quarta-feira, 30 de maio de 2012

ENTREVISTA DE CARLOS FIOLHAIS SOBRE COIMBRA

Transcrevo, ligeiramente encurtada, uma entrevista que dei a 24 de Março de 2011, na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, a Nádia Costa, estudante de Design Gráfico que acaba de concluir o seu Mestrado com um belo livro sobre Coimbra:

 P- O que é para si Coimbra? 

R- Coimbra é o sítio onde vivo, é uma cidade agradável para viver. Não é muito grande, não é muito pequena, tem o tamanho certo. Coimbra começa por ser, para mim e para muita gente, a Universidade. A colina principal está coroada pela Universidade. Uma inscrição em latim, por cima da porta da Biblioteca Joanina diz: “Esta Biblioteca coroa a fronte da cidade”. Coimbra tem.portanto, no seu sítio mais alto (outras cidades têm um castelo, Coimbra já teve), a Universidade, com a Joanina e a Torre como marcas distintivas. Uma pessoa vem de longe e vê o casario com a Joanina e a Torre.

Coimbra não é a cidade onde nasci, pois nasci em Lisboa, na Maternidade Alfredo da Costa, uma verdadeira “fábrica de portugueses”. Mas, com sete anos, vim para Coimbra acompanhando os meus pais. Não me perguntaram, mas acho que fizeram bem. Estudei aqui na escola primária, no liceu e na universidade. Depois estive na Alemanha quase quatro anos, e depois também nos Estados Unidos, um ano. Fora isso tenho meio século de Coimbra. Coimbra é bem mais antiga, mas comigo tem meio século.

É uma cidade que, de certo modo,  representa o país. O país é agradável para viver, tal como a cidade, apesar dos problemas que encontramos. Encontramo-los no país e encontramo-los aqui. Coimbra é uma espécie de “Portugal em pequenino”; tem o melhor e o pior de Portugal. A Universidade é, de certo, uma das coisas muito boas da cidade. Há  sítios da universidade que são de excelência até a nível, não apenas nacional mas também internacional. Mas não é preciso sair da cidade, para encontrar ilhas de pobreza. O nosso país é, infelizmente, assim, um país de grandes contrastes.

Encontramos aqui alguns edifícios muito bem recuperados, como a Torre, que está bonita, e encontramos edifícios a cair aos bocados. Portugal é assim: capaz do melhor e do pior, os dois ao lado um do outro. Em Coimbra existem monumentos bem conservados, como por exemplo, além da Torre, o Mosteiro de Santa Clara-a-Velha, mas também há outros mal conservados, por exemplo Santa Clara-a-Nova. A Santa aqui está ao contrário, a Velha está Nova e a Nova está Velha... Em Coimbra há o Museu da Ciência, que já ganhou um prémio europeu, mas há também, quase ao pé, o Museu Académico, que está fechado ou quase. Coimbra tem o Jardim Botânico, um sitio excelente, mas muito perto tem o Parque de Santa Cruz, ao abandono. Coimbra tem partes de médico e partes de monstro…


Por falar de medicina, Coimbra é um sítio avançado na saúde, área em que oferece serviços de primeira qualidade, mas é também um sítio onde, por vezes, queremos tirar um simples radiografia e demoramos horas. Coimbra é capaz do melhor e do pior, tal como o país.

P- Coimbra é então o reflexo do país?

R-Sim. Aliás, já foi capital do país quando os cristãos vieram do norte para o sul. O actual Paço das Escolas, na primeira dinastia, foi  a casa de vários reis. Há uma centralidade de Coimbra que é histórica, para além de geográfica. Coimbra é, de algum modo, o centro do centro. Nem é litoral, nem interior. Nem é planície, nem é montanha. Situa-se onde acaba a planície e começa a montanha. Em meia hora podemos estar na praia ou na serra. É curioso que do ponto de vista da paisagem natural natural haja em Portugal grande variedade e Coimbra proporcione imediatamente essa variedade.


P- Pode dar exemplos dos problemas da cidade?

R- Falei da centralidade da Universidade. Mas esta, por vezes, e nem sempre a culpa é dela, actualmente até pouca culpa é dela, tem-se ligado mal com a cidade. Sempre houve esta separação entre os doutores  e os futricas. Uma das coisas que sempre me impressionou é que uma pessoa, mal fique licenciada, ou mesmo antes, já seja chamada de doutora. Esta estratificação social é nítida em Coimbra e conduz a uma separação até do ponto de vista futebolístico. A Académica é a equipa dos doutores, embora agora já não tanto, e o União de Coimbra é a equipa dos futricas. Coimbra só poderia melhorar se se entrosasse mais, se conseguisse esbater os contrastes sociais. Por outras palavras, temos um presidente da câmara, que toma em princípio conta da cidade, e temos um reitor, que gere uma cidade à parte. O reitor governa uma mini-cidade de muitos professores, funcionários e, sobretudo, estudantes, ao todo cerca de 23.000 pessoas numa cidade de 100.000 habitantes. Um quarto da cidade está na Universidade. A capacidade que a Universidade tem de mobilização de pessoas de fora, principalmente de jovens, devia ser uma força transformadora, criativ, da cidade, mas isso não se nota muito. As cidades actuais transformam-se não tanto por construir por fazer um prédio mais alto mas por serem capazes de mostrar ambição no domínio cultural, de exibirem a sua diferença no plano cultural. Por serem diferentes são sítios onde apetece ir. A A1 tem uma placa que diz “cidade do conhecimento”. É melhor que “cidade museu”, como estava antes, mas acho que talvez devesse dizer “cidade da ciência e da cultura”. Era por aí que Coimbra devia marcar a diferença.

P- E não marca?

R- Sim, há coisas em que marca. Temos aqui, por exemplo, um centro de neurociências e biologia celular: temos uma incubadora de empresas ligada à universidade, o Instituto Pedro Nunes, que é uma das melhoresa nível mundial; temos empresas ligadas ao software, absolutamente extraordinárias como a Critical Software; temos um supercomputador, a "Milipeia", que é o maior do país; temos uma série de coisas muito boas na ciência. Naquilo que depende mais da Universidade, como a ciência, vemos um certo avanço. Na cultura, área em que deveria haver um caminhar conjunto entre a Universidade e a cidade, a ligação não se vê. A capacidade de transformação que os estudantes têm, a criatividade que neles reside, não são aproveitadas da melhor maneira. Há várias iniciativas até, mas não há uma “movida cultural” em Coimbra. E  a responsabilidade é muito mais da cidade, que está encolhida, sem projecto cultural, do que da Universidade, que tem crescido nesta área. A Universidade, apesar de tudo, ainda é o sítio onde se vão fazendo coisas bastante interessantes. Na Associação Académica há grupos que promovem as mais variadas actividades culturais, um trabalho que acaba por não ter a caixa de ressonância que devia ser a cidade. Vemos grupos de teatro com pequenos públicos, que não conseguem fazer coisas que chamem pessoas de fora; há bons espectáculos que não têm, porém, a dimensão e o impacto para trazer gente de fora. Coimbra devia ser bastante mais exigente para consigo no domínio da cultura.

P- Pode dar-me exemplos de problemas da cidade?

R- O Estádio Municipal de Coimbra é um verdadeiro monstro. A câmara municipal está endividada até ao pescoço por ter feito uma aposta completamente errada no estádio. E os responsáveis não são punidos pela opinião pública. Parece que toda a gente acha bem que se tenha feito um estádio de 30.000 pessoas onde só vão 3000, se forem. Isso devia ter uma solução. Estamos todos a pagar uma coisa que não serve praticamente para nada. Qualquer solução seria melhor do que manter aquele OVNI, uma estrutura gigante que pousou naquele sítio da cidade e que não há meio de levantar voo e ir para o sítio extraterrestre de onde veio. É feiíssimo, desfigurou a maior praça da cidade em favor de um centro comercial.  Um outro caso é a penitenciária de Coimbra. Tem mais de cem anos e as condições são absolutamente desumanas. Hoje em dia, as prisões não se fazem no meio das cidades. São necessárias, mas não no meio de uma zona verde, entre o Parque de Santa Cruz e o Jardim Botânico. Se aquela prisão desaparecesse, o que é muito fácil, tínhamos ali um um parque verde excelente. Uma parte do edifício podia-se até aproveitar. Eu propus que se fizesse uma Casa do Conhecimento. Mas só vejo pequena política. Nunca se poderá mudar aquilo se não houver uma ideia e uma vontade política forte. E estes são apenas dois exemplos, o estádio e a penitenciária, de cancros da cidade. 

P- Coimbra tem cancros?

R- Sim, eu nunca fui à penitenciária, até porque nunca fui preso, e não vou ao estádio, para não contribuir para o desatino, mas os dois estão à vista de todos. Por outro lado, a construção do Centro Comercial Fórum é inenarrável. Há uma torre que  macaqueia a torre da universidade. É um sítio que podia jogar com a paisagem da margem esquerda de Coimbra, mas que a destruiu. Outro sítio que não está bem é a Rua da Sofia, que já foi uma rua nobre. Estão aí algumas igrejas e colégios do tempo em que D. João III trouxe a Universidade para Coimbra, mas está tudo semi-abandonado. O trânsito não faz sentido, a rua devia ser entregue aos peões. A Baixa tem um casario algo decrépito, agravado agora por terem feito um buraco para o metro passar e não se saber se o metro vai ou não passar por esse buraco. Provavelmente, com a crise, não haverá metro nenhum e, portanto, ficará o buraco. A Alta também tem prédios que estão a cair e dever-se-ia actuar. Bem sei que é mais fácil de dizer do que de fazer, mas as cidades históricas têm de cuidar do seu património. Oxalá a candidatura à UNESCO proporcione uma transformação. Já começou a haver na Universidade. Mas, lá está, a separação entre Universidade e cidade: falta o resto. A cidade praticamente não entrou na candidatura. A Sé Velha não deveria também ser parte do património mundial?

P- O que se podia fazer na Baixa?

R-  Se for a uma praça chamada do Arnado, não encontra a dita Praça, mas sim um bloco preto com o tamanho da praça. Isso visto da Torre parece inacreditável. Nunca foi demolido, não sei porquê. Pode-se dizer: foi no tempo do PREC que deixaram construir aquilo. Pois foi, mas uma coisa que deixaram fazer agora, e não há PREC nenhum, foi as Torres do Mondego, que estragaram o postal ilustrado que era a vista de Coimbra de Santa Clara. Faz sombra sobre o pavilhão de Hannover do Siza Vieira e do Souto Moura. As obras estão embargadas, mas o Parque Verde, que foi bem recuperado, com uma ponte pedonal emblemática, está ensombrado por aquela mini-Manhattan, entalada entre uma via-férrea e um rio. O objectivo é o lucro e não a qualidade de vida. Outro cancro!

A Estação Velha não tem ponta por onde se lhe pegue. Qualquer cidade  tem uma estação de comboios melhor do que aquela. Passa-se por cima da linha, o estacionamento é inapropriado, as bichas de táxi são inefáveis. Isso é uma coisa que está tal  e qual como no século XIX, parece um museu ferroviário. Em equipamentos públicos, Coimbra parece não saber que uma cidade tem de ter uma estação ferroviária, um tribunal, etc.

P- E a Alta?

R- O Estado Novo fez algo muito criticável. As obras na Alta arrasaram uma cidade medieval, para fazerem prédios mussolínicos. Enfim, está feito, está feito, mas se me tivessem perguntado teria recomendado algo um bocadinho diferente. Das reconstruções recentes, a do Museu da Ciência está muito bem feita. Temos coisas pelas quais vale a pena vir a Coimbra, e que deveríamos publicitar mais. À Biblioteca Joanina vem muita gente, mas pode vir mais. Podemos projectar o Museu da Ciência e a Biblioteca Joanina ainda mais, reforçando o circuito turístico. A cidade sempre foi uma cidade de ciência e sempre foi uma cidade do livro, de editores, autores, livrarias e bibliotecas.  O Museu Nacional Machado de Castro, ao lado, está fechado há demasiado tempo. Deveria também ser mais ligado ao resto. O potencial que aqui existe é incrível. Perto do rio, Santa Clara-a-Velha e a Quinta das Lágrimas são dois dos bons sítios de Coimbra.  

P-  Coimbra pode ser considerada uma cidade de lutas?

R- Sim. Coimbra tem alguma tradição nesse aspecto. A juventude que habita a universidade é irreverente, lutadora. A Geração de 70 quis mudar o país sem o ter conseguido: Antero Quental, Eça de Queirós, etc. Mas mais tarde, chamaram-se “Vencidos da Vida”. Queriam tornar Portugal mais europeu, na altura o modelo era França, iam à Estação Velha buscar caixotes de livros franceses. Depois veio a República e a Universidade levou uma reforma grande, passou a ter concorrência. Acabou a Faculdade de Teologia e criou-se a de Letras. Alguns dos políticos da 1.ª República foram professores aqui. No Estado Novo, Coimbra esteve muito ligada a figuras do regime. Salazar foi aqui professor e Coimbra ficou com essa marca. Mas houve, em 1969, uma revolta estudantil que, de facto, foi premonitória do 25 de Abril  que ocorreu cinco anos depois. O 25 de Abril também passou por aqui, como é evidente. Eu lembro-me bem disso, pois era estudante na altura. Hoje em dia, os movimentos estudantis não me parecem nem grandes nem ambiciosos. Os estudantes teriam porventura mais razões para se revoltarem do que julgam. A chamada Geração à Rasca, expressando descontentamento por causa do trabalho precário e do desemprego, fez grandes manifestações em Lisboa e Porto, mas em Coimbra quase não houve nada.

 P- Os estudantes, hoje em dia, não estão a actuar como seria de esperar?

R- Os estudantes de Coimbra têm uma coisa muito boa:  estarem reunidos na Associação Académica, que representa todos os estudantes, e que é  a maior do país e  uma das mais antigas do mundo. Acho que, se a Associação Académica quisesse, muita coisa poderia mudar, até ao nível do funcionamento da universidade e da cidade, coisas concretas que têm a ver com a vida dos estudantes. Mas parece que muitos se preocupam mais com o fado e a festa.

P- Vê Coimbra a cores ou a preto e branco? 

R- Há zonas a preto e branco e outras a cores. Tem sítios a preto e branco, que é preciso colorir. E tem sítios a cores onde é preciso não borrar a pintura. Há a hipótese de fazer um excelente quadro. A localização, o tamanho, os meios, por exemplo, bibliotecas, laboratórios, de serviços, etc. são magníficos. O objectivo de Coimbra poderia ser emular Cambridge, uma cidade tranquila para estudar, mas também um sítio de grande progresso. Cambridge é um sítio efervescente, com indústria de software,  biotecnologia,  coisas que Coimbra já começou a ter. Eu sou optimista e estou em crer que o quadro, daqui por uns tempos, vai melhorar, o país todo vai melhorar. Não me preocupa tanto o que falta fazer, preocupa-me, isso sim, não haver planos para fazer. O bloqueio da vontade é o pior dos bloqueios. Mas tem bom remédio.

1 comentário:

Cláudia S. Tomazi disse...

Admirável a exposição do Doutor Carlos Fiolhais,

“cidade da cultura e da ciência”.

Humanamente em Coimbra há o ideal solidário e completa-se as diferenças; é e, não somente idéia serva ao contraste gestor a dimensão unidade.

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