domingo, 4 de abril de 2010

Portugal e a ciência europeia no início do século XIX


Do livro de bolso "Breve História da Ciência em Portugal", que escrevi em colaboração com Décio R. Martins, e que em breve sairá numa edição da Imprensa da Universidade de Coimbra e da Gradiva, deixo um excerto sobre o a ciência nacional no início do século XIX (na imagem o Abade Correia da Serra):

A Academia das Ciências de Lisboa foi criada em 1779 para promover o desenvolvimento científico e cultural do país. A sua primeira sessão teve lugar no ano seguinte com uma Oração na abertura lida pelo oratoriano Almeida. Entre o grupo de fundadores destacaram-se, entre outros, D. João Carlos de Bragança (2º Duque de Lafões) e o Abade Correia da Serra, para além dos já referidos Rocha, Vandelli e Dalla Bella. As Memórias da Academia constituem uma das mais importantes fontes da história da ciência em Portugal. Começou com a publicação das Memórias de Agricultura (1788-1791), seguindo-se as Memórias Económicas (1789-1815), Memórias da Academia Real das Sciencias de Lisboa (1797-1856), e, mais recentemente, as Memórias da Academia, Classe de Ciências (desde 1936). Surgiram também as Ephemerides Nauticas (1788-1824), os Annaes das Sciencias e Lettras da Academia Real das Sciencias (1857) e o Jornal de Sciencias Mathematicas, Physicas e Naturais (1866-1927).

Entre os fundadores da Academia, Serra foi quem teve maior protagonismo internacional, com os seus estudos de botânica. É notável a obra que publicou nas mais prestigiadas revistas científicas: Philosophical Transactions, Transactions of Linnean Society, Transactions of the American Philosophical Society, The American Review, etc. Serra foi membro de várias instituições científicas de renome como a Royal Society e a Linnean Society, a Academia das Ciências de Paris, as Academias de Turim, Florença, Siena, Mântua, Bordéus, Lyon, Marselha e Liège, e a American Philosophical Society. Nos Estados Unidos a fama dos seus cursos de botânica nesta última sociedade originou um convite para ensinar na Universidade da Pensilvânia, que recusou. Thomas Jefferson, o terceiro presidente americano, nutria por Serra grande amizade, tendo mesmo na sua mansão na Virgínia um quarto reservado para ele. As relações científicas do naturalista português estabeleceram-se ao mais alto nível, nomeadamente com os franceses Candolle, Lametherie, editor do Journal de Physique, Millin, editor do Magasin Encyclopédique, Jussieu e Cuvier.

Em finais do século XVIII Portugal foi bastante marcado pelas grandes transformações sociais e políticas originadas pela Revolução Francesa. As invasões francesas obrigaram a corte do regente D. João, futuro rei D. João VI, a refugiar-se, em 1807, no Rio de Janeiro, iniciando um processo que conduziria à independência do Brasil, declarada em 1822 por seu filho D. Pedro.

Na Universidade de Coimbra fizeram-se nessa época sentir algumas das mudanças que ocorreram na Europa no século XIX. A organização universitária europeia reformou-se, sendo um bom exemplo a criação da Universidade de Berlim pelo alemão Wilhelm von Humboldt, em 1810, onde a investigação científica era vista como complementar da docência. Várias viagens de professores de Coimbra a centros universitários europeus reflectiram-se, ao longo do século XIX, na evolução do ensino em Portugal e também na organização, ainda que débil, de algum trabalho de investigação.

Assim, na primeira metade do século XIX, ocorreram na Universidade de Coimbra reformas curriculares da iniciativa do claustro académico, procurando um melhor ajustamento ao desenvolvimento científico na Europa (as de 1836 e 1844 já influenciadas pela Revolução Liberal de 1830). A partir de 1836-1837, com a fundação da Escola Politécnica de Lisboa e da Academia Politécnica do Porto, as duas imbuídas do espírito do liberalismo, a Universidade coimbrã passou a ter concorrência, não tendo sido pacífica a sua relação com as novas escolas. Vozes críticas da velha universidade afirmaram que os métodos do ensino coimbrão assentavam na erudição livresca e nas lições magistrais, transmitindo por isso uma ciência desligada das novas realidades. Coimbra era acusada de ser apenas uma "fábrica" de políticos.

Mas já em 1791 o plano de estudos na Faculdade de Filosofia estabelecido pela Reforma Pombalina tinha sido alterado. Foi então criada a cadeira de Botânica e Agricultura no 1.º ano do Curso Filosófico. Para a reger foi nomeado Félix de Avelar Brotero. O novo professor havia estudado no Colégio dos Religiosos Arrábicos de Mafra, tendo posteriormente concorrido ao lugar de capelão da Igreja Patriarcal de Lisboa. Emigrou depois para França na companhia do poeta Filinto Elísio. A sua estada na capital francesa permitiu lhe conviver com os mais eminentes naturalistas da época, como o Conde de Buffon, Cuvier e Lamarck. Doutorou se em Medicina em Reims. Foi depois de regressar a Portugal que entrou na Faculdade de Filosofia, tendo desempenhado papel relevante na reforma do plano de estudos. Brotero foi membro de várias academias científicas internacionais, entre as quais a Sociedade de Horticultura e a Linnean Society, ambas de Londres, as Academias das Ciências de Lisboa, de História Natural e Filomática de Paris, Fisiográfica de Lund, de História Natural de Rostock, e Cesareia de Bona. Entre os seus trabalhos contam-se: Compêndio de Botânica (1788), Flora Lusitanica... (1804). Phytographia Lusitaniae selectior... (1816-1827), e Compêndio de botânica... (1837-1839). Publicou vários artigos nas Transactions of the Linnean Society. Brotero foi talvez o mais proeminente cientista português do século XIX.

Entre os brasileiros formados em Coimbra após a Reforma Pombalina o mais famoso foi José Bonifácio de Andrada e Silva, um dos maiores protagonistas no processo da independência do Brasil. Andrada e Silva formou-se em Filosofia Natural e Direito Canónico, em 1787 e em 1788, respectivamente. Iniciou em 1790 uma sucessão de estadas em bons centros científicos da Europa, que durou até 1800. Durante este período visitou os melhores institutos da França, Itália, Alemanha, Dinamarca, Holanda, Suécia, Grã-Bretanha, etc. Na capital francesa teve por mestres de Química os continuadores de Lavoisier – Chaptal e Fourcroy. Estudou Botânica com Jussieu. Foi discípulo de Haüy, o fundador da Mineralogia em França. Os seus conhecimentos em Metalurgia foram aprofundados sob a orientação de Sage, director da Escola de Minas de Paris. Na Escola de Minas de Freiburg foi discípulo de Werner. Nessa mesma escola, foi colega do naturalista Alexander von Humboldt, irmão de Wilhelm. Após dez anos de actividade científica por toda a Europa, regressou a Coimbra, dedicando-se ao ensino da Metalurgia. Paralelamente a essa actividade, foi Intendente Geral de Minas e Metais do Reino. Administrou também as minas de carvão de Buarcos e de S. Pedro da Cova e das Reais Ferrarias da Foz de Alge, um afluente do Zêzere. Foi Director do Laboratório de Docimasia da Casa da Moeda em Lisboa, onde se determinava a proporção de metais nos minérios. Foi ainda da sua responsabilidade a criação de um laboratório de apoio de prospectores mineiros em Portugal e no Brasil.

O seu nome, juntamente com o dos químicos suecos Berzelius e Arfwedson, e ainda o do francês Berthollet, está associado à descoberta do lítio. Com efeito, foi a partir dos trabalhos publicados por estes autores que, em 1818, um outro grande químico, Davy, em Inglaterra, aplicou a recente técnica da electrólise para isolar o novo elemento, que ocupa a terceira casa da Tabela Periódica, a que deu o nome de lítio, do grego lithos (pedra). Andrada e Silva anunciou a descoberta de doze novos minerais num artigo do Allgemeines Journal der Chemie (1800) de Leipzig. Entre esses minerais estavam a petalita e o espoduménio, que são aluminossilicatos de lítio. O artigo tinha por título (traduzido para português): Exposição sucinta das características e das propriedades de vários minerais novos da Suécia e da Noruega... A importância deste trabalho justificou a sua publicação, em inglês, no Journal of Natural Phylosophy, Chemistry and the Arts (1801) e, em francês, no Journal de Physique, de Chimie, d’Histoire Naturelle et des Arts (1800). Andrada e Silva foi membro das Academias de Estocolmo, Copenhaga, Turim, da Sociedade dos Investigadores da Natureza de Berlim, das Sociedades de História Natural e Filomática de Paris, da Sociedade Geológica de Londres, Werneriana de Edimburgo, Mineralógica e Lineana de Jena, Filosófica de Filadélfia, etc. Foi ainda membro da Academia Imperial de Medicina do Rio de Janeiro.

1 comentário:

Luís Silva disse...

Um livro de História das Ciências sem referências nem citações? Um livro sobre Portugal onde o português convive mal?

(Exemplos: "A sua primeira sessão teve lugar no ano seguinte com uma Oração na abertura lida pelo oratoriano Almeida"

"As invasões francesas obrigaram a corte do regente D. João, futuro rei D. João VI, a refugiar-se, em 1807, no Rio de Janeiro, iniciando um processo que conduziria à independência do Brasil, declarada em 1822 por seu filho D. Pedro."

"Doutorou se em Medicina em Reims.")

Bravo, Carlos Fiolhais!

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