domingo, 13 de maio de 2012

O PROCESSO DE BOLONHA


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Começo por transcrever o parágrafo final do comentário de João Boaventura ao meu  último post,  “Os Exames Nacionais do Ensino Básico na Crista da Onda” (10/05/2012),   em que o seu autor faz o seguinte apelo: E bom seria uma revisão séria ao Processo Bolonha, para expurgar de erros ou descortinar-lhe um caminho que se coadune com o século XXI, ou o que isso possa significar de benéfico para um ensino escorreito e limpo de mazelas”.

Movido por este comentário, dei comigo, em reminiscências de memória, a vasculhar uma pasta onde guardo perto de oitocentos recortes de artigos meus de jornais, e aí encontrei um extenso artigo de opinião intitulado “Processo de Bolonha e graus académicos” ( Público, 13/06/2005). Nesse artigo fiz a análise de um processo atribulado que, ainda hoje, está longe de ser pacífico, e muito menos consensual, no meio académico nacional (na altura mais acesa deste discussão, um dos seus discordantes foi o actual Reitor da Universidade Coimbra, João Gabriel Silva, ao tempo professor catedrático da respectiva Faculdade de Ciências e Tecnologia, num artigo de opinião publicado no “Diário de Coimbra”). Passo a transcrever esse meu artigo:

“Processo de Bolonha e graus académicos”:

“A vida é um pouco mais complexa do que se diz, e também as circunstâncias. Há uma necessidade premente de mostrar essa complexidade” (Marcel Proust, 1871-1922).

Do valioso e extenso espólio literário de Eça, recolho ser Portugal um país traduzido do francês em calão. Hoje, neste seu torrão natal, no jeito bem nosso de complicar as coisas simples, passado mais de um século, a língua de Shakespeare – hoje veículo de entendimento entre parcelas territoriais espalhadas pelos cinco continentes  – foi abastardada pela adopção do termo licenciado como que a modos da forçada tradução para português da palavra inglesa “bachelor” por parte da tutela da Educação depois de inúmeras hesitações e consultas a meio mundo.

E isto é tanto mais estranho porque, por exemplo, a Alemanha, a Áustria, a Bélgica, a Dinamarca e o Reino Unido (constituído pela Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, com uma população de 60 milhões de almas), adoptaram o grau de “bachelor” para o 1.º ciclo de estudos superiores. Pelo sim pelo não, para não ser taxado de ignorante (já pago impostos q.b.!),  consultei dicionários que me deram a tradução de “bachelor” como sendo bacharel, tout court e sem excepção. Respirei de alívio!

Reporto-me, agora, a uma breve resenha cronológica do Processo de Bolonha em que se desenham umas tantas intenções. Assim, 1ª. - “Declaração da Sorbonne” (Maio de 98) em que se perspectiva já a constituição de um Espaço Europeu de Ensino Superior, subscrita pelos ministros da Educação da Alemanha, França, Itália e Reino Unido; 2.ª.- “Declaração de Bolonha II”, onde se fala claramente da “adopção de um sistema de graus comparável e legível”; 3.ª. – “Comunicado de Berlim” (Setembro de 2003) em que feito apelo a uma “certificação de qualidade”.

Dando resposta atempada a um apelo de repartição de responsabilidades para a implementação do Processo de Bolonha em território nacional (entre outras, a audição de associações profissionais), as ordens representativas de profissionais habilitados com licenciaturas universitárias [aliás, as únicas existentes à época] reuniram-se para se manifestarem  “contra a proposta ministerial de designação do grau de licenciado para o 1.º ciclo, com a duração de três anos, tendo solicitado ao poder político que retire a designação de licenciatura e adopte para os ciclos de formação antes do doutoramento as designações de bacharelato e mestrado” (Agência Lusa, 07/10/2004).

Em reforço desta posição, e para uma discussão alargada e mais reflectida deste processo, em 12 e 13 de Novembro de 2004, nas instalações do Conselho Distrital de Coimbra da Ordem dos Advogados, em representação do Conselho Nacional das Profissões Liberais, nove ordens profissionais organizaram o seminário “Reflexos da Declaração de Bolonha”, tendo todos os congressistas defendido (novamente) a atribuição do grau de bacharel para o 1.º ciclo de estudos do ensino superior. Começo a convencer-me que em Portugal, à sombra de princípios ditos democráticos, há um prazer sádico dos seus governantes em auscultar os parceiros sociais, mesmo que possuidores de um estatuto de “interesse público”, para decidir precisamente o contrário!

Pela inexistência de uma Ordem dos Professores, dando crédito à vox populi, “ quem não tem cão caça com gato”, solicitei a minha presença no referido seminário em representação do Sindicato Nacional dos Professores Licenciados de que era, ao tempo, presidente da respectiva  Mesa da Assembleia Geral. Pedido feito e aceite com visível simpatia.

Na sua notável conferência inaugural, com aplauso da assistência, o professor Adriano Moreira fez uma crítica contundente à orientação de “universitar os politécnicos ou politecnizar as universidades” Mais mostrou o seu desagrado pela desvalorização do actual grau de licenciado – “com o prestígio  da Universidade que lhe deu a primeira credencial de título académico nobilitante – por poder passar a ser obtido em três escassos anos de estudos superiores universitários (“Diário de Coimbra”, 13.Nov.2004).

O exemplo do ensino politécnico, de início capacitado, apenas, para formações curtas de dois anos, sem atribuição de grau académico, até à sua exigência em conceder doutoramentos (único patamar a que não teve acesso pela réstia de bom senso dos responsáveis que tutelam o ensino superior), torna mais paradoxal o dislate de uma licenciatura universitária caminhando de cavalo para burro. No debate que se seguiu, o jubilado catedrático do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, com muita verve, não deixou de adiantar: “Se um médico, com três anos de formação, me receitasse uma aspirina eu não a tomava!”

Todavia, acontece que a involução no processo formativo de uns tantos professores teve  génese muito antes do Processo de Bolonha por serem havidas em plano de igualdade as licenciaturas universitárias e as licenciaturas politécnicas  para a docência do 2.º ciclo do ensino básico (tendo até havido a tentativa do ministério da Educação em utilizar idêntico critério para o 3.º ciclo). Até com escandalosa vantagem para estas últimas pelos motivos que julgo serem do conhecimento da generalidade das pessoas que seguem, de uma maneira ou outra, este statu quo.

Como amargamente referiu na altura, o ex-bastonário da Ordem dos Advogados, José Miguel Júdice, nos últimos anos, o ensino em Portugal deu como resultado “que uma esmagadora maioria dos alunos [do ensino universitário] não tenha capacidade para perceber o que lhes dizem, sendo completamente analfabetos em questões culturais”. Pela minha parte, pergunto: É esta a certificação de qualidade” de que faz apelo o “comunicado de Berlim”?

Para além disso, ponho sérias reservas que a “adopção  de um sistema de graus comparável e legível” não seja seriamente dificultada, para consumo interno, pela existência do grau de licenciado antes e depois de Bolonha e.  para consumo externo, ainda mais dificultada, pela possibilidade dos outros parceiros comunitários se verem em palpos-de-aranha para estabelecerem a comparação e a legibilidade entre o seu grau de bacharel e o nosso grau de licenciado. Não poucas vezes, o desejo de ser diferente tem o seu quê de caricato!”

Mas será que ainda se vai a tempo e haverá vontade política para  aceitar , como escreveu Edmund Burke, que “as leis mal feitas constituem a pior forma de governo”?

Na imagem: Manifestação, em Madrid, de estudantes contra o Processo de Bolonha.

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