Quando se fala sobre o ensino é curioso que são recorrentes algumas confusões. O objectivo deste texto é esclarecer algumas delas.
Ensino universal, ensino público, ensino obrigatório e ensino gratuito são coisas diferentes. Podemos ter qualquer um deles sem ter o outro. E não têm todos o mesmo grau de importância política ou desejabilidade; na verdade, uns são meramente instrumentais para outros. O que se quer primariamente, pelo menos os que pensam que o ensino é importante para toda a gente, é o ensino universal.
“Ensino universal” quer dizer apenas que toda a gente recebe ensino explícito estruturado. “Explícito estruturado” porque ensino toda a gente recebe, a menos que sejamos abandonados em crianças na selva. Ser humano é ser ensinado, se me for permitido o exagero da retórica sonante. Numa tribo de há 30 mil anos, sem alfabeto nem história, as crianças eram ensinadas. Apenas não eram ensinadas de modo explícito e estruturado: ninguém se sentava pacientemente para as ensinar. Elas eram ensinadas no seio da vida. Em muitos casos, este ensino é mais do que suficiente, perfeitamente legítimo e eficaz. Só se torna ineficaz quando o grau de sofisticação do nosso conhecimento cresce muitíssimo; aí, torna-se necessário um ensino estruturado e explícito, em que alguém adequadamente formado para isso assume a tarefa de ensinar metodicamente. É uma questão de eficiência: precisamos de ensinar mais mais depressa.
A história do ensino universal é a história recente de uma importante conquista, que caminhou a par de muitas outras conquistas políticas, sociais e económicas. O ensino universal, ou quase universal, que temos hoje é muito recente: não existia nem mesmo em finais do séc. XIX, por exemplo, nem sequer nos países mais desenvolvidos da Europa. A generalidade da população não tinha acesso a um ensino explícito estruturado. Apenas aprendia o que as pessoas à sua volta lhe ensinavam assistematicamente, e depois aprendia uma profissão de um modo algo mais sistemático, mas fortemente inexplícito (é a ideia, que para alguns ainda é romântica, do mestre que ensina no seio da vida — mestre que, em vez de ensinar explicitamente, deixa que o aprendiz o observe durante anos, para ganhar as suas competências a pouco e pouco, o que é muitíssimo ineficaz).
Para se conseguir o ensino universal, muitos estados europeus começaram a criar condições para que mesmo os filhos das pessoas 1) economicamente carentes e 2) que não viam interesse no ensino explícito estruturado fossem efectivamente ensinadas. Quanto a 2, resolveu-se o problema com a obrigatoriedade. 1 resolveu-se com a gratuitidade. A gratuitidade é sempre uma ilusão; nenhum ensino é gratuito. O que acontece é que o estado usa o dinheiro dos impostos das pessoas para financiar as escolas. Ou seja, somos todos nós que pagamos as escolas à mesma, só que a pagamos mesmo que nem tenhamos filhos, por exemplo. E a ideia é que os mais ricos pagam as escolas dos mais pobres. Na prática, contudo, é a classe média, que está longe de ser rica, que mais sente na pele o peso dos impostos, para pagar por cinco a escola que poderia pagar directamente, mais barata. Já lá vamos.
As soluções para 1 e 2 não implicam a criação de ensino estatal, ainda que essa tenha sido a medida adoptada por vários países. John Stuart Mill, que advogava o ensino universal, tinha muito medo de um estado que controlasse o ensino. Porquê? Porque sabia que isso inevitavelmente iria pôr um poder tremendo nas mãos do estado, e que este, por ser tipicamente dirigido por burocratas sem grande apreço pela diferença, pela imaginação e pela inovação, tenderia a usar o ensino para formatar cidadãos, fazendo-os todos mais ou menos iguais, a pensar o mesmo. De modo que defendia que só em situações de excepção, quando a iniciativa privada não respondesse às necessidades do ensino universal, deveria o estado, e apenas temporariamente, intervir directamente no ensino, criando escolas do estado.
Se as ideias de Mill hoje parecem tão estranhas a muita gente é porque as pessoas confundem o conceito de ensino universal com o conceito de ensino estatal ("público", como por vezes se diz, mas isto é retórica barata: o ensino do estado é tão vagamente público quanto o carro do primeiro-ministro -- compare-se com o sentido genuíno em que o Rossio é público: qualquer pessoa pode ir lá, sem qualquer tipo de autorização especial). Para o ensino ser universal não precisa de ser estatal: basta que toda a gente tenha acesso ao ensino. O obstáculo económico pode ser resolvido dando bolsas às famílias mais carenciadas, para que possam financiar o ensino dos seus filhos, onde bem entenderem.
O obstáculo 2 é o mais curioso hoje em dia, pois praticamente não existe. A generalidade da população, talvez com algumas excepções em algumas zonas de pobreza mais extrema, quer que os seus filhos estudem. Não precisamos obrigá-las a fazer isso. Na verdade, os próprios alunos querem estudar; o que não querem é estudar o que são obrigados a estudar na escola estatal, formatada, igual, e que mata quase sempre a criatividade e a curiosidade, transformando em esterco quase tudo aquilo em que toca.
Hoje, somos herdeiros dessa imensa conquista que foi o ensino universal. Mas porque as pessoas confundem meios com fins, pensam que é o ensino estatal, em si, que é a finalidade. Não é. Esta finalidade, ainda que atraente obviamente para quem odeia a diferença e gosta das políticas da identidade, não tem defesa cogente que seja imparcial. Não há qualquer razão cogente para querer ensino estatal desde que possamos ter ensino universal de qualidade. Tal como não precisamos de electricidade do estado, e ainda menos (ilusoriamente) gratuita, desde que tenhamos acesso universal a electricidade que todos possamos pagar.
Mais caricato ainda é a ideia de que o ensino universal precisa de ser gratuito. Isto é caricato porque só em alguns casos o ensino precisa de ser financiado pelos impostos das pessoas: os casos de maior pobreza, em que as famílias não poderiam realmente pagar o ensino dos seus filhos. Uma vez mais, herdámos uma certa dinâmica do passado e poucos têm o distanciamento necessário para a pôr em causa. Com o progresso económico, a maior parte das pessoas podem pagar o ensino dos seus filhos; e se o pagassem directamente, isso teria pelo menos três vantagens assinaláveis. Primeiro, compreenderiam melhor que o ensino custa dinheiro, e muito. Abandonariam a fantasia de que é gratuito. Segundo, o imenso desperdício da máquina estatal poderia ser diminuído, pois o estado, para oferecer um serviço de 100 euros a um cidadão, gasta quase 500 euros devido às suas ineficiências, controlos e corrupção.
Mas a mais relevante para a discussão que temos tido é a terceira vantagem. É que se mais pais pagassem directamente o ensino dos filhos (ainda que fossem financiados pelo estado em parte ou na totalidade), mais professores e escolas teriam de responder às suas expectativas. Ora, seja o que for que as pessoas realmente querem do ensino, têm direito a querer isso mesmo do ensino e a tê-lo. Sob a capa de um ditador educativo benevolente que obriga os filhos dos outros ao ensino que não lhes interessa, o que temos hoje em dia é na realidade equivalente a obrigar as pessoas a beber água de uma dada marca, oferecida pelo estado, e obrigar toda a gente a bebê-la a certas horas e em certas quantidades. Ou equivalente a dar electricidade às pessoas, mas depois obrigá-las a usá-la como os iluminados do estado decidem que é melhor usá-la (lá se iam os jogos de computador e os filmes pornográficos!).
Isto não é particularmente lúcido. E é curioso, psicológica e sociologicamente, como algumas pessoas que se julgam de esquerda e progressistas podem hoje fazer exactamente o discurso que a direita fazia no séc. XIX, defendendo que os pobres, coitados, precisam de ser guiados por nós, iluminados, ainda que contra a sua vontade, porque eles não sabem o que querem. Mas eles sabem o que querem sim senhor. E se o que querem não é igual ao que querem os intelectuais, qual é o problema? Na verdade, o ensino estatal é — felizmente — terrivelmente ineficaz: desconfio que os jovens, quando adquirem gosto pelas artes, pela filosofia, pela história, pelas ciências ou pela matemática não o adquirem, na esmagadora maioria dos casos, na escola, mas fora dela. Além disso, quem disse que não se pode desprezar essas coisas, e prezar antes o futebol, os jogos de computador, a música de dança e ganhar muito dinheiro numa empresa de informática? A ironia disto é que os intelectuais que estão tão apostados em denegrir a vida económica são pagos pelos impostos dessas empresas e empresários que tanto desprezam.
Eu penso que precisamos de mais respeito pela diversidade de estilos de vida. Precisamos respeitar quem não gosta de matemática, ou de filosofia, ou de história; quem prefere outras coisas. E vice-versa. O mundo é muito diverso e temos muitas coisas para escolher, e hoje temos felizmente muitas mais oportunidades do que tínhamos há 40 anos. Devemos aceitar isso com alegria e não com inquietação. O mundo não vai acabar se a maior parte dos jovens se estiver nas tintas para a física ou a filosofia; o importante é que quem se interessar por essas áreas tenha a possibilidade de se tornar cientista ou filósofo, se o quiser, para aí se realizar como ser humano pleno. Mas quem se realizar a fazer dinheiro numa fábrica de pneus, tem o direito de o fazer; na verdade, é óptimo que o faça, pois de contrário não teríamos pneus.
Hoje ganhámos a batalha do ensino universal ou quase universal. A batalha seguinte é a diversidade. A da liberdade. É a libertação do ensino que está agora em causa. Precisamos de não ter medo de conviver com a diferença. Se a alguém for dada a oportunidade de ter umas “tintas de filosofia” (para usar a maravilhosa expressão de Russell), mas não se interessa por isso, tem todo o direito de não se interessar. É impossível defender de modo imparcial e cogente que alguém tenha o direito de a obrigar a estudar filosofia. E o mesmo se aplica a qualquer outra área.
Libertar o ensino teria a vantagem de o flexibilizar. De o fazer responder de modo dinâmico às expectativas de pais e alunos. E diferentes pais e diferentes alunos têm diferentes expectativas. Por que haverão tais expectativas de ser goradas, oferecendo-se a todos exactamente o mesmo? As pessoas têm direito ao ensino, certamente (se quisermos usar a linguagem enganosa dos direitos, hoje muito comum por razões históricas). Mas o ensino a que têm direito é o ensino que querem realmente ter, e não o que alguém decide, em seu nome, que têm de querer.
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17 comentários:
Ola,
Este texto não responde à objecção principal no ponto 5 do meu comentario ao post anterior : a logica concorrencial não funciona em matéria de educação, porque não estamos a falar de serviços que a maioria da população pode financiar em condições de igualdade.
Todo o raciocinio acima assenta em dois pressupostos falsos, ou sofisticos :
1/ "Na prática, contudo, é a classe média, que está longe de ser rica, que mais sente na pele o peso dos impostos". Esta afirmação é perfeitamente irrelevante, ou insignificante : o facto de "sentir mais na pele" não significa que ela pague mais do que os mais ricos, e também não significa que o imposto seja desprovido de efeito redistributivo (para além disso, a afirmação é vaga, não sabemos o que se entende por "classe média"). O que é certo é que, mediante o imposto, os mais abastados pagam para os mais carenciados. O resto é conversa.
2/ "a maior parte das pessoas podem pagar o ensino dos seus filhos". Nada demonstra esta afirmação e tudo aponta em sentido contrario. A esmagadora maioria das pessoas não poderia suportar o custo da educação dos seus filhos (tal como é hoje facultada pelo serviço publico educativo) se lhes fosse cobrado como um serviço comercial. Se a afirmação do Desidério fosse exacta, então não existiria justificação nenhuma para o serviço publico da educação. Mas todos sabemos que, se não houvesse serviço publico, e se as pessoas fossem obrigadas a ir buscar ao mercado os serviços de educação que pretendem para os seus filhos, teriamos serviços de qualidade muito variavel sem haver possibilidade de escolha para os mais carenciados, que iriam sempre "escolher" o ensino mais barato, com menor qualidade.
Ha depois outras confusões supreendentes : o ensino publico coexiste hoje em dia com o ensino privado e as pessoas têm, ja, escolha nesta matéria. O ponto é que os estabelecimentos de ensino financiados pelo Estado (que podem ser publicos ou privados) são financiados porque, e na medida em que, administram os programas nacionais e preparam aos exames nacionais, que é a forma de aferir que eles facultam um serviço comparavel aos seus educandos.
Ha mais confusões (a qualidade do ensino é arbitraria, etc.), mas estou sem espaço e sem tempo.
Boas
joão viegas
Talvez relendo "As nuvens" de Aristófanes encontremos um caminho improvável.
E relendo "As aves", também de Aristófanes, estejamos reconstituindo, e não reconstruindo, o mesmo caminho errático.
Caro João Viegas:
De facto as afirmações gratuitas abundam no discurso de D. Murcho. Por exemplo: "Segundo, o imenso desperdício da máquina estatal poderia ser diminuído, pois o estado, para oferecer um serviço de 100 euros a um cidadão, gasta quase 500 euros devido às suas ineficiências, controlos e corrupção." Onde está a prova? Há manifestamente pressupostos ideológicos que o autor faz passar. Outra com piada "Mas quem se realizar a fazer dinheiro numa fábrica de pneus, tem o direito de o fazer; na verdade, é óptimo que o faça, pois de contrário não teríamos pneus" mas sem substância. E o ensino é igual em todas as escolas estatais? Claro que não é, em muitas fomenta-se o debate embora eu concorde que muito se pode fazer para criar mais diferenciações. mais, mas estatais todos podemos intervir, nas privadas não. Ao contrário do que o autor transmite, na vida em sociedade não é possível cada um fazer o que lhe apetece e ainda bem em muitos casos, há quem tenha de fazer o que os outros decidem. Se assim não fosse eu faria em geral o contrário do que Paços Coelho diz e obriga. Enfim ideias delirantes, não é o primeiro a tê-las, e é mais um a queixar-se de que o mundo não é como ele queria. É típico destes pensadores: eu penso tão bem e o filho da mão do mundo não me segue. Eu acrescento: ainda bem.
José Maria Lourenço
Professor Desidério Murcho;
Estou desconsolado com o que o Senhor escreve.
O Senhor diz, por exemplo:
“O obstáculo económico pode ser resolvido dando bolsas às famílias mais carenciadas, para que possam financiar o ensino dos seus filhos, onde bem entenderem.”
Eu pergunto-lhe o Senhor não compreende e definitivamente que: “O direito à cultura deve ser realmente reconhecido como um direito inerente ao homem, e não como um favor, mais ou menos disfarçado, da administração pública.”
Leia-a por favor este meu comentário no link abaixo;
http://dererummundi.blogspot.pt/2012/01/todos-tem-direito-educacao.html
Peço-lhe que ponha John Stuart Mill de lado, e leia Bento de Jesus Caraça, trás-lhe outros proveitos.
Leia-a a conferencia Escola Única e observe ai as fragilidades das suas convicções (“suas” do Professor Desidério Murcho) e veja também as imprecisões que comete até na análise histórica.
E peço-lhe ainda mais, peço-lhe, para de seguida adoptar a atitude de Bento de Jesus Caraça expressa nestas suas palavras "Se não receio o erro, é só porque estou sempre pronto a corrigi-lo". E corrija-se.
Desculpe-me a falta de cortesia das minhas palavras, mas são o reflexo do meu desconsolo por aquilo que o Senhor escreve.
Cordialmente,
Dos interessantíssimos textos de Desidério Murcho eu extraio
pelo menos três ideias que julgo importantíssimas:
- O português de "grunho" e a doutrina paternalista e
ridícula dos programas deviam ser eliminados (proibidos...),
assim como abstrusas sugestões metodológicas com ar
modernista, como se alunos e professores fossem atrasados
mentais - o ministério que indique os conteúdos programáticos
obrigatórios para cada disciplina em cada ano e que se deixe
de tretas;
- Poder haver vários exames que pudessem aplicar-se a nível
nacional em cada disciplina em cada ano, em diferentes
escolas; não sei como é que isto é feito noutros países, mas
se é, e se funciona, não vejo porque não possa ser
experimentado entre nós; e talvez houvesse menos frustração
com exames incompreensíveis, porque mal feitos, mal redigidos
e com critérios (?) inenarráveis;
- As universidades é que deviam realizar as provas para
selecionarem os seus alunos. Claro que isto dá trabalho. Mas
esse trabalho poderia ser feito, como é agora, por
professores do ensino secundário. E gratuitamente, como
também o fazem atualmente. Bastaria que estivessem libertos
de quaisquer outras tarefas nas escolas (ou para as escolas)
durante os períodos de "correção" e que lhes pagassem
despesas de deslocação, parqueamento, canetas ou outro
material necessário, de modo a que não tivessem prejuízo
(como agora têm...) para realizar esse trabalho.
Só estas "pequeninas" coisas, e outro galo cantaria!
Mas, quem quer a autonomia das escolas? Agora só temos
autonomia para fazer o que as estruturas do ministério
mandam, mesmo que sejam coisas inúteis e, às vezes,
impossíveis!
Por todas as questões que levantou, obrigado caro Desidério
Murcho.
No comentário que fiz anteriormente há uma incorreção. Na primeira
linha, onde escrevi "eu extraio" devia ter escrito "eu extraio, por
contam própria". Com o sentido de que aquelas ideias resultaram em
mim depois de ler os textos de Desidério Murcho.
A ele e aos leitores, mas especialmente a ele, as minhas desculpas.
Podemos ter três tipos diferentes de exames nacionais de matemática, por exemplo, feitos por três associações de professores de matemática que prezem diferentes conteúdos e métodos. Qual é o problema da pluralidade educativa?
Depois, se um departamento de matemática considerar que só um desses exames é relevante para seleccionar os seus alunos, pode declarar que quem quiser entrar nesse departamento tem de fazer esse exame. Na mesma universidade, um departamento de engenharia ou de biologia pode aceitar alunos que façam qualquer um dos três exames nacionais, por considerar que qualquer um deles avalia bem as competências que interessam a esse departamento.
Esta medida permitiria pacificar a sociedade portuguesa no que respeita ao ensino. Os partidários de um ensino da matemática ou da filosofia que defendem o que eu e outros pensamos que é mera conversa fiada, fariam os exames à sua maneira, ou não fariam quaisquer exames. E os alunos escolheriam as alternativas à sua disposição. Quem, como eu, pensa que há muito trabalho a fazer no sentido da excelência educativa em filosofia, poderia dedicar-se a isso sem ter de andar a tentar impor a sua visão das coisas a quem a despreza profundamente. E vice-versa: quem quer fazer do ensino da filosofia e da matemática o que eu considero mera conversa fiada, poderia fazê-lo sem ter de andar a fazer guerra de bastidores.
Penso também que é importante dissociar os exames, e o que eles visam, da entrada na universidade. E o pluralismo educativo permitiria também fazer isso. Uma associação de professores de biologia pode considerar importante fazer exames nacionais de biologia sem qualquer preocupação com a entrada na universidade, mas apenas para melhor formar os alunos — e para orientar os professores na direcção da excelência educativa. Na verdade, é isso mesmo que eu penso quanto à filosofia: muitos alunos e pais quererão fazer um bom exame de filosofia, mesmo que as universidades não o exijam e mesmo que não queiram estudar filosofia — pura e simplesmente porque um bom exame nacional de filosofia avalia aptidões importantes para a autonomia intelectual do aluno que nenhuma outra disciplina avalia (pensamento cítico sobre problemas que estão em aberto e são muitíssimo complexos e abstractos, análise de teorias e argumentos sofisticados, teorização e argumentação intensa e rigorosa).
Muito bem, caro Desidério. Excelentes, estas (suas) ideias.
Concordo inteiramente consigo.
Que raio. Muitas vezes, quando quero corrigir um erro cometo
outro(s). Como agora. Anteriormente onde ficou "extraio, por
contam própria" não era, obviamente "contam", mas "conta".
São nabices minhas.
Já agora que tem paciência com as minhas tolices, deixe-me confessar-lhe mais uma coisa. Eu desconfio muito do discurso de muitas pessoas supostamente comprometidas com a qualidade do ensino mas que nada fazem de relevante para ajudar professores e alunos. Mais: penso que muitas pessoas que defendem exames públicos exigentes na sua disciplina seriam incapazes de os fazer sem erros vergonhosos. Acho que no que respeita ao ensino há conversa fiada a mais em Portugal, e trabalho de formiga a menos. Acontece que é esse trabalho de formiga que mais conta, José. O que mais conta para si, como professor, é poder contar com bons livros, boa formação dada por professores comprometidos com a excelência, boas sugestões de trabalho. Acontece que isso dá trabalho a fazer -- um trabalho de meses -- ao passo que umas tolices escritas num jornal é coisa que se faz em meia-hora.
Professor José Batista da Ascensão;
Preocupa-me um ensino ministrado por professores que não orientam os seus esforços no sentido de ensinar;
Que o reverso da medalha é julgar;
Que consideram até que os exames são um meio de melhor formar os alunos, ao ponto de os considerarem também como meio auxiliar para orientar os professores.
Como pode o Sr. Professor concordar com isso?
Cordialmente,
Caro Desidério
Nem sabe como lhe agradeço a coragem do que disse e diz.
Daqueles que são claros, leia-se sinceros, e assumidos nunca
vi que viesse grande mal ao mundo.
A falta de ajuda tenho-a eu, e têm-na muitos, vivido
relativamente a demasiados figurões que se empoleiram na
vaidade e que, a bem dizer, só prejudicam. E o prejuízo
maior nem é o meu nem o daqueles que partilham a minha
profissão...
Quanto ao resto, é como diz.
Professor José Batista da Ascensão;
Infelizmente nunca tive um grande Professor em toda a minha vida de estudante, confesso-o.
Mas tal não me impede hoje de saber o que é um grande Professor; tenho feito referencia nos meus comentários às Obras de grandes Professores e aos ensinamentos que delas recebo;
Um deles é o Professor José Sebastião e Silva; dele transcrevo esta ideia;
“(...) observa-se que os esforços estão muito mais dirigidos no sentido de aprender ou ensinar (conforme se trate de alunos ou de professores), do que para o reverso da medalha, que consiste em prestar contas ou julgar.”
Agora uma nota de uma lição do Professor Sebastião e Silva, para se ter a noção de como se fala quando se sabe realmente do que se fala (Estão neste blog, o Professor Jorge Buesco e Filipe Oliveira (matemáticos) e outros leitores certamente, que sabem apreciar em pleno estas palavras sabias:
“Vem a propósito lembrar que haveria toda a conveniência, quer cientifica quer didáctica, em introduzir no ensino secundário o estudo dos arranjos com repetição, precisamente no inicio da análise combinatória. Na verdade, não só é esse o conceito mais usual da analise combinatória (na vida corrente, nos fundamentos da matemática, no calculo das probabilidades, etc.), como até o de mais fácil estudo. Chega a ser desconcertante que, para resolver problemas tais como «Quantos números diferentes de 3 algarismos se podem escrever com os algarismos de 1 a 9?» o aluno seja obrigado a seguir um caminho mais longo que o natural, recorrendo ao calculo de arranjos sem repetição...”
Do que acima está escrito pode, o Senhor Professor José Batista da Ascensão, ter uma noção do que poderia significar esta ideia do Professor Desidério Murcho: “Uma associação de professores de matemática pode considerar importante fazer exames nacionais de matemática sem qualquer preocupação com a entrada na universidade, mas apenas para melhor formar os alunos — e para orientar os professores na direcção da excelência educativa.” - que o Sr. considera excelente, diga-se - aos olhos do Professor Sebastião e Silva. [substitui biologia por matemática]
A minha grande preocupação (e penso que também de muitos leitores do DRN) é a sensação que tenho que as crianças deste país ainda não têm sequer currículos escolares bem estruturados, (sob o ponto de vista cientifico e pedagógico) nem tão pouco professores com formação adequada. É mais uma geração igual à minha, que no fim da vida escolar, poderá dizer que nunca conheceu um grande Professor. E repare não estou aqui a pedir nenhum Sebastião e Silva.
Cordialmente,
Engenheiro Joaquim Manuel Ildefonso Dias
Os professores que conheço, e com quem tenho o privilégio de
trabalhar, não fazem outra coisa senão esforçar-se por ensinar o
melhor que podem.
Não sei a que professores em concreto se refere. Se é a mim
permito-lhe que assista às aulas que leciono para (me) poder julgar
(melhor).
Claro que os exames, se bem feitos, são um meio de formar alunos, e
de os preparar para a multiplicidade de obstáculos que vão ter que
enfrentar durante a vida. Se bem feitos...
E também servem para os professores testarem a qualidade do ensino
que ministram.
Não sei como pode o Sr. Engenheiro não concordar com isto.
Assim mesmo respeito a sua não concordância.
Com cordialidade.
Professor José Batista da Ascensão;
O Senhor diz “Não sei como pode o Sr. Engenheiro não concordar com isto.” [os exames, se bem feitos, são um meio de formar alunos, e de os preparar para a multiplicidade de obstáculos que vão ter que enfrentar durante a vida. Se bem feitos...E também servem para os professores testarem a qualidade do ensino que ministram.]
Respondo eu não concordo porque, concordando com as palavras do Professor Sebastião e Silva, os seus argumentos não colhem, além de que estão desprovidos de justificação racional (é assim, porque eu acho que assim é melhor e ponto final, e quem disser o contrário é autoritário, e está a invadir o direito que eu tenho de ensinar na maneira que eu acho que é melhor... e por ai fora, na linha do pensamento filosófico do Professor Desidério Murcho);
Dizia o Professor Sebastião e Silva;
“Tive a sorte de ser iniciado relativamente cedo em hábitos de pesquisa. Talvez por isso mesmo, sempre tive aversão a dar aulas em estilo puramente expositivo, sem estabelecer algum dialogo com os alunos (mesmo em cursos numerosos). A principio, os alunos reagem mal: mostram-se tímidos, desconfiados e alguns, talvez, desagradavelmente surpreendidos com a atitude do professor (dir-se-ia que não lhes agrada esse género de participação!). Não quero afirmar que lhes seja inteiramente estranho o método; mas vê-se que estão marcados por todo um passado de mecanização, de passividade, de mentalização exclusiva para a nota e para o exame: esquivam-se, metem-se na concha, têm medo de revelar as suas próprias deficiências: sofrem, portanto, de um complexo de medo – medo principalmente de fazerem má figura perante o professor e na frente dos colegas (efeitos da “pedagogia das orelhas”). Depois lá vou seguindo, a pouco e pouco, a inspirar-lhes alguma confiança quanto aos meus propósitos – e então aparece geralmente aquilo que eles se esforçavam por ocultar: as lacunas, muitas vezes graves, que só pelo dialogo podem ser detectadas e devidamente corrigidas.”
Dizia ainda o Professor Sebastião e Silva num texto sobre Filósofos e Matemáticos:
“O mais curioso ainda é que, quando o leigo se põe a fazer ciência por conta própria, tende quasí sempre a cair no poço da filosofia (e digo «poço», porque, geralmente, é difícil de lá sair).”
Cordialmente,
Engenheiro Ildefonso Dias
Se, em sua opinião, os meus "argumentos não colhem, além de que
estão desprovidos de justificação racional" não sei que lhe faça,
uma vez que é o senhor a definir o tipo de racionalidade que lhe
interessa.
Penso, aliás, que tem direito a isso. E, olhe, se fosse sobre
engenharia, eu até acabaria por me calar, enfim... Mas sobre a
profissão de professor, tenha paciência, não aceito que nenhuma
"filosofia" de oráculo se sobreponha ao que a realidade me mostra.
E não é por estar contra as opiniões de Sebastião e Silva, que me
parecem lineares (ia escrever básicas), nem contra as posições
pedagógicas de Bento de Jesus Caraça, que, de resto, não conheço em
profundidade, já o mesmo não podendo dizer das suas posições
ideológicas que o mundo se encarregou de desmentir. Aquela coisa do
"sol da terra" e tal...
Mas sou defensor da liberdade de pensamento e de expressão de cada
um. Esteja por isso à vontade.
Com cordialidade.
Professor José Batista da Ascensão;
Já que se fala em "filosofia" de oráculo, permita-me citar Miguel Torga “O mal de quem apaga as estrelas é não se lembrar de que não é com candeias que se ilumina a vida”.
Na verdade, o assunto que se discute aqui é demasiado importante para se perder tempo com coisas acessórias como “sol da terra” ou outras afins… Aquilo que os Senhores Professores José Batista da Ascensão e Desidério Murcho defendem não é coisa pouca e insignificante. Falo do chamado “pluralismo educativo” dos “exames como meio para melhorar a formação dos alunos” dos “exames como meio para orientar os professores na direção da excelência educativa”.
Transcrevo para os leitores do DRN um pouco da biografia do Professor Sebastião e Silva; porque ela mostra o respeito que lhe mereciam os outros colegas de profissão, ciente que estava das limitações pedagógicas de muitos deles, mas depositava neles sobretudo confiança, não os abandonava (recordemos os seus compêndios de matemática e respectivos guias de utilização para professores e alunos), proclamava para eles formação cientifica a par da pedagógica, sinal de confiança nas capacidades deles… não pedia formas de ensinar arbitrarias (pluralismo educativo), porque sabia como melhor se ensinava, e jamais permitiria que a sua ciência fosse abandalhada aos alunos por uma qualquer associação de professores fosse ela X, Y, ou Z.
Da Biografia:
“O grande cientista, presente na admiração dos seus pares do mundo inteiro como criador de rumos novos para a Matemática, estava persuadido de que a Pedagogia é só uma, do ensino infantil até ao universitário (inclusive). Ele, que era o investigador português de matemática mais projetado internacionalmente, foi também quem tomou a iniciativa, em sessão do Conselho Escolar da sua Faculdade, de propor uma moção formulando o voto de que aos assistentes dessa Escola fosse dada preparação pedagógica além da cientifica, procurando assim evitar que os estudantes fossem eventualmente transformados em cobaias protagonistas de vivissecção psicológica por parte dos tirocinantes a quem a impreparação pedagógica possa converter em inconscientes torcionários dos alunos a seu cargo. De improvisadores verdadeiramente bárbaros por ignorância das normas pedagógicas mais elementares está cheia a memoria traumatizada de muitos estudantes universitários portugueses, infelizmente recordada com frequência desejável.
Assim era Sebastião e Silva, como já frisámos noutros passos deste estudo: alguém que aliava, em raríssima escala, a mais humana vivência pedagógica ao mais alto nível científico.”
Senhores Professores José Batista da Ascensão e Desidério Murcho, se o mal do nosso ensino é não seguirmos, como devíamos, as estrelas (por “estrelas” entenda-se os grandes mestres como Sebastião e Silva), ignora-las (entenda-se, “ignora-las” com o que significa o pluralismo educativo) é passar a andar de candeias, é portanto assumir a derrota.
Cordialmente,
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