sexta-feira, 18 de maio de 2012

TRETAS ESTAMINAIS

A crioestaminal, uma empresa que se dedica à recolha e preservação de células do sangue do cordão umbilical, iniciou recentemente uma campanha de publicidade bastante reprovável:



Há utilidade reconhecida na preservação das células do sangue do cordão umbilical em bancos públicos, em que as células podem ser transplantadas para qualquer pessoa que delas necessite (não apenas o dador ou os seus familiares). Ao contrário da ideia que se pretende fazer passar no anúncio, e de um modo eticamente abjecto, a preservação de células do sangue do cordão umbilical para uso próprio é altamente controverso, com uma utilidade muito, mas mesmo muito, questionável. Em grande medida, é um exercício de pura futurologia médica, mais próximo da ficção científica do que da ciência.

É muito difícil estimar a probabilidade de uma criança necessitar das células do sangue do seu próprio cordão umbilical. Isto, porque muitas das potenciais aplicações ainda não existem. Mas é muito baixa. Qualquer coisa entre uma hipótese em 1000 e uma hipótese em 200000.

As recomendações da Academia Americana de Pediatria acerca deste assunto são estas:

1. As doações do sangue do cordão umbilical devem ser desencorajadas sempre que o sangue do cordão umbilical seja guardado exclusivamente para uso pessoal. Isto, porque muitas condições clínicas que poderiam ser tratadas com sangue do cordão umbilical já existem no sangue da criança. Os médicos devem estar conscientes de que os bancos de sangue do cordão umbilical privados fazem alegações não fundamentadas aos futuros pais, prometendo uma espécie de seguro para as crianças contra doenças graves no futuro.

2. Não sendo um procedimento habitual, a recolha de sangue do cordão umbilical para uso próprio, deve ser encorajada apenas quando se tem conhecimento da existência de um membro da família com uma condição clínica que possa potencialmente beneficiar com um transplante do sangue do cordão umbilical.

3. A doação de sangue do cordão umbilical deve ser encorajada quando se destinar a um banco para uso público.

4. Como não há dados científicos suficientes para justificar a preservação de sangue do cordão umbilical para auto-transplantes e é difícil fazer uma estimativa da necessidade desses transplantes, e tendo em conta  possibilidade do transplante a partir de dadores não familiares, a preservação privada do sangue do cordão  como um "seguro biológico" deve ser desencorajada.

Em Portugal, o que faz sentido é doar o sangue do cordão ao Lusocord, o banco público de células de sangue do cordão umbilical. É (relativamente) fácil, é barato (grátis) e pode ajudar milhões.

Infelizmente, o Lusocord está com dificuldades financeiras, o que é absurdo. Esperemos que os problemas sejam ultrapassados e que haja uma aposta do governo em manter e expandir esse serviço público. De qualquer forma, a eventual falta de capacidade do Lusocord não valida a Crioestaminal como alternativa. Quando uma coisa que serve para alguma coisa não está a funcionar, de nada adianta substituí-la por outra que não serve para nada.

Um nota final: o artigo científico citado no anúncio refere-se à probabilidade de transplantes de células estaminais hematopoéticas (presentes no sangue do cordão) ao longo da vida, mas de qualquer origem. Ou seja: não apenas as do sangue cordão umbilical para auto-transplante, mas também transplantes de terceiros, nomeadamente da medula óssea (que podem ser recolhidas ao longo da vida). Usar estes números para sustentar a possível necessidade de auto-transplante, como se isso fosse a única possibilidade, é pura e simplemente intelectualmente desonesto.


Para além disso, e segundo o estudo citado, a probabilidade de necessitar de um transplante de células estaminais hematopoéticas aumenta com a idade, sendo especialmente significativa depois dos 40. O anúncio, já que se baseia neste estudo, deveria ser protagonizado por um quarentão barrigudo e calvo.

4 comentários:

Anónimo disse...

O que mais me chateia é a deslealdade intelectual. Os fundadores da empresa sao colegas meus de Bioquimica (dos idos anos) e sabem muito bem que estao a mentir. É usar o conhecimento que têm para enganar, e isso é reprovável a todos os níveis. É desacreditar a ciência e não merecem o grau que têm...

Anónimo disse...

Não me identifico com o meu verdadeiro nome porque os conhecimentos que tenho de Direito português e comunitário permitem-me concluir, no presente, pela insegurança dos meus dados pessoais na internet.

Até à vigência de uma política de proteção de dados, na internet, de lógica europeia (se o titular nada diz, os dados não são para partilhar), enquanto vigora a lógica americana (se o titular dos dados nada diz, são para partilhar), continuarei sempre a usar nicks.

Agradeço-vos imenso este post sobre as células estaminais, mas é irónico que ao mesmo tempo que se protificam a esclarecer as pessoas através do conhecimento científico, as instiguem a partilhar dados pessoais num meio tão desprotegido.

Quando não sabemos, podemos agir com base nesse desconhecimento, mas nunca aconselhar os outros a fazerem o mesmo.

Cumps
Stout

Anónimo disse...

No que diz respeito a questões de interese público que passam pela aldrabice mercantilista a agir poderosamente (no caso, publicidade televisiva) sem qualqer pudor ético, bem hajam os que, tendo alguma influência em determinados meios, ou mesmo que a não tenham, dão a cara para denunciar as situações.

A dose de medo a que cada um se auto-permite, muitas vezes por necessidade profissional, é legítima, mas é igualmente legítimo o que decide estar-se nas tintas para o medo. A ditadura do medo só tem poder se as pessoas lho derem, e a coragem pode ser - e esperemos sempre que o seja - contagiosa.

HR

Anónimo disse...

A ciência estaminal não passa afinal de mais uma ciência da treta para enganar papalvos.

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