores: uma profissão sem renovação à vista. Conselho Nacional de Educação. Estado da Educação (pp). 348- 357. Lisboa: Conselho Nacional de Educação 
- OECD (2015). Who wants to become a teacher and why? OECD (aqui).
OCDE (2018). Effective Teacher Policies. Insights from PISA. OCDE (aqui
- OECD (2019). Education as glace? OECD (aqui).

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