Artigo de RODRIGO FURTADO* no Público de hoje (este blogue, com o título em latim, não pode deixar de estar inteiramente solidários com os dois Centros de Estudos Clássicos agora condenados à morte):
Destaque: Preferia que os responsáveis políticos dissessem explicitamente que não querem que haja Estudos Clássicos em Portugal. É mais honesto.
No país que gosta de encher a boca com a Grécia de Sophia, de elogiar Maria Helena da Rocha Pereira ou as traduções da Ilíada ou da Odisseia e que gosta de enfeitar alguns discursos com citações literárias e nomes de antanho, pelos vistos dois centros de Estudos Clássicos eram de mais; ou então o trabalho que faziam era de menos; ou então, por certo, sem interesse…
Foi isso que a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) veio dizer na avaliação que conheceu mais uma etapa na passada sexta-feira. Ambos os centros de Estudos Clássicos portugueses tiveram a classificação de Bom. Como me perguntava um amigo: “E isso é bom, razoável ou mau?” É mau. O Centro de Estudos Clássicos de Lisboa viverá com 7500 euros por ano daqui para a frente, para organizar congressos internacionais, para promover a investigação em Estudos Clássicos e a internacionalização, para assegurar uma pós-graduação de qualidade e para comprar livros… e ainda pagar à única funcionária a tempo inteiro que tinha.
Entendamo-nos desde já: não é apenas a classificação que me indigna. Em primeiro lugar, é o facto de ela não ter de facto sido decidida por pares, como o senhor presidente da FCT propalou aos sete ventos. O Centro de Estudos Clássicos até podia ter/ser apenas “Good”; mas que fosse um classicista reconhecido a dizê-lo – isto era o mínimo. Os Estudos Clássicos foram avaliados por um painel de 16 especialistas, onde abundam escandinavos, ingleses e irlandeses, todos, como será de calcular, profundos conhecedores da realidade portuguesa. Entre estes, há um psicólogo, um linguista, uns historiadores, pelo menos uns três ou quatro especialistas de estudos comparatistas. Mas de Clássicas? Zero. A pessoa mais próxima parece ser um arqueólogo polaco do Paleolítico do Báltico de quem nunca ouvi falar. Não sei, mas duvido muito, se ele (ou qualquer um dos outros) admitiria que dependesse de um classicista de Lisboa o relatório final sobre a sua investigação.
Pelo menos o relatório que foi aprovado pelo painel é bom, útil e ajustado? Afinal, estas 16 personalidades são por certo sumidades das humanidades. Se são, não se nota no relatório mal amanhado que foi divulgado: é de uma completa indigência, com erros de facto, indigno de qualquer aluno de licenciatura, quanto mais de um painel de supostos especialistas – preguiçosamente, confundem uma professora italiana com uma portuguesa (bastava terem digitado o nome no Google e apareceria a sua página pessoal); ou, por exemplo, acham que editar textos inéditos escritos em Latim por mulheres no Renascimento é capaz de não ter assim tanta importância.
Sob capa de aparente justiça e independência, tudo isto mostra um extraordinário desprezo pelas humanidades em geral e pelos Estudos Clássicos em particular: no mundo do doutor Miguel Seabra, não há pelos vistos muito lugar para estes helenistas e latinistas que estudam umas coisas bafientas que não se cultivam nas provetas de laboratório, nem se experimentam nas culturas in vitro (olha uma expressão latina), que dão pouco dinheiro e não criam grande riqueza; além do que avaliar classicistas pode muito bem ser entregue a uns especialistas de Literaturas Comparadas ou de Linguística Eslava – no fundo, toda a gente sabe que isso das literaturas, artes e culturas é tudo a mesma coisa e um tipo que tenha lido Balzac ou escreva sobre parques e jardins pode muito bem propor a sentença de morte a uma área de investigação em Portugal que se dedica a umas tretas a que só convém talvez voltar nas comemorações serôdias do regime.
Há nesta FCT uma visão pobre e ideológica do que é a ciência: agora é produção; é publicação e bibliometria; são os grandes laboratórios e as ciências da saúde; as multinacionais que financiam e condicionam a investigação e as fundações privadas que vivem dos fundos do Estado; as grandes equipas e a competitividade – como se qualquer centro de humanidades em Portugal, qualquer que ele seja, já oferecesse as mesmas possibilidades, as mesmas bibliotecas ou sequer condições de acolhimento semelhantes às de um centro de investigação em Munique ou Cambridge. Basta, aliás, já ter ido a alguns destes sítios para compreender toda a ficção que está por trás destes pressupostos.
Como classicista, e já o disse uma vez a uma assessora deste ministro da Educação e Ciência, eu até preferia que os responsáveis políticos dissessem explicitamente que não querem que haja Estudos Clássicos em Portugal – que não vêem interesse neles; que não têm dinheiro para investir nesta área; que tanto se lhes dá que haja alguém que seja capaz de estudar e de ler textos em grego e em latim. Mas digam-no explicitamente; digam que é esse o vosso projecto. É mais honesto. E, já agora, não teçam loas de regime ou de ocasião aos nossos maiores: é ridículo e pouco sério.
*Professor da Faculdade de Letras de Lisboa
Na imagem: Sophia de Mello Breyner Andresen
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