A pergunta tem toda a
pertinência. Vivemos num mundo cada vez mais acelerado e fragmentado no qual a Matemática parece relativamente irrelevante no dia-a-dia. Afinal
de contas, ninguém precisa de resolver uma equação do segundo grau para falar
ao telefone, ouvir um CD, ligar a televisão ou trabalhar com o computador.
No entanto, esta aparência
é completamente enganadora. Afirmar que a matemática é inútil seria como dizer que um carro, para funcionar,
não precisa de peças mecânicas, só porque estas não se vêem. A verdade é bem diferente: o mundo moderno
seria impossível sem uma Matemática sofisticada e muitíssimo avançada. O facto
de nem darmos pela sua presença quando ligamos o telemóvel ou o computador
significa apenas que ela está convenientemente acondicionada para não exigir,
da parte do utilizador, o seu conhecimento - tal como não é necessário dominar
a mecânica automóvel para conduzir um carro.
A importância crescente da
Matemática no mundo actual prende-se, antes do mas, com razões de ordem prática. Desde a Revolução Científica do
século XVII que se descobriu que as leis da Natureza têm formulação matemática;
e essa compreensão quantitativa permite, além de compreender o Universo, agir sobre ele. Assim,
as aplicações da Matemática surgem como uma ferramenta essencial na construção
de aplicações da ciência à Tecnologia e ao mundo real. Esta é a primeira
e grande justificação do interesse que a sociedade deve ter no desenvolvimento
da Matemática.
São especialmente ilustrativos alguns exemplos concretos retirados
da vida diária e que se baseiam na
Matemática das últimas duas ou três décadas. Como pode uma quantidade
gigantesca de informação, quando se descarrega através da Internet uma imagem, viajar
meio mundo em poucos segundos? A resposta está na Matemática, neste caso na
compressão de ficheiros. Esta é realizada por meio de um algoritmo, o mais
usual dos quais utiliza objectos
matemáticos chamados wavelets (onduletas), cujo desenvolvimento tem cerca
de duas décadas. Para os amantes de música que ainda se lembram dos discos de
vinil não será de estranhar que um CD ou DVD suporte maus tratos traduzidos em riscos
sem perder a qualidade, quando num disco de vinil bastava um pouco de poeira
para se notar ruído de fundo, a chamada “batata frita”, e um risco era
simplesmente o seu fim? A resposta é que
a gravação em CD ou DVD é digital – ou seja, transcrita para um sistema
matemático de base 2 – e incorpora estrategicamente segmentos de “códigos
correctores de erros”. Sendo assim, mesmo que um bit de um segmento da
gravação seja deteriorado por acidente, o segmento de controlo detecta e
corrige os erros de forma automática, de modo que o ouvinte (no caso de
música) ou espectador (no caso de imagem) não se apercebe de nada.
Como podem existir transacções seguras na
Internet, as quais permitem comunicar
com bancos e fazer pagamentos na Web “em modo seguro”? Por causa dos números
primos. O método de comunicações seguras via Internet (ou através de outro
canal digital) baseia-se no facto de que multiplicar dois números é “fácil”, ao
passo quer a operação inversa de factorização (isto é, de encontrar os factores
primos) é “difícil”. O algoritmo que implementa este facto matemático na
segurança das comunicações, chamado RSA: foi criado pelos matemáticos Rivest,
Shamir e Adleman em 1978 e o seu paradigma é conhecido como “criptografia de
chave pública”.
A ideia é subtil. Em vez de haver, como
aconteceu de César até Hitler, transmissão secreta entre emissor e receptor da
chave de encriptação e descriptação, com os inerentes riscos de intercepção,
nos sistemas de chave pública o paradigma é diferente. O receptor fornece
publicamente, a todo o mundo, uma chave de encriptação, formada pelo produto
de dois números primos gigantescos só de conhecidos. Qualquer emissor
consegue encriptar qualquer mensagem, por exemplo, o seu número de cartão de
crédito, por meio desse número. Contudo, apenas o receptor da mensagem possui a factorização em primos
desse número gigantesco. Assim, o receptor consegue facilmente desencriptar a
mensagem. A sua eventual intercepção em trânsito por terceiros com intenções
maliciosas revelar-se-á inútil: não existe um método matemático
“simples” de factorização, pelo que o respectivo conteúdo permanecerá
indecifrável. A transmissão da mensagem é, portanto, “segura”. Tudo isto se
passa de forma automática, sem que o utilizador se aperceba de nada, a não ser
talvez do aparecimento de um pequeno cadeado amarelo no canto inferior direito
do seu ecrã– tal como não se apercebe dos complexos mecanismos
accionados de cada vez que gira a chave de ignição do seu automóvel. Mas quando
vê o cadeado, acabou de accionar o referido mecanismo matemático de “criptografia por
chave pública”.
E
os exemplos podiam multiplicar-se. Desde a Bioquímica e Farmacologia actuais,
em que a função das biomoléculas é, em primeiro lugar, estudada por simulação
computacional, à Meteorologia e Climatologia, em que as previsões são
realizadas com base em equações diferenciais parciais (as equações de
Navier-Stokes) cujos modelos matemáticos são resolvidos numericamente nos
maiores supercomputadores do mundo; à optimização de operações de logística de
distribuição, desde complexas operações militares à optimização da localização
de armazéns para uma cadeia de retalho – não é exagerado afirmar que todo o
funcionamento do mundo contemporâneo se baseia em aplicações significativas da
Matemática.
Jorge Buescu
Jorge Buescu
4 comentários:
Assim (e basicamente) o mundo dito
"desenvolvido" tornou-se numa massa imensa de
ignorantes que se fartam de usar (ou de
usufruir de) matemática profunda, sem o (ou
sem a) saber.
Nada (me) admiraria que surja por aí (ou até
que já haja) uma qualquer "inovação
pedagógica" a justificar - a "demonstrar" -
que o ensino da matemática é, afinal, inútil.
E desse modo podemos ignorar Buescus, Cratos e
outros, pois que assim nos (a)basta(rda)mos...
Gato escaldado...
Parabéns pelo teu novo livro, Jorge, que irei ler com muito interesse. Por coincidência, só ontem comecei a ler o teu Casamentos e Outros Desencontros, e fiquei logo encantado com a introdução e o primeiro capítulo.
Os jovens portugueses de hoje têm muita sorte. No meu tempo, a ciência era coisa que só se fazia no estrangeiro. A ideia de uma carreira científica real em Portugal era pura ficção. O que se fazia nas escolas e universidades era uma caricatura da ciência que eu lia nos livros estrangeiros. Hoje as coisas mudaram e temos cientistas normais, iguais aos que existem nos países mais desenvolvidos. E ainda por cima esses cientistas, como o Jorge, o Carlos Fiolhais, o Nuno Crato e outros, dão-se ao trabalho de publicar maravilhosos livros de divulgação, que certamente fazem a diferença para muitos jovens. Infelizmente, a revolução científica que chegou a Portugal tarde mas chegou, ainda não chegou à filosofia. Não só não temos um só académico com currículos comparáveis a todos estes cientistas, como continuam a desprezar a divulgação da filosofia. Na filosofia, estamos ainda na idade das trevas, infelizmente.
Estimado professor Desidério Murcho é por vezes que os anseios são despropósitos a que a philosofia estende-se (compeende-se) como co(n)solo ao imediatismo humano. Foram arguns posts, de vossa dedicação e do alcance em estudá-los em firma princípio:
O navio de Teseu é inspiração para um paradoxo e conforme relato de Plutarco:...entre os filósofos a respeito de coisas que crescem...
Professor Jorge Buesco;
Permita-me que acrescente, em forma de comentário, um estrato de uma entrevista dada pela Professora Madalena Garcia na Gazeta de Matemática – Janeiro de 2003 – nº 144;
“Na sociedade actual, com a rapidez do mundo tecnológico onde tudo se processa a ritmo acelerado, o “sucesso” é apresentado como obtido de forma rápida, não sendo valorizado o esforço e a persistência.
Não é de estranhar que, neste contexto, a Matemática surja como obstáculo quase intransponível ou apenas ao alcance de número muito reduzido de indivíduos.
Esta ideia, completamente errada, deve ser combatida. A Matemática deverá surgir entre estudantes e pais como ciência ligada à vida, necessária e útil. A sua aprendizagem, acessível a quase todos, longe de ter como objectivo apenas automatismos e terias abstractas, tem um papel fundamental na formação de cidadãos conscientes, capazes da desejável e cada vez mais indispensável educação permanente e co-responsáveis na construção do mundo novo em que terão de viver. ”
Cordialmente,
Nota: Espero poder comprar o seu livro;
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