domingo, 27 de maio de 2012

A cultura do inumano

«Outro aspeto que torna desumanos os direitos culturais é o facto de a condição cultural árabe, judaica, muçulmana, corsa, basca, sérvia, americana, ocidental, etc, os colocarem acima da condição humana. É aqui que a ilusão cultural provoca os maiores estragos: quando acreditamos que somos humanos apenas por temos uma cultura e não por natureza, sempre que encerramos a dignidade humana na sua origem étnica, religiosa, nacional ou imperial. Deixamos então de entender a expressão “cultura” como um aperfeiçoamento livre de nós próprios, mas como uma entrega da consciência a um primado determinista» (Hélé Béji, 2006).

Um post recente em que Helena Damião critica, com oportunidade, a oferta de proposta curriculares, por parte do Ministério da Educação, centradas em “culturas” específicas, por essas ofertas colidirem com valores fundamentais, levou-me a recordar um texto de Hélé Béji, intelectual tunisina, antiga professora da Faculdade de Tunis e fundadora do Colégio Internacional desta cidade, que tem investigado sobretudo nas áreas da antropologia e da descolonização.

Uma das características mais perturbantes da pós-modernidade é a multiplicidade das racionalidades num processo de atomização da razão que a própria razão não compreende. Sobretudo se se faz assentar num multiculturalismo, provocador de inúmeras centralidades, e numa espécie de atomização conflituante, quando é certo que é a própria razão cultural que compreende, aceita e promove o referido multiculturalismo.

A emergência e valorização das mais diversas culturas pela descentralização que fazem da tradicional cultura europeia são, obviamente, um factor positivo. «Os povos descolonizados souberam provocar o renascimento da sua tradição voltando a encontrar o seu ponto cardeal, o seu Oriente (“orientar” significa etimologicamente implantar um edifício na direção do Oriente). Foi deste modo que apareceram os conceitos de negritude, arabismo, judaísmo, islamismo, etc. que, recordo, exemplificam paradoxalmente a própria filosofia das Luzes, no seu princípio do direito a governar-se a si próprio» (Hélé Béji, 2006, 59).

A valorização das realidades culturais, correndo paralelamente à reivindicação emancipatória dos antigos povos colonizados ou dependentes do modelo ocidental, conduziu a que diversos movimentos edificassem uma poderosa fundamentação ideológica, em boa medida assente em especificidades dessas realidades. Os estudos de etnologia e de etnografia vieram, por outro lado, sensibilizar para tais especificidade e, portanto, para a razão de ser de cada uma delas, aceitando e promovendo a sua dignificação.

Mas, por má consciência nossa ou por efeito dos movimentos de pêndulo a que certas coisas estão sujeitas, o Ocidente tem-se desmobilizado do sentido crítico, da racionalidade, de modelos intelectuais, de padrões estéticos, de valores morais, enfim, de um conjunto de níveis (logo, de exigências) a que a humanidade chegou. Com essa desmobilização desvitalizamos os referentes, enfraquecemo-los, fazemo-los regredir…

Passada a fase de penitência a que o Ocidente europeu se submeteu por consciência de culpa, de muitos, e de rancor transformado em ideologia, de muitos outros, é altura de recuperarmos o equilíbrio. Porque, se as especificidades culturais são um factor de identidade dos povos, podem ser também razão para o enclausuramento de todos, e de domínio da maioria por pequenos grupos de fervorosos sacerdotes laicos transformados em opressores tão obscurantistas quanto aqueles que combateram. «O pluralismo, a diversidade e a diferença, à partida tão fecundos, tornam-se germes de discriminação, tão virulentos e intolerantes como uma ideologia racial», diz Hélé Bedji.

E, mais, podem transformar-se numa blindagem à circulação das ideias e à análise das razões, transformando-se em fatores de alienação: «Como a cultura se substituiu ao racial, cada cultura, forte ou fraca, é atualmente uma apologia de si mesmo, que nenhuma razão consegue criticar, uma vez que cada uma reclama a sua própria razão. Já nenhuma neutralidade consegue arbitrar, uma vez que cada cultura fixa as suas próprias regras de jogo; já nenhuma lei consegue julgar, uma vez que cada cultura cria os seus próprios direitos a partir das suas próprias convicções».

Todos nós temos sido confrontados com o poder afirmativo e até arrogante de certas “tradições”, frequentemente contra toda a lógica e toda a racionalidade, como afirmação de um “direito” que ninguém tem o direito de contestar, ou que a irracionalidade mantém, impante e incontestável. Mesmo quando não se trata de tradição alguma, é uma invencionice de última hora, ou é o resultado de uma escolha arbitrária de pessoas ou grupos.

Há exemplos para todos os gostos, desde as praxes académicas em universidades de tenra idade até aos touros de morte em Barrancos; desde a circuncisão dos rapazes e a ablação do clitóris às raparigas, na África, aos abortos dos fetos femininos, na Índia, porque as ecografias já permitem evitar o antigo assassínio das crianças de sexo feminino. Tudo “tradições” ou especificidades culturais que uma mentalidade cultivada e evoluída não encontra razões para poder aceitar. Como diz, ainda, Hélé Béji: «O despertar das tradições desnaturou-se, porque os direitos da tradição são muitas vezes utilizados, nos países descolonizados, não para fins de igualdade e de liberdade, mas de submissão, de obediência e de medo.

Esquecemo-nos, com demasiada frequência, de dizer que o islamismo armado fez muitas mais vítimas nos próprios países muçulmanos do que nos cristãos (contam-se mais de 100.000 mortos na Argélia). Conclui-se que o pertencer a uma mesma cultura ou a uma mesma religião não é uma garantia de tolerância ou de felicidade política».

O Ministério da Educação tem pois de ter cuidado com estas coisas. As questões de educação são mais complexas e importantes que o simples e cómodo seguir o politicamente correto e ir atrás da “evidência” das ideias feitas. Para isso temos que chegue na maior parte da comunicação social, nos políticos demagogos e em todos os opinadores de esquina. Educar é exigir inteligente e adequadamente a partir de padrões de qualidade. E os níveis culturais e humanísticos a que chegámos foram obtidos à custa de inumeráveis esforços, trabalhos e desejos de perfeição, não podendo, pois, ser deixados à guarda de mentalidades levianas, desleixadas ou incultas.

Efectivamente, o Ocidente tem que (voltar a) capacitar-se de que, apesar das desgraças do Mundo, muitas provocadas por ele, serem um fator recorrente, há enormes progressos, não só nos domínios científicos e tecnológicos, mas também ao nível dos valores civilizacionais, alguns dos quais estão na base dos próprios movimentos de libertação de povos submetidos, europeus e outros. Na base desses valores está a razão e os seus princípios de pensamento e a possibilidade maravilhosa de todos os seres humanos se entenderem.

Há, pois, valores a que a Humanidade já chegou, que dão de nós uma ideia e que nos projetam para níveis superiores aos de cada cultura, enquanto entidade idiossincrática. Ora isto, pela sua vocação universalizante constitui um fator de valorização e de defesa de cada ser humano e de todos os seres humanos. É bom que quem tem responsabilidades educativas não se esqueça disso.

Referência: Béji. H. (2006). A cultura do inumano. In Jérôme Bindé. Para onde vão os valores? Lisboa: Instituo Piaget, 57-64.  

João Boavida

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