domingo, 18 de abril de 2010

A MATEMÁTICA DO AZAR

Foi longo e penoso o percurso até se chegar à moderna matemática do azar. Mas, no início, a motivação foram os jogos de azar (ou de sorte, depende da perspectiva, mas o termo azar será mais adequado pois, no jogo, são normalmente muitos mais os os que perdem do que os que ganham). Os dados - objectos físicos concretos - precederam o pensamento matemático. No Renascimento, o matemático, médico e filósofo italiano Girolamo Cardano (1501-1576), um jogador compulsivo, foi o primeiro a abordar o assunto com algum rigor. O seu livro Liber de Ludo Aleae (O Livro dos Jogos de Azar), só publicado postumamente (em 1663), foi a primeira análise matemática dos jogos. O autor reparou que, para resolver uma questão de probabilidades, tinha de reconhecer quais eram os acontecimentos igualmente prováveis.

O também italiano e comummente considerado o “pai da física” Galileu Galilei (1564-162), em resposta a uma solicitação do Duque da Toscana, foi o primeiro a resolver quantitativamente um problema concreto de probabilidades. A questão era sobre a probabilidade de saírem os valores 9 e 10 lançando simultaneamente três dados. Não deixa de ser curioso que o primeiro autor da descrição matemática do movimento (foi ele a formular quantitativamente a lei da queda dos graves) tenha sido também o primeiro a lidar matematicamente com a noção de probabilidade. No seu opúsculo “Sopra la Scoperte dei Dadi” (Considerações sobre o Jogo de Dados), saído em 1612, efectuou correctamente uma comparação de probabilidades de acontecimentos muito próximos. Galileu explicou, nessa obra, porque razão, embora sejam seis as somas diferentes que permitem obter 9 pontos quando se lançam três dados e igualmente seis as somas que permitem obter 10 pontos, o total de 10 ocorre mais vezes do que o total de 9: há 25 configurações para que ocorra o 9 mas já há 27 para que ocorra o 10, de entre um total de 216 configurações possíveis. Quase indistinguível para um jogador não tão bom como o Duque da Toscana, mas perfeitamente ao alcance do olhar rigoroso de Galileu, que suspeitou que, por longa observação, seria possível medir, na prática, a pequena diferença.

Mas foi outro italiano, o monge franciscano e matemático Frei Luca Paccioli (1445-1517), célebre pelos seus estudos da “divina proporção”, um tema de geometria muito glosado em inúmeras manifestações artísticas, o responsável pelo desafio que iria permitir, muitos anos depois, inaugurar formalmente o conceito de probabilidade, ao inquirir no seu livro "Summa de arithmetica, geometria, proportioni et proportionalita" (1494) como se devia dividir o dinheiro de um jogo de azar interrompido por qualquer razão. De certo modo, ainda que de uma forma apenas embrionária, inaugurou a noção de probabilidade como esperança matemática, isto é, como capacidade de previsão quantitativa de eventos futuros. Este problema foi reatado pelos franceses Blaise Pascal (1623-1662) e Pierre de Fermat (1601-1655), dois dos melhores matemáticos do século XVII (ficou célebre o “Ultimo Teorema de Fermat”, que só há pouco tempo foi demonstrado), num conjunto de cartas onde trocaram ideias sobre a melhor forma de repartir o dinheiro de um jogo interrompido. A questão tinha sido suscitada pelo Chevalier de Méré, um outro jogador compulsivo, que pediu ajuda a Pascal para resolver um caso concreto relativo a lançamento de dados. Numa missiva de 24 de Agosto de 1655, Fermat propôs a Pascal uma resolução do problema que lhe tinha sido endossado (os dois nunca se encontraram fisicamente), surgindo assim uma primeira ligação do cálculo das probabilidades à economia. Por estranho que isso pudesse parecer, as probabilidades tinham interesse económico! Não chegou até aos nossos dias a carta original de Pascal, mas conhecem-se, no total, seis cartas entre os dois sobre o assunto. Essa correspondência não foi publicada imediatamente mas apenas, anos volvidos, em 1657, quando o físico holandês Christian Huyghens (1629-1695), contemporâneo de Isaac Newton (1643-1727), a descobriu e comentou no seu livro “Libellus de ratiociniis in ludo aleae“ (Sobre o raciocínio nos jogos de azar).

Para alicerçar a teoria matemática das probabilidades, faltava a fundamentação, em bases sólidas, do conceito de “longa observação” de Galileu, isto é, mostrar rigorosamente que, por experiências repetidas, era possível medir probabilidades com uma exactidão arbitrária: por exemplo, em 1000 lançamentos de um dado devia sair em cerca de um sexto, portanto em 167, lançamentos o valor seis e a aproximação ao valor preciso de um sexto seria tanto melhor quanto maior fosse o número de lançamentos. A demonstração desta afirmação – a lei dos grandes números ou lei fundamental das probabilidades - , que permite ligar, com precisão, frequências relativas e probabilidades, só foi efectuada pelo suíço Jacob Bernoulli (1654 - 1705), um físico-matemático que publicou este importante resultado no seu livro "Ars Conjectandi" (A arte da conjectura), saído postumamente em 1713.

Como se vê, o jogo e a economia ligada ao jogo estão na raiz da teoria das probabilidades, que, originalmente, tem tanto de matemático como de físico, uma vez que era necessário um objecto físico – o dado – e a experimentação – o lançamento do dado - para motivar, primeiro, e verificar, depois, suposições matemáticas.

O francês Pierre Simon de Laplace (1749-1827), um dos grandes divulgadores e continuadores da obra de Newton, foi o autor do primeiro tratado matemático sobre probabilidade. Mais uma vez é irónico que tenha sido um newtoniano convicto, portanto um defensor do determinismo mecânico (foi ele que respondeu a Napoleão quando este lhe perguntou sobre o lugar de Deus na obra laplaciana: “Sir, je n’avais pas besoin de cette hypothèse là!”), o proponente de alguns conceitos de probabilidade, que estão ou parecem estar nos antípodas do pensamento newtoniano. No seu livro "Théorie analytique des probabilités" (Teoria analítica das probabilidades), saído em 1812, consolidou a teoria das probabilidades como um ramo da matemática. Mas já antes tinha obtido uma função matemática a que se chama hoje "distribuição normal" de probabilidades, à qual também está associado o nome do alemão Carl Friedrich Gauss (1777-1855). Daí os nomes alternativos de “curva de Gauss” e “curva de Laplace-Gauss” para essa curva com a forma típica de um sino que tão bem descreve os erros aleatórios numa medida de uma grandeza física. Mas, de facto, o autor mais antigo dessa curva foi, em 1733, o matemático francês Abraham De Moivre (1667-1754), um pioneiro no uso das probabilidades para o cálculo de seguros.

6 comentários:

platero disse...

etimologicamente AZAR não será o aportuguesamento do francês HAZARD, que significa ACASO?

- arrisco eu, que não percebo nada do assunto

Anónimo disse...

Caro Professor Fiolhais,

A Lei dos Grandes Números faz convergir a frequência relativa e a probabilidade. Assim, se a probabilidade de saída de uma face de um dado honesto, quando lançado sobre uma superfície homogénea, é de 1/6, tendencialmente, num grande número de lançamentos, a frequência relativa de saídas dessa face aproximar-se-á de um um sexto. Mas, esta regularidade não depende das condições reais de realização da experiência? Quero eu dizer, não é a Física que explica, em última análise, esta tendência? É que, a ser assim, penso que havemos eventualmente de ter cuidado antes de pensarmos na utilização da Lei dos Grandes Números para outras esferas de realidade.
MM

Anónimo disse...

Girolamo Cardano?

Carlos Fiolhais disse...

Já emendei o erro no nome, obrigado, CF

Carlos Fiolhais disse...

A lei dos grandes números é um teorema matemático, isto é, uma afirmação que pode ser demonstrada. mas na sua base estão certamente conceitos físicos.
Talvez seja por isso que alguns matemáticos vêem a teoria das probabilidades e a estatística como um ramo claramente separado do resto da matemática.
CF

Anónimo disse...

Caro Professor Fiolhais,

Obrigado. Fiquei mais esclarecido sobre o que era uma dúvida que transportava há algum tempo.

MM

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