quarta-feira, 9 de maio de 2012

Educação, ciência e política

A discussão "Did Humans Invent Music?", entre os cientistas Gary Marcus e Geoffrey Miller é um modelo de discussão epistemicamente proba. Dois cientistas, que defendem nos seus livros e investigações posições opostas quanto à raiz genética, ou meramente cultural, das nossas aptidões musicais, apresentam os seus argumentos com franqueza e simpatia, ouvindo-se mutuamente com atenção e apresentando objecções. Este é o processo cognitivo crucial para nós, seres humanos, de descoberta de verdades. John Stuart Mill afirmou-o com curiosa contundência:
"As nossas crenças mais justificadas não têm qualquer outra garantia sobre a qual assentar, senão um convite permanente ao mundo inteiro para provar que carecem de fundamento. Se o desafio não é aceite, ou se é aceite e a tentativa é gorada, estaremos, ainda assim, longe da certeza; mas teremos feito o melhor que a condição presente da razão humana permite; nada teremos negligenciado que pudesse dar à verdade a hipótese de vir ter connosco: se o conjunto de crenças for mantido em aberto, podemos esperar que, se houver uma verdade melhor, será encontrada quando a mente humana estiver preparada para a aceitar; e, entretanto, podemos ter a certeza de estarmos tão próximos da verdade quanto possível, na altura presente. Esta é a quantidade máxima de certeza alcançável por um ser falível, e a única maneira de a alcançar." (Sobre a Liberdade, 1859)
E Mill não está a falar de crenças religiosas; não está também a falar de opiniões à toa, sem grande justificação. Ele está a usar o termo "crença" no sentido em que o usamos em filosofia: qualquer representação verdadeira ou falsa que um agente cognitivo faz das coisas. Portanto, as crenças religiosas e as opiniões à toa -- políticas ou outras -- são crenças; mas também a crença de que 5 é um número ímpar é uma crença, assim como qualquer crença científica. Na verdade, na frase imediatamente anterior a esta citação Mill menciona a física de Newton, que na altura se chamava "filosofia natural": "Se não fosse permitido que até mesmo a filosofia newtoniana  fosse questionada, as pessoas não sentiriam uma tão completa certeza da sua verdade como agora sentem."

O que está aqui em causa é a nossa falibilidade epistémica: enganamo-nos. A melhor e a única maneira de corrigir os nossos erros é confrontar as nossas crenças com pessoas que pensam de maneira diferente. Isso é não apenas um aspecto crucial da nossa descoberta das coisas, é o aspecto sem o qual nenhum dos outros pode funcionar, como expliquei no livro A Ética da Crença.

A ideia de peer-review nasce desta constatação, mas pode ser distorcida, e é distorcida, como todas as ideias boas. A distorção é pensar que a partir do momento em que temos consenso entre cientistas, temos a verdade absoluta. E isto é falso. Pior: se tivermos consenso, temos em muitos casos menos probabilidade de estarmos certos, e não mais.

Pior ainda é quando a política se intromete nas coisas. A razão pela qual a discussão aberta e civilizada entre os cientistas Gary Marcus e Geoffrey Miller é epistemicamente proba é porque, além de ambos serem cientistas muitíssimo bem formados, o que discutem não tem qualquer relação com a tomada de decisão política. Quando os debates científicos têm implicações políticas, há uma tendência para se acabar com a discussão civilizada e epistemicamente proba de ideias, e entra em jogo outro modo muito comum de conversa: a manipulação política. O objectivo deixa de ser a descoberta conjunta da verdade, discutindo abertamente ideias, mas antes ganhar força política para impor aos outros as práticas que eles não querem, mas em que nós acreditamos.

Isto é uma ameaça à democracia. E é o que acontece em várias áreas em que diferentes cientistas têm diferentes ideias. Em algumas dessas áreas, não é realmente compatível agir de várias maneiras diferentes: é o caso do aquecimento global, seja de origem humana ou não. Neste caso, a ciência é atirada pela janela, juntamente com a probidade epistémica, e depois trata-se apenas de fazer guerra política para ver quem fica com o poder de impor aos outros as suas ideias. É uma coisa feia. E nós, cidadãos que não somos especialistas em climatologia, nem podemos ser, não podemos tomar uma decisão informada e adequada.

A solução para isto é a introdução, na consciência pública e no debate político, da importância superlativa da pluralidade epistémica. Os cientistas erram e diferentes cientistas têm diferentes teorias. Devemos acabar com a ideia de que em ciência há sempre uma maneira simples de saber qual das teorias é a mais plausivelmente verdadeira.

Mas há outros casos do debate público de ideias científicas em que, felizmente, não temos de tomar partido publicamente por um dos lados, porque podemos agir de maneiras diferentes, porque diferentes ideias podem ser postas em prática por pessoas diferentes, sem prejuízo das outras. É exactamente o que ocorre com o ensino. O vídeo que apresentei aqui de Sugata Mitra mostra o que pensam alguns cientistas da educação. Outros cientistas da educação opõem-se a estas ideias. Mas o debate que temos tido em Portugal nada tem a ver com um debate civilizado, epistemicamente probo, que visa descobrir a verdade, aprendendo nós uns com os outros, como fazem os cientistas Gary Marcus e Geoffrey Miller. Não: a discussão pública portuguesa sobre ensino é selvagem e visa apenas ver quem consegue ganhar o poder para impor aos filhos dos outros a sua visão do ensino. Um resultado disto é que não aprendemos uns com os outros. Outro resultado disto é que temos um sistema de ensino incoerente, porque num ciclo político legisla-se numa direcção, no ciclo seguinte noutra direcção diferente.

E não precisamos deste conflito. Porque, ao contrário do que ocorre com o suposto aquecimento global, neste caso podemos pura e simplesmente libertar as escolas e permitir que diferentes agentes educativos, diferentes alunos e diferentes pais adoptem diferentes visões do ensino, consoante o que considerarem melhor. Muito teríamos a ganhar com essa pluralidade educativa: poderíamos pela primeira vez ver realmente o que funciona melhor, aprendendo o que há de melhor em cada modelo, descobrindo que vários modelos aparentemente incompatíveis se calhar até podem ser combinados de modos inesperados.

Vamos construir um ensino melhor? Vamos libertar o ensino? É essa a minha proposta.

4 comentários:

Anónimo disse...

Ola,

Sabias palavras. Proponho que as procuremos pôr imediatamente em pratica.

No debate a que se alude, em torno da educação, o post sugere que existe uma componente politica que introduz um biés ou que dificulta o debate ponderado e respeitador da liberdade.

No entanto, quando abro a constituição (fruto do debate politico) leio o artigo 43 que dispõe claramente que "1. É garantida a liberdade de aprender e ensinar. 2. O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas."

Parece-me pois legitimo concluir que as preocupações expressas no post estão devidamente contempladas nas regras fundamentais que resultam do debate politico em Portugal.

Ter-me-ia escapado algo ?

Abraço

joão viegas

Cláudia S. Tomazi disse...

Do direito em puxar da brasa a sardinha:
Por igual tamanho a brasa.

José Batista da Ascenção disse...

Caro Desidério

Precisamos (urgentemente) de libertar o

ensino, para construirmos um ensino melhor. A

dúvida é: como?

Realmente, anda tudo esmagado numa escola que

(se) embrutece, enlouquece e fenece (enquanto

verdadeira escola). Quando digo tudo esmagado

penso essencialmente nos professores. Não que

não sejam responsáveis e responsabilizáveis.

Deviam ser uma coisa e outra. E, "livre-nos

Deus" de uma escola entregue apenas aos

professores, fora do controlo daqueles a quem

serve: as comunidades de alunos e encarregados

de educação.

Mas, o que temos tido é um imenso corpo de

cegos a, totalitariamente, mandar numa legião

de ... outros cegos. No primeiro caso temos

psiquiatras, psicólogos, sociólogos,

pedagogos, psicopedagogos, engenheiros (como

se já não nos bastassem os diplomados ao

domingo...), especialistas em "eduquês" mais

todo e qualquer freguês, muito anchos, a

largarem bojardas, desde a (de)formaçao e

formatação de professores até à autonomia que

lhes dispensam, qual seja a de que façam tudo

o que (e como) lhes mandam e aceitem arcar com

as culpas do que não têm qualquer hipótese de

fazer bem. No segundo caso temos os

professores, jazendo carneiralmente e

complicando ainda mais a teia de absurdos em

que os emaranham.

Uns e outros não confiam em ninguém nem em si

próprios, odeiam-se e desprezam-se mutuamente,

e cada qual procura cuidar da sua vidinha.

Os alunos, esses são um grupo pretexto para

haver tantas funções (e empregos)

imprescindíveis...

Por isso não sei como vamos erguer-nos.

Mas não é seguramente com um corpo de

professores intelectualmente e

procedimentalmente castrados.

Por onde começar?

Diria que é por fazer um ministério da

educação pequenino (em dimensão), acabar com

estruturas intermédias, que não se justificam

por serem inúteis, e responsabilizando as

escolas face a um quadro legal claro e sucinto

e perante as comunidades que servem.

Pormenores? Não os imagino todos, claro, nem a

maior parte. Mas suponho que é o caminho.

Caminho que cada escola fará caminhando... e

respondendo pelo que faz.

Nada de "escola única". Isso nunca.

É o que penso.

Valdemar Barbosa Rodrigues disse...

Estimado Prof. Desidério Murcho, o assunto da sua discussão, interessantíssimo acho, é-me demasiado caro para que sobre ele não me pronuncie. Queria alertá-lo apenas para duas coisas que no seu discurso não me parecem muito claras. A primeira é a de que o Prof. se refere ao actual "modelo" de ensino como se ele fosse homogéneo. Penso que não é e que se olharmos para o mundo ocidental, ou para um dos seus pequenos países como Portugal (ainda assim suficientemente grande para que possamos ter uma "amostra representativa"), o talvez se possa concluir é que de facto já existe pluralismo de ensino, porventura até demasiado. Julgo portanto que seria bom, para melhor fundamentar o seu discurso, que demonstrasse, usando o método científico, essa suposta homogeneidade. Esta é a primeira questão. A segunda é a seguinte: independentemente de poder achar duvidoso algum experimentalismo pedagógico que por aí prolifera, oriundo sobretudo da área das "ciências da educação", julgo, como você, importante que se procurem e experimentem novas experiências educacionais e pedagógicas. Porém, seria a meu ver extremamente importante para a defesa de qualquer novo discurso ou tese sobre o sistema educativo, nomeadamente a sua sobre a liberdade, a descentralização e o (maior?) pluralismo educativo, que pudessem ser apresentados casos exemplares, os tais casos de "sucesso" como soí dizer-se, que mostrassem claramente, a uma escala adequada (julgo que pegar numa ou duas escolas, ou até num agrupamento de escolas, só faz sentido se se considerar uma escala suficientemente vasta, regional ou nacional, pelo menos), que os resultados são "melhores" quando existe maior liberdade de ensinar e maior pluralismo de métodos de ensino. É claro que deverá haver alguma forma de clarificar o que entendem hoje as sociedades por "melhores resultados", tal como o que elas mesmas entendem por "resultados sofríveis", "medíocres" ou "de sucesso". Fala-se muito, por exemplo, de literacia. Do desenvolvimento de capacidades que permitam raciocínio lógico ou a compreensão de linguagens e gramáticas. Não sei, não sou especialista. Penso apenas que em qualquer projecto desta natureza é necessária uma visão, e que essa visão seja capaz de preservar o Yin e o Yang que existem naturalmente em todas as coisas (acredito, como vê, na sabedoria chinesa). O pior que se faz - e que o Ocidente tem feito sobejamente - é procurar acabar com os dualismos misturando as coisas que se opõem. Buscando os tais "consensos" - inclusive científicos como no caso que cita do aquecimento global - o que pressupõe exactamente uma forma subtil de totalitarismo: aquele que impõe a abdicação como condição para poder haver "diálogo". Aquele que assim fazendo suprime os contrários. Stuart Mill, se bem entendi o pouco que dele li, era um consequencialista e, como tal, defensor da ideia de que os fins justificam os meios. Ora aí está uma ideia a preservar, mas só juntamente com a ideia oposta que defende serem os meios, ou o carácter da acção, mais importantes do que os respectivos fins. A fusão entre hedonismo e estoicismo - a que alguns chamam erradamente "pragmatismo" - é aquilo que me parece ser mais abundante na actualidade, e que dá os resultados ao nível da educação que muitos reconhecem ser negativos. Ao querer "impor" o seu modelo "pluralista" de educação/ensino, não estará o Desidério Murcho também, sem querer ou seja, sem dar conta que ipso factu o pluralismo já existe, a promover precisamente o contrário daquilo que pretende ou seja, um modelo uniformizador, homogeneizante e, como tal, totalitário?

Com os meus melhores cumprimentos,

Valdemar J. Rodrigues

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