Tomamos a liberdade de reproduzir um texto do classicista Frederico Lourenço, publicado online no passado dia 7, no qual disserta, a partir de diversas referências clássicas, sobre a designação do vírus que está a parar o mundo. A sua dissertação é particularmente relevante pelo facto de essa designação ser estranha à maioria da pessoas "a quem o ensino actual nega a possibilidade de estudar Grego e Latim".
Isaltina Martins e Maria Helena Damião
«Corōna» e «vīrus» em tempo de coronavírus
"Duas palavras gregas (com roupagem latina) dominam a actualidade mundial. Se, por um lado, a formulação que ouvimos todos os dias («coronavírus») fere os meus ouvidos de helenista/latinista - pois como é que um substantivo («corōna») pode qualificar outro substantivo («vīrus»)? -, por outro lado tenho-me entretido com os pensamentos ziguezagueantes sobre estas duas palavras, suscitados pela sua repetição permanente.
Sentado ontem ao balcão de um pequeno restaurante de Coimbra, enquanto o noticiário televisivo repetia em tons histéricos o nome «coronavírus», dei por mim a pensar como as palavras têm a sua história; e como as pessoas a quem o ensino actual nega a possibilidade de estudar Grego e Latim passam ao lado dessa história. Por via da herança grega e latina, palavras como «corōna» e «vīrus» têm uma história milenar, cuja viagem (pelo menos a reconstruível) começa com Homero e tem ponto de passagem no Novo Testamento.
À partida, quando olhamos para as palavras latinas «corōna» e «vīrus», diríamos que nada têm a ver uma com a outra: a primeira tem como sentido primário «grinalda», «coroa»; a segunda tem como sentido primário «veneno».
No entanto, na utilização mais antiga que se conhece destas duas palavras, elas estão estranhamente ligadas por um denominador comum: o arco do qual se disparam flechas.
À imagem do arco está associada a palavra grega «korōnē» (donde deriva em latim «corōna») desde a Ilíada, poema em que o termo serve para designar a ponta do arco. Por seu lado, a palavra latina «vīrus» é a forma itálica da palavra grega «īós» (que no tempo de Homero talvez ainda se pronunciasse «wīós»).
Esta palavra «īós», antepassada da nossa palavra «vírus», é objecto de fascínio para os helenistas, porque tem três sentidos à primeira vista diferentes: «flecha»; «veneno»; «ferrugem».
Podemos questionar hoje se, linguisticamente, a etimologia de «īós» no sentido de «flecha» é a mesma de «īós» no sentido de «veneno» e «ferrugem»; mas os antigos não tinham essa consciência.
Se perguntássemos a Homero a razão de as palavras para «flecha» e «veneno» serem homógrafas, ele responder-nos-ia certamente que, muitas vezes, as flechas são portadoras de veneno pelo facto de serem envenenadas. O arco do qual a primeira flecha da Ilíada é disparada (arco esse, justamente, cuja descrição no Canto 4 nos dá a primeira atestação da palavra «korōnē») é tacitamente suspeito de disparar flechas envenenadas. Porquê?
Porque o médico militar nesse canto da Ilíada, «quando viu a ferida, onde embatera a seta aguda, /chupou dela o sangue e, bom conhecedor, nela pôs fármacos / apaziguadores» (Ilíada 4.217-219).
Depois de Homero, «korōnē» e «īós» seguiram caminhos divergentes. No que diz respeito a «korōnē», há que referir a sua acepção ornitológica («corvo»), o que terá talvez conduzido à acepção de «coroa», quiçá inspirada pela crista de algum pássaro. No entanto, em grego a acepção de «coroa» é rara.
Quando os soldados romanos tecem uma coroa de espinhos para pôr na cabeça de Jesus, a palavra grega é «stéphanos» (στέφανος); na Vulgata, no entanto, lemos «corōna». Por seu lado, a palavra grega «īós» («veneno»), correspondente a «vīrus» em latim, está praticamente ausente do Novo Testamento, embora surja de modo curioso na Epístola de Tiago, onde a primeira ocorrência aponta para a acepção de «veneno» (Tiago 3:8) e a segunda para a acepção de «ferrugem» (5:2).
Note-se que a conotação associada a «īós» em grego é quase sempre negativa; mas temos uma excepção curiosa na expressão para designar o mel, que Píndaro inventa num dos seus poemas: «veneno [īós] inofensivo das abelhas». Também em latim, «vīrus» tem quase sempre uma conotação negativa; contudo, o poeta Estácio, no séc. I d.C., surpreende-nos ao referir um «vírus benigno» com propriedades medicinais, que pode ser colhido «nos campos dos Árabes» (Estácio, «Silvae», 1.4.104). Que «vīrus» será esse em concreto? Estácio não nos diz. O facto de lhe chamar «benigno» leva a crer que será bem diferente do nosso coronavírus, que, fiel à história mais antiga das palavras que o compõem, tem percorrido em flecha o mundo inteiro.
Um último pensamento: vários autores romanos (Horácio, Plínio [tio], Marcial) aplicaram ao substantivo «vírus» o adjectivo «grave».
Esperemos que este vírus que agora nos ocupa se reveja mais na sua identidade homérica de flecha... e que acabe por se tornar, já agora, como escreveu Píndaro, ἀμεμφής: inofensivo.
2 comentários:
Ideia de "Chico Esperto": tenho ideia que objectos ferrugentos estão, com ou sem razão, associados a doenças/infecções quando ferrem alguém, nomeadamente Tétano, daí serem "venenosos". Fica a ideia, para validarem.
[08:45, 02/08/2021] DIEGO Brito: 2 E vi um cavalo branco. O que estava montado nele tinha um arco*(toxon)*; foi-lhe dada uma coroa, e ele saiu vencendo e para completar a sua vitória.
[08:53, 02/08/2021] DIEGO Brito: A palavra arco em grego é "Toxon" e a etnologia da palavra é "Toxicon" Que quer dizer "flecha envenenada". Branco é a cor da paz... Mas também é a cor da "FARMAKIA" ou Farmácia/feitiçaria(ap.18:23) Eu estava lendo um artigo sobre essa palavra, lá dizia que os filósofos usavam essa palavra simbolizar Paixão ou Doente de paixão= Toxomania.
[08:58, 02/08/2021] DIEGO Brito: Se for real essa afirmação, o cavaleiro branco é a vacina. Pq lembro uma declaração de Macron que ele diz: A besta(sus/cavalo) dos eventos está aqui, e ela vem vindo. Ele se referia a pandemia.
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