domingo, 18 de abril de 2010

Porque a Terra Treme (2)


Continuação do post anterior sobre tremores de Terra:

“Quem não entrar no mar, não se afogará”; “Quem se não quer aventurar, não passe o mar”; "Vê o mar, e sê na terra”. Estes são alguns exemplos de ditados populares, em que o saber empírico popular nos avisa que é melhor estar sobre a terra do que sobre o mar. Disto transparece que estar com os pés na terra parece ser sempre mais seguro do que no mar, mesmo que embarcado. Contudo, quando a Terra treme violentamente e se rasga como acontece nos terramotos mais intensos, aquela certeza fica abalada. Um outro ditado popular é disso exemplo: “Debaixo dos pés, se levantarão desastres”.

De facto debaixo deste chão (a crusta terrestre, menos densa do que o manto que preenche a Terra até ao seu núcleo, é constituída por rochas graníticas, sedimentares e metamórficas) aparentemente seguro e protector que pisamos, há um mar de rocha (a astenosfera, entre os 100 e 700 km de profundidade, uma zona plástica constituída por rochas fundidas) em movimento devido à sua composição e às temperaturas altas em que se encontra.

Imagine a crusta da Terra como se fosse a película de nata que se forma à superfície do leite depois de aquecido. A diferença de temperatura na interface entre o leite quente e o ar (menos quente) gera a película de nata. À medida que o leite arrefece e se aproxima da temperatura a que está o ar, mais espessa e estável fica a película de nata. Até é possível colocar algo por cima dela, por exemplo uma amêndoa, sem que se afunde leite adentro.

Se for reaquecido, o leite por debaixo da película começará a ter movimentos de convecção, que circulam desde o fundo do recipiente, mais quente, até à superfície menos quente e delimitada pela película de nata, regressando depois ao fundo. À medida que a velocidade deste movimento aumenta, começarão a surgir, primeiro, alterações na superfície da nata, que começará como que a ondular, formando pequenos montes e vales de nata. Depois, surgirão fracturas no continente de nata, levando a que surjam rios mais ou menos oceanos de leite em convulsão, assim como pontos por onde o leite, já em ebulição, se escapa e derrama. Se não diminuirmos a intensidade da fonte de calor que aquece o leite, não tardará que este se derrame para fora do recipiente em nuvens de leite que não são mais do que emulsões de ar no leite (o mesmo acontece nas claras em castelo).

Utilizemos este modelo culinário do dia-a-dia, para percebermos a causa dos terramotos e a dinâmica da tectónica de placas.

O nosso planeta tem vindo a arrefecer desde a sua formação há cerca de pelo menos 4540 milhões de anos (esta data foi determinada por estudos radiométricos da proporção relativa entre Pb-207 e Pb-206 nas rochas mais antigas até agora encontradas na Terra). As camadas mais externas do planeta, a uma temperatura inicial de cerca de 1000 ºC, em contacto com o gélido espaço sideral, começaram a solidificar (tal qual a película de nata) e, também em contacto com a atmosfera primeva, deram origem progressivamente a uma crusta menos densa (lembre-se da leveza das claras em castelo) recobrindo a astenosfera e o manto muito viscoso em movimento e a temperaturas de cerca de 5000 ºC.

(continua)

António Piedade

11 comentários:

lina gonçalves - aluna 12º ano Mangualde disse...

Parabéns Dr António Piedade. Finalmente, com a ajuda do exemplo do leite e da película de nata, acho que já começo a perceber um pouco do movimento das placas tectónicas e da Terra. Obrigada.

João Moedas Duarte disse...

Caro António Piedade e restantes leitores,

Em primeiro lugar muitos parabéns pelo post. Está muito bem escrito e é sempre bom ver a geologia abordada neste excelente blog.

No entanto detectei um pequeno "erro". Onde está escrito: "a astenosfera, entre os 100 e 700 Km de profundidade, uma zona plástica constituída por rochas fundidas"

As rochas na astenosfera não estão fundidas. Estão muito perto do ponto de fusão (daí a elevada plasticidade e baixa rigidez) mas têm estrutura cristalina e pelo que devem ser consideradas como estando no estado sólido. Isto deve-se ao facto de a pressão também aumentar com a profundidade, aumento este que eleva o ponto de fusão das rochas. A astenosfera apenas funde em zonas “especiais” (por acréscimo de água junto às zonas de subducção, que baixa o ponto de fusão das rochas; ou por descompressão adiabática nos riftes ou junto a hotspots). Nestas zonas existe de facto rocha fundida mas totalizam apenas 10% da astenosfera. É por isto que não há vulcões por todo o lado, mas preferencialmente junto às zonas de subducção e riftes.

Julgo ser importante ter algum rigor nestes assuntos pois este é um excelente exemplo de uma ideia “errada” (uma astenosfera fluida com a os continentes a flutuarem como jangadas) com a qual os jovens estudantes chegam às universidades. É também um dos preconceitos mais difíceis de corrigir.

Um outro paradigma que está duramente enraizado é o "modelo de convecção de panela" do manto. Esta analogia está errada por várias razões. A título de exemplo basta referir que a “convecção” no manto ocorre no estado sólido (o que quer que isso seja). O jogo entre pressão e temperatura está longe de estar compreendido e deve ter um papel colossal na dinâmica mantélica. Por outro lado, dados recentes de tomografia sísmica revelaram que a dinâmica do manto é muito mais caótica do que se pensava. Por fim, ao contrário da panela, manto não é aquecido por baixo mas sim um pouco por todo o lado devido ao decaimento radioactivo de alguns dos seus constituintes. Quando a Terra era jovem, aí sim ainda fundida, o calor primordial deve ter tido um papel importante na convecção e na diferenciação das camadas externas. Mas nesta altura a tectónica de placas era completamente diferente da actual. Chama-se a este regime, que ocorreu entre os 4.5 e 3 Ga (giga-anos), “tectónica de bolhas”. Aqui a analogia da panela poderá fazer algum sentido..

Actualmente é relativamente consensual na comunidade científica que cerca de 90% das forças necessárias para mover as placas tectónicas é gerada nas zonas de subducção pelo afundamento da litosfera no manto. O manto é arrastado praticamente de forma passiva. Isto acontece porque a litosfera oceânica vai ficando mais fria com a idade e torna-se mais densa que a astenosfera ao fim de cerca 40 Milhões de anos. Grande parte da diferenciação da crusta dá-se junto às zonas de subducção/cadeias de colisão, local onde se geram grandes quantidades de granitos. (Fiz um post sobre esta questão à uns tempos: http://terraquegira.blogspot.com/2008/07/subduco-parte-i-zonas-de-subduco-e.html)
Não posso acabar sem fazer uma ressalva. O problema não está de todo neste texto. Durante o tempo que frequentei o curso de geologia a esmagadora maioria dos professores ainda me ensinou a tectónica de placas da forma que é abordada no post. É assim que ainda é ensinado nos manuais escolares. Tenho consciência que a tectónica de placas é uma teoria relativamente recente mas gostava que ponderassem se é correcto ensinar incorrecções. Seria um pouco com ensinar apenas teoria do Lamarck por ser mais simples de compreender deixando o Darwinismo apenas para a formação mais avançada. O problema é que depois é difícil corrigir o vício de pensamento.

Os meus melhores cumprimentos
Continuação de bons trabalhos..
João Duarte

João Moedas Duarte disse...

Cara Lina,

Uma boa analogia para o movimento das placas seria duas toalhas a escorregar pelos cantos opostos de uma mesa (que representariam duas zonas de subducção, como nos Andes e Japão nos extremos opostos do Oceano Pacífico). A crusta ao afundar nestas zonas opostas provoca um afastamento no meio. Estas zonas correspondem aos riftes. Aqui o manto fica exposto e ocupa o lugar deixado aberto pela crusta (como o espaço que se vai abrindo entre as toalhas). Este afastamento provoca a fusão das rochas do manto e gera-se magma (como no vulcão da Islândia). Este magma ao entrar em contacto com a atmosfera ou com o oceano arrefece gerando progressivamente a crusta oceânica (que no caso da Islândia e e algumas zonas dos Açores se encontra emersa).

João Duarte

António Piedade disse...

Caro João Duarte,

Em primeiro lugar, quero agradecer a cortesia e a lição com que corrigiu e complementou o meu post.
Em segundo lugar, estou totalmente de acordo consigo quando diz ser incorrecto ensinar ou divulgar concepções erradas que se instalam como lapas e por uma espécie de uso capião, na camada superficial do conhecimento.
Aliás, defendo que é possível e desejável transmitir sempre a ideia correcta e com igual rigor quer a todo o público quer ao mais sapiente leitor.
Por outro lado e como aparenta saber melhor do que eu, as analogias podem ser muito úteis mas são visceralmente perigosas se permitirem a transmissão/recepção de uma ideia errada em quem aprende.
Humilde e seriamente reconheço que não verifiquei totalmente se o modelo que utilizei poderia azedar o conhecimento, se me permite a graça. Sabe, sou um bioquímico com uma paixão platónica pela geologia...
Assim e por fim, agradeço reconhecido o esclarecimento que nos proporcionou.
Muito Obrigado.
António Piedade

Anónimo disse...

Desculpem, mas não foi adicionado nenhuma etiqueta (label) ao post. Muito Obrigado.

João Moedas Duarte disse...

Caro António Piedade,

Estamos em sitonia :) E penso que ambos adoramos partilhar a nosso paixão pela ciência..

Penso que a possibilidade de comentar, partilhar conhecimentos e discutir é uma das grandes vantagens da divulgação neste tipo de espaços tem.

Gosto muito de ler os seus textos e reconhece-o como um excelente divulgador de ciência (e geologia em particular).

Sendo eu geólogo de formação gosto muito de divulgar questões de cosmologia e tenho a perfeita noção de que é quase impossivel ser completamente rigoroso e estar a par das novas descobertas numa área que não é a nossa (às vezes apenas por não dominar o jargão) :)

Por isso volto a reforçar que o problema que levantei não é de todo em relação ao caso particular deste post. A analogia que fez está de acordo com a corrente de pensamento da generalidade da comunidade geológica que não trabalha directamente em tectónica de placas. E isso é que é problemático! :)

João Moedas Duarte disse...

Já agora deixo aqui a referência de um artigo fabuloso que aborda esta e outras questões relacionadas (como os diferentes regimes pré-tectónica e tectónica de placas ao longo da história da Terra) de uma forma relativamente simples:

Hamilton, W. (2003) - An alternative earth. GSA Today 13 (11) 4– 12.

Anónimo disse...

Por este tipo de questões e por este nível de discussão é que este blog é uma excepção absoluta.
Para mim pelo menos é uma visita obrigatória.Diria mesmo uma necessidade intelectual
Obrigado.
Daniel de Sousa

Fernando Martins disse...

Antes de mais, parabéns ao autor do post por, sendo um bioquímico, gostar destas coisas das pedras. Em segundo lugar, ao João Moedas, pelo excelente contributo para a discussão. Finalmente dois apontamentos: a astenosfera não vai até aos 700 km (fala-se em 350 ou 400 km, embora este limite seja difuso) e continua a notar-se a falta de um geólogo no melhor Blog de Ciência de Portugal.

António Piedade disse...

Agradeço a todos as palavras elogiosas.
Mas, não faço mais do que aquilo que posso e do meu dever enquanto cientista - o de comunicar. Se me permitem, a bioquímica não é só um conjunto emaranhado de vias metabolicas e de sinalização, recheadas de uma aparente infinidade de combinações apropriadas de um número conhecido e limitado de atómos que estavam disponíveis (hoje está mais na moda dizer biodisponíveis)no jovem planeta durante e após a fase de acreção, diferenciação e progressiva desintegração radioactiva dos elementos.
Por isso, um bioquímico é de facto um híbrido (mas fertil) do conhecimento científico.
Concordo com o que disseram sobre a mais valia do formato "Blog" para a divulgação e discussão do conhecimento em geral, do científico em particular.
Estou de facto honrado com a qualidade dos comentários com que me brindam e peço mais uma vez desculpa pelas imprecisões, cujas correcções e informações terei em conta quando preparar a próxima crónica sobre este assunto.

Post Scriptum - Caro João Moedas, poderia enviar-me o pdf do artigo que me sugeriu uma vez que ainda não consegui ter acesso a ele. O meu email é antonio@takethewind.com Muito Obrigado e disponha sempre.

António Piedade

João Moedas Duarte disse...

Caro António Piedade,

De facto tenho lido umas coisas sobre "nuvens moleculares" e de como o embrião do sistema solar poderia estar repleto de moléculas orgânicas (inclusivamente hidrocarbonetos complexos).. Parece-me um assunto fascinante a seguir..

Por outro lado penso que os bioquímicos estão e vão ter um papel fundamental no estudo dos organismos extrmófilos que vivem em ambientes geológicos muito particulares..

Penso que apesar de sermos quase obrigados a escolher um ramo do conhecimento se não tivermos um pensamento mais alargado dificilmente conseguiremos fazer o quer quer que seja de significativo nas nossas áreas de especialização.

Basta lembrar por exemplo que Alfred Wegener não era geólogo.. Talvez por isso tenha tido uma visão não viciada e preconceituosa dos seus colegas da geologia da altura e tenha visto aquilo que eles não viram (que agora parece óbvio)

Por outro lado, normalmente evito dizer às pessoas que a geologia é a ciência que estuda as pedras/rochas.. Penso que este é outro preconceito em relação aos geólogos que se espalhou pelo público em geral. Os geólogos estudam o planeta Terra com todos os seus constituintes.. Assim como os biólogos estudam a biosfera, que é muito mais que o conjunto de todos os organismos.. e isto pode ser gerneralizado para todas as "ciências".. E diria mais, no fundo estamos todos a estudar exactamente a mesma coisa :) É por isso de extrema importância partilhar e discutir o que fazemos com o resto da comunidade científica.. quer publicando quer divulgando.. e só não comete erros quem não escreve :)

A Ciência é um processo Lamarckiano.. Só funciona se a informação for transmitida :)

Mais uma vez obrigado pela sua louvavel dedicação..

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