quinta-feira, 10 de maio de 2012
Exames e ficção educativa
Muito razoável e ponderadamente, a Helena dá aqui voz a quem considera importante as avaliações externas, tanto nacionais como internacionais, mas também a quem considera que tais avaliações são limitadoras porque 1) treinam os alunos como macacos para fazer exames e 2) retiram aos alunos a possibilidade de outras aprendizagens mais importantes ou pelo menos tão importantes quanto essas.
Eu penso que estas duas preocupações só fazem sentido quando já se pressupõe que os exames estão mal feitos, não avaliando o que realmente devem avaliar, mas antes pormenores instrumentais, muitas vezes até laterais, e que nem sequer reflectem as competências e conteúdos centrais das respectivas áreas.
Para melhor se compreender isto pense-se como seria estranho uma pessoa dizer que o Jacinto é um fantástico pianista, mas toca sofrivelmente o piano e por isso nunca se destacou nos mais importantes eventos internacionais da área, nunca tendo sido merecedor de destaque por parte dos júris que o avaliaram. Ou que o Pedro é um maravilhoso futebolista, mas nunca marcou um golo, perde as bolas quase todas e quando joga à defesa é um desastre.
Estas afirmações são estranhas porque para nós é óbvio que as actividades públicas do pianista e do futebolista não são artificialismos escolares que pouca relação têm com a realidade das áreas respectivas. Se nessas actividades eles não se revelam bons profissionais, não há lugar para dizer que são bons profissionais, proficientes e competentes, mas que falham nessas avaliações públicas.
O que acontece sistematicamente com as avaliações escolares é não terem quase relação com a realidade dos conteúdos e competências da área que visam avaliar. É o caso do exame de filosofia de que falei aqui: o problema não é tanto ter erros científicos de pormenor (errar é humano, e esses pormenores corrigem-se facilmente); o problema é que a prova não tem quase relação alguma com os conteúdos e competências próprias da disciplina. Na verdade, para responder a grande parte das perguntas, basta saber ler textos em português; e quando isso não acontece, o que está sendo avaliado são competências e conteúdos puramente instrumentais e não finais. É como avaliar um pianista obrigando-o a fazer exercícios de destreza manual, ou avaliar um futebolista pondo-o apenas a correr: quanto a tocar piano e jogar futebol, estas duas competências são meramente instrumentais e seria tolo avaliá-las em exames nacionais precisamente porque ao avaliar as competências finais reais do piano e do futebol estas competências instrumentais necessariamente se manifestam.
Em conclusão, a inquietação que muitas pessoas sentem com os exames nacionais e internacionais, e a que muito responsável e profissionalmente a Helena dá voz na excelente entrevista que deu, resulta de se ter em mente apenas um modelo errado de avaliação. Um modelo em que não é a realidade das competências e conteúdos da área a ditar o que se avalia, mas antes a facilidade de fazer perguntas de pormenor a cujas respostas é mais fácil atribuir notas. Este é um dos problemas centrais da avaliação: há sempre uma tensão entre o que é mais fácil avaliar e o que realmente deve ser avaliado, tendo em conta os conteúdos e competências próprias da área. E nas avaliações feitas por pessoas não muito competentes profissionalmente na sua própria área avalia-se quase sempre o irrelevante e não se avalia o relevante. As pessoas que vêem isso manifestam então a preocupação a que a Helena deu voz.
Espero com este texto ter tornado clara a importância de se fazer bons exames. Quando se fazem bons exames, o que se avalia é realmente se o aluno é bom, médio ou sofrível naquela área, e não se o aluno foi capaz de macaquear meia-dúzia de tolices que não têm grande relação com os conteúdos e competências reais daquela área. E eu concordo que se vamos fazer maus exames, como ocorre em Portugal desde há décadas, mais vale não haver quaisquer exames: porque quando se faz maus exames são os bons professores, que poderiam estar a fazer um bom trabalho com os seus alunos, que são obrigados a fazer uma fantasia para os preparar para fazer exames que são irrelevantes para a sua formação.
Devemos também ter a candura de assumir uma coisa muito simples: se fizermos bons exames de biologia, matemática, filosofia ou português, muitos professores do ensino superior e do ensino secundário reprovariam nesses mesmos exames, ou teriam notas sofríveis. Foi neste mesmo blog que um leitor me disse algo de que nunca me esqueci: o ensino de um país é sempre o reflexo do estado cultural desse mesmo país. E é verdade. A pobreza do ensino nacional, e respectivos exames, é apenas um reflexo da pobre formação académica e cultural nacional. Para quebrar o círculo vicioso é preciso ter a candura de tentar fazer melhor aos nossos alunos do que aquilo que nos fizeram a nós, e ter a candura de ver que os nossos melhores alunos são melhores do que nós mesmos (isso acontece-me efectivamente comigo: os meus melhores alunos são bem melhores do que eu). Para quebrar o círculo vicioso é preciso que genuinamente se esteja a tentar dar aos jovens um ensino de melhor qualidade do que o que tivemos, o que significa que a maior parte dos professores terão de ter a modéstia de assumir os seus limites e tentar fazer o melhor possível com base neles, com muita honestidade e profissionalismo.
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1 comentário:
Concordância total.
Mas lembrando que (ainda) há que
entenda que o importante não é aprender a
tocar piano mas antes aprender a aprender a
tocar piano. Sendo certo que só toca (bem)
piano quem aprendeu a tocar piano e para isso
treinou, treinou, treinou...
Nos futebóis também é assim.
E em pastelaria.
E no fabrico de sapatos.
E a escrever romances.
E... em tudo.
Porque há-de a escola insistir em negar o que
a vida tão clara e abundantemente evidencia? E
em impingi-lo autoritaria e totalitariamente a
quem discorda de tal "filosofia"?
Que os partidários da coisa se avenham com o
método é direito que lhes assiste.
Agora impô-lo aos outros...
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