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Começo
por transcrever o parágrafo final do comentário de João Boaventura ao meu último post, “Os Exames Nacionais do Ensino
Básico na Crista da Onda” (10/05/2012), em que o seu autor faz o seguinte apelo: “ E bom seria uma revisão séria ao Processo Bolonha, para expurgar de erros
ou descortinar-lhe um caminho que se coadune com o século XXI, ou o que isso
possa significar de benéfico para um ensino escorreito e limpo de mazelas”.
Movido por este comentário, dei comigo, em
reminiscências de memória, a vasculhar uma pasta onde guardo perto de
oitocentos recortes de artigos meus de jornais, e aí encontrei um extenso artigo
de opinião intitulado “Processo de Bolonha e graus académicos” ( Público, 13/06/2005).
Nesse artigo fiz a análise de um processo atribulado que, ainda hoje, está longe
de ser pacífico, e muito menos consensual, no meio académico nacional (na
altura mais acesa deste discussão, um dos seus discordantes foi o actual Reitor
da Universidade Coimbra, João Gabriel Silva, ao tempo professor catedrático da
respectiva Faculdade de Ciências e Tecnologia, num artigo de opinião publicado
no “Diário de Coimbra”). Passo a transcrever esse meu artigo:
“Processo
de Bolonha e graus académicos”:
“A
vida é um pouco mais complexa do que se diz, e também as circunstâncias. Há uma
necessidade premente de mostrar essa complexidade” (Marcel Proust, 1871-1922).
Do valioso e extenso espólio literário
de Eça, recolho ser Portugal um país traduzido do francês em calão. Hoje, neste
seu torrão natal, no jeito bem nosso de complicar as coisas simples, passado
mais de um século, a língua de Shakespeare – hoje veículo de entendimento entre
parcelas territoriais espalhadas pelos cinco continentes – foi abastardada
pela adopção do termo licenciado como que a modos da forçada tradução para
português da palavra inglesa “bachelor” por parte da tutela da Educação depois
de inúmeras hesitações e consultas a meio mundo.
E isto é tanto mais estranho porque,
por exemplo, a Alemanha, a Áustria, a Bélgica, a Dinamarca e o Reino Unido
(constituído pela Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, com uma população de 60
milhões de almas), adoptaram o grau de “bachelor” para o 1.º ciclo de estudos
superiores. Pelo sim pelo não, para não ser taxado de ignorante (já pago
impostos q.b.!), consultei dicionários
que me deram a tradução de “bachelor” como sendo bacharel, tout
court e sem excepção. Respirei de alívio!
Reporto-me, agora, a uma breve
resenha cronológica do Processo de Bolonha em que se desenham umas tantas
intenções. Assim, 1ª. - “Declaração da Sorbonne” (Maio de 98) em que se
perspectiva já a constituição de um Espaço Europeu de Ensino Superior,
subscrita pelos ministros da Educação da Alemanha, França, Itália e Reino
Unido; 2.ª.- “Declaração de Bolonha II”, onde se fala claramente da “adopção
de um sistema de graus comparável e legível”;
3.ª. – “Comunicado de Berlim” (Setembro de 2003) em que feito apelo a uma
“certificação de qualidade”.
Dando resposta atempada a um
apelo de repartição de responsabilidades para a implementação do Processo de
Bolonha em território nacional (entre outras, a audição de associações
profissionais), as ordens representativas de profissionais habilitados com
licenciaturas universitárias [aliás, as únicas existentes à época] reuniram-se
para se manifestarem “contra a proposta ministerial de designação
do grau de licenciado para o 1.º ciclo, com a duração de três anos, tendo
solicitado ao poder político que retire a designação de licenciatura e adopte para
os ciclos de formação antes do doutoramento as designações de bacharelato e
mestrado” (Agência Lusa, 07/10/2004).
Em reforço desta posição, e para
uma discussão alargada e mais reflectida deste processo, em 12 e 13 de Novembro
de 2004, nas instalações do Conselho Distrital de Coimbra da Ordem dos
Advogados, em representação do Conselho Nacional das Profissões Liberais, nove
ordens profissionais organizaram o seminário “Reflexos da Declaração de
Bolonha”, tendo todos os congressistas defendido (novamente) a atribuição do
grau de bacharel para o 1.º ciclo de estudos do ensino superior. Começo a
convencer-me que em Portugal, à sombra de princípios ditos democráticos, há um
prazer sádico dos seus governantes em auscultar os parceiros sociais, mesmo que
possuidores de um estatuto de “interesse público”, para decidir precisamente o
contrário!
Pela inexistência de uma Ordem dos
Professores, dando crédito à vox populi, “ quem
não tem cão caça com gato”, solicitei a
minha presença no referido seminário em representação do Sindicato Nacional dos
Professores Licenciados de que era, ao tempo, presidente da respectiva Mesa da Assembleia Geral. Pedido feito e
aceite com visível simpatia.
Na sua notável conferência
inaugural, com aplauso da assistência, o professor Adriano Moreira fez uma
crítica contundente à orientação de “universitar os
politécnicos ou politecnizar as universidades” Mais mostrou o seu desagrado pela desvalorização do actual grau de licenciado
– “com o prestígio da Universidade
que lhe deu a primeira credencial de título académico nobilitante – por poder passar a ser obtido em três
escassos anos de estudos superiores universitários (“Diário de Coimbra”,
13.Nov.2004).
O exemplo do ensino politécnico,
de início capacitado, apenas, para formações curtas de dois anos, sem
atribuição de grau académico, até à sua exigência em conceder doutoramentos
(único patamar a que não teve acesso pela réstia de bom senso dos responsáveis
que tutelam o ensino superior), torna mais paradoxal o dislate de uma
licenciatura universitária caminhando de cavalo para burro. No debate que se
seguiu, o jubilado catedrático do Instituto Superior de Ciências Sociais e
Políticas, com muita verve, não deixou de adiantar:
“Se um médico, com três anos de formação, me receitasse uma aspirina eu não a
tomava!”
Todavia, acontece que a involução
no processo formativo de uns tantos professores teve génese muito antes do Processo de Bolonha por
serem havidas em plano de igualdade as licenciaturas universitárias e as
licenciaturas politécnicas para a
docência do 2.º ciclo do ensino básico (tendo até havido a tentativa do
ministério da Educação em utilizar idêntico critério para o 3.º ciclo). Até com
escandalosa vantagem para estas últimas pelos motivos que julgo serem do
conhecimento da generalidade das pessoas que seguem, de uma maneira ou outra,
este statu quo.
Como amargamente referiu na altura,
o ex-bastonário da Ordem dos Advogados, José Miguel Júdice, nos últimos anos, o
ensino em Portugal deu como resultado “que uma
esmagadora maioria dos alunos [do ensino universitário] não tenha capacidade
para perceber o que lhes dizem, sendo completamente analfabetos em questões
culturais”. Pela minha parte, pergunto: É
esta a certificação de qualidade” de que faz apelo o “comunicado de Berlim”?
Para além disso, ponho sérias
reservas que a “adopção de um sistema de graus comparável e legível” não seja seriamente dificultada, para
consumo interno, pela existência do grau de licenciado antes e depois de
Bolonha e. para consumo externo, ainda
mais dificultada, pela possibilidade dos outros parceiros comunitários se verem
em palpos-de-aranha para estabelecerem a comparação e a legibilidade entre o
seu grau de bacharel e o nosso grau de licenciado. Não poucas vezes, o desejo
de ser diferente tem o seu quê de caricato!”
Mas
será que ainda se vai a tempo e haverá vontade política para aceitar , como escreveu Edmund Burke, que “as leis mal feitas constituem a pior forma
de governo”?
Na imagem: Manifestação, em Madrid, de estudantes contra o Processo de Bolonha.
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