sábado, 19 de maio de 2012

Depoimento de um Aluno da ex-Escola Industrial e Comercial da Figueira da Foz


Na imagem: fachada da antiga Escola Industrial e Comercial da Figueira da Foz, actual Escola Secundária Dr. Bernardino Machado.

“Há diplomas universitários para procuradores, diplomas para músicos, diplomas para pintores, diplomas para técnicos de máquinas, diplomas para guarda-livros, diplomas para toda a gente que não é nenhuma destas coisas, diplomas que dão o direito a usar uma palavrinha antes do nome, embora não obriguem a saber fazer coisa alguma” (António José Saraiva, 1917-1993).

A temática por mim abordada neste blogue, “Cursos Técnicos X Bobagens Académicas” (15/05/2012), merece ser enriquecida com a carta de um leitor ao “Diário de Coimbra”, em apoio a  um meu artigo de opinião também aí publicado, intitulado  “A morte do ensino técnico“ (14/01/2007).  Por essa carta, “SOS para o ensino escolar” (18/01/2007), assinada por António Brandão Faria, da Figueira da Foz, ser credora, igualmente,  de um agradecimento, ainda que tardio, aqui  a transcrevo:

 “Há dias passou-me pelos olhos um artigo no ‘Diário de Coimbra’ e vejo-me na obrigação de dizer ao seu autor: Obrigado pela clarividência do artigo e que os responsáveis pelo ensino deste país aproveitem e dele tirem ilações.

É que eu passei pela Antiga Escola Comercial e Industrial da Figueira da Foz nos anos de 39 a 1942 e sinto dentro de mim a realidade desse precioso artigo. Custa dizer certas verdades, mas elas têm que ser ditas, doa a quem doer.

Foi uma das muitas asneiras do 25 de Abril acabarem com o verdadeiro ensino praticado nas Escolas Comerciais e Industriais [em acto de justiça e ressalva minha, a extinção do antigo ensino técnico deu-se anteriormente a 25 de Abril,  durante o consulado de Veiga Simão à frente do então Ministério da Educação], pois, verdadeiramente, saíram de lá electricistas, carpinteiros, pintores de arte, serralheiros, pintores para a construção civil, técnicos competentes para no futuro estarem à frente de escritórios de pequenas e grandes empresas, acabando até em Mestres e Professores.

Agora o ensino é outro, só se fazem engenheiros, doutores, administradores, consultores, gestores, etc., para, ao fim e ao cabo, alguns nem categoria e competência terem para os lugares que ocupam (mas também há algumas excepções). Pena é que, ao passarem-lhe o papel para exercerem essas responsabilidades, não haja a coragem de verem se há ou não competência para ocuparem certos lugares. Estas são algumas verdades que custam a engolir e são razões para se compreender a razão do nosso país estar, como está, último na Europa e quase no mundo.

(…) Olhem, afinal, procurei e vi que o artigo é do dia 14/01/07, Domingo, valendo a pena ler e meditar no mesmo. Mais uma vez obrigado e parabéns ao seu autor”.

Esta carta prova que o Portugal do nosso tempo ainda se não libertou de uma situação que António José Saraiva  - segundo José Mattoso,  “um dos espíritos mais brilhantes da cultura portuguesa contemporânea” – teve como “A Diplomocracia”, em título de artigo de opinião (“Diário de Notícias”, 31/08/1979).  Com grande pesar meu e prejuízo para os leitores, lamento não ser esta peça literária transcrita na íntegra, devido à sua extensão, dela extraindo, portanto, alguns  nacos de uma suculenta crítica social. Assim:

“Portugal vive há séculos na superstição da palavra ‘doutor’. Já desde os fins da Idade Média o título de licenciado dava direito a carta de nobreza, e com a decadência dos títulos nobiliárquicos valorizou-se o diploma universitário. As famílias remediadas por essas aldeias sacrificavam-se para ter um filho ‘doutor’, mesmo que não fizesse nada senão viver dos rendimentos. Os ‘doutores’ no Parlamento e na administração eram os agentes da burguesia rural, camada dirigente do País.

Criou-se desta maneira uma hierarquização do País entre ‘doutores’ e não ‘doutores’, entre os portugueses com voz activa e os portugueses com voz passiva. E pela tendência geral das sociedades democráticas os da segunda categoria passaram a querer pertencer à primeira. Não para ter mais conhecimento ou para serem mais esclarecidos mas para não serem menos do que os outros, Não é a igualdade da cultura que se busca, mas a igualdade de estatuto, através da posse do diploma.

(…) Todo o indivíduo, desde que tenha a qualificação oficial competente, pode passar um diploma. É só rabiscar e estampar um selo branco. Criem-se institutos universitários compostos por um chefe, um oficial de secretaria e um contínuo. Em rigor todos os administradores de concelho, e até mesmo todos os regedores de freguesia, estão habilitados a passar títulos de doutor, visto que se trata de uma questão de estatuto social e não de estudos
.
(…) É um facto que o diploma é uma instituição que fundamentalmente serve para dividir os portugueses em cidadãos de primeira e cidadãos de segunda. Quanto à outra função de preparar para certos cargos, essa é apenas um pretexto. Com um pouco de orientação familiar, protecção do clã e ausência de personalidade, todo o indivíduo sem aptidões específicas chega a possuir um diploma. De onde resulta que o exercício de qualquer actividade não supõe qualquer aptidão específica, mas a posse de um papel administrativo que se obtém com um certo ritual. Do ponto de vista do antropólogo, o processo de obtenção do diploma é o rito de iniciação das sociedades modernas, mas esse rito é o que menos qualidades exige. Apagamento, passividade, falta de curiosidade viva, conformismo e por vezes um certo oportunismo são as qualidades que asseguram o sucesso académico”.
Sem pretender forçar a nota, encontram-se aqui bem retratadas as actuais “Novas Oportunidades” por mim crismadas, em artigos de jornais e posts neste blogue, de “Novos Oportunismos”. Acontece que, em contrapartida digna do maior louvor, esforçados autodidactas (não aqueles definidos, pelo escritor e poeta brasileiro Mário Quintana, como ignorantes por conta própria), vultos enormes da cultura portuguesa, como os historiadores  Alexandre Herculano e Oliveira Martins e o distinto linguista Francisco Adolfo Coelho, não eram portadores  de diplomas de estudos superiores. De entre os romancistas de renome, enuncio os nomes de Ferreira de Castro, o festejado autor de “A Selva”, apenas tendo com habilitação a 4.ª classe do ensino primário,  e José Saramago,  diplomado com o  antigo curso industrial,  o que os não impediu da lei da morte se libertarem, em paráfrase de “Os Lusíadas”.

 Mas voltando a António José Saraiva, o seu texto foi profético, embora Mark Twain nos tenha dito que “a profecia é algo muito difícil, especialmente em relação ao futuro”, para com o que hoje se passa em  alguns cursos universitários privados que vendem   diplomas de licenciatura com a intenção de atribuir  um estatuto social que, por vezes, e por si só, os elevados  cargos políticos não garantem sem este “brasão” de intelectual,  ostentado por quem o merece  e quem não o merece, e atribuido a quem o não é, mas que convém que seja ainda que o não seja!  Desta forma, criaram-se   universidades  privadas  a granel que são um verdadeiro escândalo pela ausência de qualidade e idoneidade (por o vistoso rótulo não corresponder, nem de perto, nem de longe, por exemplo, aos antigos cursos de nível médio dos Institutos Industriais e Comerciais). Escândalo que salta para a opinião publica,por vezes,  por os poderes políticos não poderem ignorar  essas  “licenciaturas” que continuam a constar de currículos ocultados do conhecimento público por políticos nacionais que, de um dia para o outro, aparecem licenciados por instituições superiores (?) portuguesas ou estrangeiras, como escreveu alguém, de vão de escada.  

Ipso facto, não me canso de enaltecer, ainda que de forma que não presta verdadeira justiça, o ensino ministrado nas antigas escolas industriais e comerciais portuguesas que, para além de um necessário suporte teórico, “ensinava os alunos a fazer”. Durante os vários anos que a memória me consente, fui testemunha de um eficiente ensino industrial, em que iniciei a minha docência em Lourenço Marques,  tendo-o de muita saudade, depois de ter vindo para Portugal, após a Independência de Moçambique,  em docência quer no então ensino liceal de Coimbra, quer na Universidade do Porto e na Universidade de Coimbra.

Querer fazer cair no esquecimento ou, pior do que isso, comparar o antigo ensino técnico teórico-prático, realizado em escolas próprias, com o actual ensino técnico livresco, realizado em escolas do ensino secundário (sem oficinas devidamente apetrechadas que o suportem), é campanha que repudio. Aliás como o próprio Pais a deve repudiar numa altura em que Portugal se encontra privado de mão-de-obra devidamente credenciada em “know-how” para um necessário desenvolvimento social e económico das suas fronteiras.

Por outro lado, a saída hoje para o estrangeiro da sua juventude com maior escolaridade, por não encontrar emprego no próprio país, não pode ser encarada com optimismo quando em tempos anteriores a 25 de Abril era tida como solução reprovável por parte da política de emigração do Estado Novo. Como escreveu Eça, de minha visitação constante, “em Portugal a emigração não é, como em toda a parte, a transbordação de uma população que sobra; mas a fuga de uma população que sofre”.

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