sexta-feira, 9 de abril de 2010
UM FALSO CAMÕES
Minha crónica no Público de hoje:
“Os filósofos grandes, com ciência
E incansável indústria, que alcançara,
Das coisas naturais a própria essência,
E todas altamente especularam,
Nenhuma de mais alta arte e excelência
Entre todas, que o corpo humano, acharam:
De forma, e de matéria um só composto
Com tamanho primor feito e composto.”
No ano de 1615, saía em Lisboa do prelo de Pedro Craesbeck (um tipógrafo que tinha vindo de Antuérpia em fuga às guerras religiosas) o poema Da criação e da composição do homem, atribuído ao “grande Luís de Camões, Príncipe da poesia heróica”. Mas era um falso Camões, por muito camoniana que pareça a oitava de decassílabos heróicos transcrita em cima (actualizou-se a grafia), extraída do segundo dos três cantos em que o poema se divide.
Houve logo quem percebesse que se tratava de um apócrifo pois a própria primeira edição o revelava no prólogo. Mas, talvez porque o nome de Camões fosse um chamariz, o certo é que a confusão persistiu durante mais de dois séculos. Só em 1861 foi posta à venda uma edição, incompleta pois nem frontispício tinha (de facto, não passava de umas meras provas), contendo o título verdadeiro: Microcosmosmografia e descrição do mundo pequeno que é o homem. Mas quem é o autor que durante tantos anos foi tomado pelo nosso maior vate?
Acaba de ser publicado pela Colibri o livro Obras de André Falcão de Resende, numa edição crítica da italiana Barbara Spaggiari. Trata-se de um portentoso trabalho, que exigiu muitos anos de investigação minuciosa. Falcão de Resende foi não só contemporâneo de Camões como seu amigo e admirador. Nasceu em Évora, em 1527, e faleceu em Lisboa, em 1599. Curiosamente, Filipe II, o rei de Portugal e de Espanha, nasceu no mesmo ano que ele e morreu apenas um ano antes. O último poema de Falcão de Resende, que, tal como tantos outros intelectuais da época, defendeu o monarca dual, data precisamente de 1598 e, por ironia mórbida, glosa o tema da peste, que na altura assolou a Península, e que só em Portugal causou cerca de oitenta mil mortos, incluindo o próprio poeta.
Falcão de Resende inspirou-se decerto em Camões para escrever a Microcosmografia, que um crítico considerou um “poema alegórico anatómico-cirúrgico” pois toma o corpo humano como imagem de todo o cosmos. Camões já tinha usado o corpo como metáfora geográfica (“Eis aqui quase cume da cabeça/ de Europa toda o Reino lusitano”), mas o seu amigo de Évora, um dos poucos que em vida lhe reconheceram o génio, foi mais longe na escala física, embora sem a mesma qualidade literária. Os dois foram grandes humanistas, tal como o tio do segundo, Garcia de Resende, o bem conhecido compilador do Cancioneiro Geral.
Falcão de Resende, tendo seguido uma carreira eclesiástica, chegou a capelão do Cardeal D. Henrique, mas abdicou dela para casar e ter vários filhos (nenhum dos quais lhe sobreviveu). Já quarentão, voltou aos bancos da Universidade de Coimbra para cursar Cânones e conseguir chegar a juiz de fora em Torres Vedras. Foi aí que, em 1589, assistiu à passagem do corsário Sir Francis Drake, desembarcado em Peniche (com uma facilidade que originou a expressão “amigos de Peniche”), na tentativa frustada de ajudar o Prior do Crato a tomar Lisboa. O livro agora publicado está, contudo, amputado de parte de uma pormenorizada descrição dessa invasão inglesa... Em 1800, numa farmácia de Guimarães, o manuscrito apógrafo feito por um anónimo para reunir toda a obra de Falcão de Resende, logo após a morte deste, foi, por um incrível acaso, resgatado de embrulhar pós medicinais, quando um cliente reparou que era um pedaço da história de Portugal que estava a ser rasgado. Está desde então à guarda da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, à espera que um mecenas permita o necessário restauro (existe um fac-simile digital na Web). Foi a esse manuscrito e a uma cópia oitocentista dele, devida a um revisor da Imprensa da Universidade, o Sr. Freitas, que a Prof.ª Spaggiari dedicou uma boa parte da sua vida, para nossa ilustração e proveito. Muito obrigado!
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
35.º (E ÚLTIMO) POSTAL DE NATAL DE JORGE PAIVA: "AMBIENTE E DESILUSÃO"
Sem mais, reproduzo as fotografias e as palavras que compõem o último postal de Natal do Biólogo Jorge Paiva, Professor e Investigador na Un...
-
Perguntaram-me da revista Visão Júnior: "Porque é que o lume é azul? Gostava mesmo de saber porque, quando a minha mãe está a cozinh...
-
Usa-se muitas vezes a expressão «argumento de autoridade» como sinónimo de «mau argumento de autoridade». Todavia, nem todos os argumentos d...
-
A “Atlantís” disponibilizou o seu número mais recente (em acesso aberto). Convidamos a navegar pelo sumário da revista para aceder à in...
11 comentários:
Que distância! JCN
Em folha de papel com marca de água nacional e letra seiscentista, foi adquirido por um lusófilo norte-ameericano num conceituado alfarrabista da capital um poema de inspiração camoneana, que a seguir se transcreve co a devida autorização. Outro falso Camões... ou ele próprio? Ei-lo:
É puro desconcerto agora em dia
o mundo em que vivemos neste canto
onde tudo é motivo para espanto
e nada para autêntica alegria!
Semelha agora o mundo uma enxovia
onde reina a tristeza sem quebranto
sem que esperança exista de entretanto
se ver do sol a chama fugidia.
A máquina do mundo, outrora certa,
perra se encontra, enferrujada está,
de há meia-dúzia de anos para cá.
Parece tudo andar em guerra aberta,
virada estando a pátria do avesso,
de cujo fim se espera outro começo!
JCN
Muito interessante
Augusto Küttner de Magalhães
Por mais engenho que possua alguém
para escrever poemas similares
não chega de Camões aos calcanhares,
ficando desde logo sempre aquém!
JCN
Este, absolutamente inédito, é dos meus herdos e de suposta fonte quinhentista:
Quando de Deus contemplo a criação
faltam-me termos para me expressar,
tal a minha profunda admiração
por obra tão suprema e singular!
O mar imenso, sem limitação,
a terra em permanente guerrear
em vista tendo a nossa salvação
sob o pendão de Cristo a dominar!
O céu cheio de estrelas fulgurantes,
qual delas mais lucífera girando
em rigorosos círculos constantes!
Somente o ser humano desconcerta
a harmonia do mundo, mesmo quando
da sua natureza se liberta!
JCN
Alteração: no penúltimo poema, em forma de quadra, substituo o verso final, que passa a ter a seguinte redacção:
não merecendo mais do que desdém!
JCN
Obrigado pela divulgação do conhecimento.
APÓCRIFO (de autor não assumido):
Se amor da pátria tem merecimento
quando provado sem contestação
por feito de armas em qualquer momento
da vida e segurança da nação,
sou candidata a remuneração
devida ao meu total empenhamento
na sua glória e suma exaltação
por força do meu braço e meu talento!
Se ma não dão, conforme é usual
por mera ingratidão ou pura inveja
neste reino sem par de Portugal,
fico credor do prémio recusado,
seja qual o motivo por que seja,
ainda que por isso mais honrado!
JCN
Corrijo no 5º verso a gralha "candidata" por "candidato". JCN
Outro APÓCRIFO, com um cheirinho a Camões, em letra seiscentista:
Fragueiro sempre fui de corpo e alma,
insofrido de humores, mão ligeira,
espada sempre pronta, certa e calma,
para qualquer refrega sem viseira.
Nunca as costas virei a um desafio
que fama sem proveito me trouxesse,
a cara dando com furor e brio
a quem, podendo mais, me acometesse.
Tirando um olho que perdi mercê
de traiçoeira seta disparada
por encoberto mouro à falsa fé,
ninguém, posso dizê-lo desde já,
em fuga ou vergonhosa retirada
as solas dos meus pés nunca verá!
JCN
Ainda haverá camonistas... entre nós?!... JCN
Enviar um comentário