sábado, 5 de maio de 2012
A burocratização do ensino e da investigação
Vários académicos se têm queixado da crescente burocratização da vida académica. É isso que está em causa no comentário de George Steiner que a Helena republicou aqui, e em vários outros artigos de académicos contemporâneos; o artigo mais recente que li sobre este tema é o da filósofa Susan Haack, “Science, Scientism, and Anti-Science in the Age of Preposterism”. O que está em causa é a enxurrada de formulários, preceitos, maneiras de proceder, rituais algo vácuos e outras atribulações da vida académica contemporânea, que nos faz parecer mais com o célebre Chaplin da linha de montagem do que com um intelectual criativo e responsável. A burocratização é também uma infantilização — e estimula a ficção académica, como sublinha Haack. Recentemente, os professores portugueses do ensino secundário sentiram na pele o mesmo género de assalto burocrático nas suas escolas, nomeadamente no modo como são avaliados, e no modo como têm de prestar contas, avaliar alunos e preparar aulas.
Quem protesta contra este estado de coisas, como a Susan Haack, é porque vê que esta burocratização tem duas consequências indesejáveis, entre outras. Primeiro, e a mais lamentável, afasta-nos do trabalho real que temos por missão fazer: estudar e ensinar. Mal nos damos conta, e não há tempo para fazer nenhuma destas coisas bem porque passamos o tempo a preencher papéis e a fazer reuniões vácuas. Segundo, convida-nos a fazer trabalho vácuo mas que tem todas as aparências de trabalho académico e escolar sério — porque obedece a todos os requisitos burocráticos.
Em grande parte, concordo com este diagnóstico. Só que é preciso ver de onde vem esta necessidade de burocratização: vem do estatismo, da centralização, do serviço público. É algo incoerente ansiar por uma era em que as elites académicas, por serem poucas e gastarem pouco dinheiro público, podiam fazer mais ou menos o que queriam, contratando os amigos que já pertenciam ao clube, sem dar contas públicas das suas decisões, sem ter de preencher formulários, obedecer a preceitos legais e dar pelo menos uma aparência de imparcialidade, ao mesmo tempo que se continua a clamar por ensino e investigação fortemente financiados pelos impostos das pessoas. É incoerente porque se as instituições de investigação e ensino forem fortemente financiadas pelos dinheiros públicos, os responsáveis políticos não estão a fazer outra coisa senão o seu dever ao exigir contas públicas. Acontece que para prestar contas públicas é preciso burocratizar praticamente tudo o que faz um investigador ou um professor.
Assim, George Steiner pode lamentar que hoje não seja possível contratar alguém com a mesma desenvoltura com que ele o foi por Oppenheimer; mas a verdade é que se isso fosse possível hoje, haveria um escândalo público porque outra pessoa que quisesse aquele lugar iria protestar — e com razão — que nenhum processo imparcial, público e justo tinha permitido preteri-lo a favor do outro candidato. A única diferença relativamente ao seu tempo é que na altura quase não havia pessoas como ele, com os recursos necessários para se dedicar a estudos sem saídas profissionais óbvias, pelo que ninguém protestou pelo favoritismo arbitrário de Oppenheimer.
Veja-se as coisas como quisermos, não é possível ter ao mesmo tempo fortes investimentos públicos no ensino e na investigação, e não ter a burocratização que daí resulta. A menos que queiramos voltar aos bons velhos tempos em que as decisões dos deuses do Olimpo académico, por respeito e deferência, não eram objecto de escrutínio público.
A minha posição sobre isto é muito clara. A burocratização do ensino e da investigação prejudica fortemente a qualidade de ambos, porque a burocratização é incompatível com a novidade, a criatividade e a honestidade intelectual (Haack mostra muito bem como a burocratização prostitui o investigador, que tem de contar meias mentiras nos formulários em que pede fundos públicos, voltando a meias mentiras depois, quando justifica o que fez com eles). Mas a burocratização é uma consequência inevitável na necessidade de prestar contas públicas do que se faz com os recursos públicos. Consequentemente, se quisermos eliminar ou diminuir a burocratização do ensino e da investigação, temos de diminuir o investimento público nestas áreas, deixando-as entregues à livre iniciativa. Evidentemente, esta opinião está longe de ser agradável para quem quer que cada vez mais dinheiro público seja investido precisamente na sua área profissional.
Do meu ponto de vista precisamos de pluralidade epistémica, e não de burocratização académica e escolar. Precisamos de livre iniciativa, liberdade, experimentação. Precisamos de entusiasmo pelo que deveria estar no centro da nossa vida de académicos e professores — o estudo e o ensino. Ora, o investimento público no ensino e na investigação é incompatível com estas coisas; sempre foi, e sempre será. Não podemos fazer surgir o novo e a criatividade por decreto, preenchendo formulários sem fim, nem garantir a excelência do ensino e da investigação pelo mesmo meio.
Ou será que estou a ver mal?
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11 comentários:
Estou de acordo com o Desidério sobre a relação existente entre o financiamento público do ensino e da investigação e a necessidade de controlo, de “accountability”. Gostaria, no entanto, de chamar a atenção para uma outra perspectiva do problema. Se olharmos para as tecnologias que utilizamos na vida quotidiana, desde a rede eléctrica ao automóvel, passando pelos computadores, telemóveis, etc., etc. há um traço surpreendente: a facilidade de operação, por parte do utilizador, independentemente da complexidade dos conhecimentos e das técnicas que estão por detrás desses dispositivos.
O controlo burocrático da prestação de contas é também uma tecnologia, agora de carácter social. Só que ela é muito rudimentar do ponto de vista do utilizador. Seja no ensino e na investigação públicos, seja nos privados, não se pode fugir à prestação de contas. Mas seria útil que se investisse fortemente nessa tecnologia social de forma a torná-la tão fácil de usar pelo “prestador de contas” como o é a luz eléctrica nas nossas casas. As actuais formas de controlo burocrático são pouco burocráticas (burocracia como gestão racional) pois são irracionais e geram um enorme desperdício (tempo e energia perdidos), para além dos problemas éticos apontados. O problema não será feudalizar ensino e investigação nem proclamar a pura anarquia, mas tornar a tecnologia da prestação de contas muito mais fácil e racional para quem tem de a utilizar.
Excelente achega, JCM. A questão é que a razão pela qual os telemóveis, por exemplo, sendo tão complexos são apesar disso tão fáceis de usar é que não foram desenvolvidos centralmente, pelo estado, mas antes em concorrência livre de ideias. As boas ideias foram copiadas, as más deitadas fora, muito rapidamente, respondendo às reais necessidades e interesses dos utilizadores. Você tem toda a razão: os sistemas burocráticos de controlo (desde a recolha de impostos ao controlo dos dinheiros públicos nas escolas e universidades) são sistemas que podem ser optimizados. O problema é que só podem ser optimizados em regime de concorrência aberta, porque só assim surgem boas ideias; mas o próprio sistema é necessariamente centralizado e monolítico porque tem de ser um só, de modo que nunca poderá tornar-se significativamente melhor, ainda que possa melhorar ligeiramente. Deixe-me só terminar com isto: veja como em geral uma coisa tão simples como um site é quase ininteligível quando se trata de um site público, por oposição a um site privado, como a Amazon; no primeiro (como é o caso do Portal das Finanças) uma pessoa vê-se grega para fazer uma coisa tão simples como mudar de endereço fiscal; na segunda isso faz-se em 15 segundos.
Nada me garante que o sistema das Finanças não tenha sido produzido por uma empresa privada em regime de concorrência. Por outro lado, tenho alguma experiência em compra de livros em diversos sites. Ao lado da excelência da Amazon (não sei alemão e compro com toda a facilidade música na amazon alemã), encontro muitos sites privados, nomeadamente portugueses, que deixam muito a desejar.
Mesmo que o sistema tenha de ser um só, isso não significa que o fornecimento de serviços para esse sistema não possa ser fornecido em regime de concorrência, e o próprio sistema pode ser comprado num mercado em regime de concorrência.
Só mais duas coisas que mostram que o problema é complexo. Muitas vezes nas escolas secundárias e básicas, naquelas escassas margens de autonomia e liberdade que possuem, o que acontece é que o burocratização se torna infernal, muito pior do que aquela que é imposta pelo ministério.
Mesmo em empresas privadas, de ramos diversos, se encontra esta propensão para burocratizar irracionalmente a vida da própria organização e até dos clientes.
Relativamente à ciência, a questão da presença do Estado ou de organismos públicos parece-me inultrapassável devido aos custos do empreendimento e também às suas aplicações militares, por exemplo. Portanto a necessidade de melhorar a tecnologia de prestação de contas é inultrapassável.
Assim mesmo, pelo menos no ensino básico e secundário, há
burocracia pela burocracia. Burocracia que parece existir só para
infernizar, pura e simplesmente.
Pequeno exemplo, entre muitos possíveis:
A lei diz que um diretor de turma deve informar os pais dos alunos
das matérias lecionadas pelos diferentes professores de uma turma.
E lá estaria então um professor de biologia, por exemplo, a dizer
aos pais que o professor de português deu e está a dar Pessoa
ortónimo, que o de Matemática está a lecionar logaritmos, que o de
filosofia está a dar... etc, etc. Ora, fica por perceber por que
raio não há-de o pai ou a mãe consultar os sumários que o seu filho
devia ter registado no caderno de cada disciplina! Há mesmo alunos
que se recusam a escrever sumários, porque "não tem interesse e não
serve para nada"...
Quanto à avaliação de professores, o que tem havido é simplesmente
surrealista...
Porém, o que digo não invalida o que está escrito no texto e nos
comentários de JCM e Desidério M.
Humildemente, chamo a atenção para que este tema já tinha sido abordado, embora numa perspectiva histórica, aqui:
http://a-ciencia-nao-e-neutra.blogspot.pt/2011/06/universidades-ascensao-do-formalismo-e.html
Mais propaganda pseudo-liberal.
Não existem regras burocraticas em grandes empresas privadas, por exemplo nos bancos, ou mesmo na Microsoft ? Muito me contas...
Por outro lado, não existem exemplos historicos de resultados espectaculares da investigação obtidos graças ao financiamento publico (por exemplo : com a corrida à lua no século XX) ? Muito me contas...
Curiosamente, o Desidério raciocina com o mesmo dogmatismo do que a administração soviética no tempo dos planos quinquenais. As ideias que lhe vêm à cabeça têm de ser boas, logo a realidade apenas lhe interessa na medida em que as confirma...
Na pratica, existe ja, e ninguém se queixa, uma vasta gama de investigação financiada por empresas privadas em regime de concorrência. Por outro lado, a actividade "investigação cientifica" não se encontra sujeita a nenhum monopolio e é hoje perfeitamente possivel criar uma empresa comercial que se dedique a essa actividade. Existem alias muitas empresas comerciais que o fazem, a titulo incidental, principal ou mesmo exclusivo.
O ponto é saber se a concorrência pode financiar a totalidade da investigação cientifica que interessa à comunidade politica. E' evidente que não pode. A concorrência vai funcionar nos ramos da investigação que interessam imediatamente as empresas comerciais porque se traduzem logo em ganhos de produtividade, ou em novos mercados, etc. Nestes casos, as proprias empresas ja pagam muitas vezes directamente a investigação. Nos outros, nomeadamente no campo da investigação fundamental, sem resultados imediatos com valor economico mensuravel, nada substituira o investimento publico.
Por esta razão, e também porque a investigação fundamental é muitas vezes um factor determinante para estruturar a investigação em geral e melhorar os seus resultados, inclusive aqueles com vantagens comerciais imediatas, é que todos os paises desenvolvidos consideram que é necessario haver investimento publico neste dominio.
O Desidério acha que não porque acabou de reler o "On liberty" e a realidade acima não se coaduna com o que ele pensa poder inferir dos raciocinios de Stuart Mill.
Porque não procura antes reunir informação sobre o assunto, para ver se ela pode suportar as suas hipoteses ? Porque não começa por ai : qual é a parte do financiamento publico da investigação nos EUA, ou na Alemanha ? Como se compara com o que sucede em Portugal e no Brasil ? O que é legitimo concluir dai ?
Sapere audem !
Boas
João Viegas
Sapere aude (claro), desculpem outras gralhas que isto foi antes de eu reler.
joão viegas
Obrigado pelas suas palavras ponderadas.
Mas há uma diferença imensa entre o cidadão poder escolher entre várias opções, e o cidadão, depois de feito o concurso público, não ter escolha. É o primeiro caso que provoca, se outras condições estiverem asseguradas, uma espiral de qualidade: as lojas que as pessoas não preferem vão à falência. Todavia, não é fácil saber que "outras condições" são essas; em Portugal temos casos em que há concorrência e no entanto falta a qualidade. É preciso ver o que está, nesses casos, a impedir que surja uma espiral de qualidade que responde aos interesses das pessoas.
Um dos factores pode ser a dificuldade que é em Portugal ir à falência; parece haver uma relação significativa entre o desenvolvimento económico de um país e o número de empresas que vão à falência todos os anos: quanto mais do segundo, mais do primeiro. As muitas falências são experiências que falham, mas sem experimentar e falhar não aprendemos a fazer melhor. E se houver dificuldade em falir, então empresas muitíssimo ineficientes e que prestam serviços sem qualidade conseguem manter-se no mercado.
Quanto à presença do estado na ciência, não me parece de modo algum inultrapassável. Pelo contrário, parece-me um objectivo que todo o cientista e cidadão consciente das coisas deve defender: a completa separação entre a ciência e o estado. Se até ao séc. XIX uma das grandes conquistas foi a separação da igreja e do estado, até finais do séc. XXI a grande conquista é a separação da ciência e do estado. É a interferência do estado -- com o seu centralismo, corrupção e mentira contínua -- que corrompe a ciência e o ensino. Os académicos, claro, prostituem-se para receberem do estado os dinheiros das pessoas que pagam impostos e que estas não escolheriam dar-lhes, caso tivessem escolha. Só que não têm escolha.
Tenho consciência de que o que penso é tão estranho para quem se limita a aceitar o mundo tal como o recebeu, com o era para os vitorianos do séc. XIX quando liam John Stuart Mill a defender a igualdade política e social das mulheres (nesse tempo as mulheres eram quase mercadorias: depois de serem posse dos pais, passavam a ser posse dos maridos, não podiam votar nem participar na vida económica de igual para igual).
A minha esperança é que os nossos descendentes no séc. XXII olhem para o nosso século com o espanto com que olhamos para o XIX, quando as mulheres não tinham direitos.
Gostei muito de ler o seu blog e já o tenho nos meus feeds.
Coitados do Poincaré, do Einstein, do Oppenheimer, da Curie, do Feynman, do Watson, do Crick. Condenados a trabalhar com ajuda pública.
Onde não teriam eles chegado se tivessem usado as inúmeras liberdades providenciadas pelos partenariados com grandes grupos industriais: pré-definição e calendarização de entregas, contratos de 50 paginas para partilha de propriedade industrial, contrangimentos na publicação de resultados, relatórios trimestrais ...
De quem são estes óculos?
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